Atualizada às 15h02
Nas últimas horas do dia 2 de dezembro de 1984, um domingo, as pessoas estavam em suas casas, dormindo ou repousando. Em Bhopal, capital do estado da Maharastra, no coração da Índia, os subúrbios pobres do norte eram uma área tranquila ao redor da fábrica de pesticidas da Union Carbide Corporation. Pouco depois da meia-noite, o jovem Gangaram e sua família dormiam cobertos com mantas para suportar o frio. Até que os gritos (“Corram! Corram!”) os despertaram. O ar ardia, queimando pulmões, olhos e boca.
Em outro bairro, alguém chamou o médico da empresa e perguntou o que fazer, o que era aquilo que estavam aspirando. Um gás “um pouco mais irritante que o gás lacrimogêneo”, respondeu o doutor: um pouco de água e paciência seriam suficientes.
International Campagin for Justice in Bhopal
A fachada da entrada da fábrica da Union Carbide em Bhopal
Gangaram e sua família correram junto com quase todos os 200 mil habitantes desses bairros pobres. Fugindo do ar, ele viu como caíram mortas dezenas de pessoas, crianças e idosos. Viu como as vacas também fugiam, atropelando cadáveres e pessoas agonizantes que não podiam nem respirar, nem ficar em pé. “Até as folhas caíam das árvores. Não tinha uma só folha nas árvores. Depois disso já não pude ver com meus próprios olhos.”
Leia também: Relatório de inteligência ataca trabalho de ONGs e ativistas ambientais na Índia
Nas ruas da velha cidade de Bhopal se amontoaram cadáveres. Os hospitais se transformaram em salas de agonia e cemitério para as mais de 3.000 pessoas que morreram naquela noite, para as outras 50 mil que sobreviveram muito mal, depois de terem inalado quase 40 toneladas de isocianato de metilo (ou cianureto de hidrogênio). O vazamento massivo na planta da Union Carbide criou uma gigantesca câmara de gases em uma área habitada por cerca de 500 mil pessoas e tinha extensão dez vezes maior que a Cidade Universitária de São Paulo.
Reprodução
Planta da Union Carbide fica em área densamente povoada, como mostra o mapa
O doutor D.K. Satpathy, então um jovem médico forense, recebeu um chamado pedindo a sua presença no hospital. “Há mortes piores que o imaginável”, disseram. Nesta única noite, ele realizou 876 autópsias, e, nos próximos 12 anos, faria outras cerca de 11 mil relacionadas à tragédia de Bhopal: mortes por asfixia e envenenamento.
Reações
Três noites após o vazamento do gás, Warren Anderson voltou a Bhopal. O presidente e principal acionista da Union Carbide supervisionava pessoalmente a operação da planta que produzia pesticidas para cultivo de forragem nos Estados Unidos. Foi preso sem maiores trâmites. Entretanto, o governo central da Índia começou a pressionar e um juiz estabeleceu uma fiança de 25 mil rúpias (pouco mais de 2 mil dólares). O primeiro-ministro Rajiv Gandhi enviou um avião da força aérea para tirá-lo da cidade e facilitou sua fuga com o “compromisso” de voltar e enfrentar o possível julgamento pela tragédia.
The Bhopal Medical Appeal
Anderson morreu em agosto passado, em sua casa em Nova York, impune. Quando souberam, os sobreviventes em Bhopal colocaram sua fotografia nas grades do monstro industrial que ele deixou na Índia. Uma grande fila de gente pobre e maltratada esculpiu a imagem do empresário.
[Família da mãe de Adil Muhmada vivia a 180 metros da fábrica; jovem morreu neste ano]
A companhia sempre negou toda responsabilidade, culpando a filial hindu, Union Carbide Limited, quando todas as investigações na Índia encontraram indícios de responsabilidade em Warren Anderson. Existiram, inclusive, vários relatórios públicos e acidentes menores que alertaram a população, mas não as autoridades e menos ainda Anderson e seus executivos.
O jornalista Rajkumar Keswani previu o acidente em 1982. Um pequeno vazamento de gás matou um amigo dele em setembro daquele ano. Keswani se dedicou a investigar e publicou várias reportagens denunciando o risco, sobretudo pela falta de medidas de segurança para tratamento de químicos como o isocianato de metilo. A Union Carbide, barateando custos, não tinha um plano de emergência e seus trabalhadores administravam tambores e contêineres sem luvas ou treinamento mínimo.
Leia também: Setenta anos depois, fome continua assombrando Bengala
Na noite da tragédia, Keswani não vivia muito longe da fábrica, na zona antiga de Bhopal. Viu as pessoas correrem, gritarem, morrerem. E conseguiu sair dali, salvando sua família. Mas se sentiu responsável por não conscientizar sobre essa tragédia. Naquela noite, “e o digo de todo coração”, diz a Opera Mundi, “estava irritado com o meu fracasso. Trinta nos depois, sou uma criatura indefesa: vejo as pessoas sofrerem e morrerem todos os dias.”
NULL
NULL
The Bhopal Medical Appeal
A Union Carbide – hoje, parte da gigante química Dow – alega que teve a planta de Bhopal sabotada e que isso provocou o vazamento.
[Deformações congênitas são comuns na área da tragédia]
Mais mortes, mais veneno
Há uma organização de médicos e voluntários que atende quase todos os casos relacionados à tragédia, a The Bhopal Medical Appeal. No programa de atenção estabelecido pelo governo da Índia, quase nunca há medicamentos. Na ONG, dirigida pela clínica Sambhavna, são guardados, além disso, arquivos de diversas investigações sobre a saúde daqueles que inalaram o gás, de seus filhos e até de seus netos.
Um caso é Adil Muhmada, uma adolescente cujas pernas finas e disformes não a sustentavam. A família de sua mãe vivia a 180 metros da fábrica da Union Carbide. Ela sobreviveu sem maiores complicações menstruais, não como as centenas de jovens que ficaram estéreis ou sofreram um ou mais abortos espontâneos. Ela se casou em 1989.
Leia também: Conheça cinco motivos para Al Qaeda abrir nova frente na Índia e arredores
Há mais de vinte organizações em Bhopal, quase todas criadas pelas vítimas, que mantiveram viva a briga contra a Union Carbide e Warren Anderson. Quase todas trabalham com as famílias e protestam contra o governo da Índia que, em 1989, lhes tirou o processo local das mãos, graças a um tecnicismo legal, e acordou uma compensação irrisória com a corporação estadunidense: 90% das quase 600 mil vítimas buscando compensações receberam 2.000 dólares. A luta é também, obviamente, para conseguir mais recursos para medicamentos, tratamentos e operações necessárias para continuar vivendo.
International Campagin for Justice in Bhopal
Também sem receber um centavo de apoio estrangeiro, as vítimas organizaram um museu da memória que foi inaugurado no ano passado, no dia 2 de dezembro.
[Um dos tanques de contêineres de químicos da Union Carbide, em Bhopal]
Ali, graças ao trabalho museográfico coordenado por Rama Lakshmi, é possível escutar os testemunhos dos sobreviventes, como o caso de Gangaram. É um pequeno recinto a duas ruas da planta, no qual se guardam roupas, a caixa de lápis de um menino ou as dezenas de fotos que mostram a morte e a dor. Tudo exposto sem usar químicos (plásticos ou materiais similares).
Deste lugar, explicou Lakshmi, “devemos sair pensando que foi trágico mas, uau, ainda continuando lutando”, porque as pessoas em Bhopal não veem outra opção para seu mal-estar contínuo, a morte cotidiana a qual vivem submetidos há tanto temp. “Daqui por diante”, diz Rajkumar Keswani, “o caminho não é diferente, é necessário continuar com essa luta de trinta anos por justiça.”