Como ser muçulmano hoje na França? É a pergunta que tortura boa parte dos 6,5 milhões de pessoas vinculadas com o islã no país, seja de maneira religiosa ou apenas cultural. A onda de atentados que tomou conta de Paris na semana passada — além das 12 vítimas no ataque contra a revista satírica Charlie Hebdo na quarta (07/01), uma policial foi morta no dia seguinte em outra ação e, quatro reféns foram assassinados num supermercado judeu na sexta (09/01) — colocou a população muçulmana no centro dos debates. Todos os meios de comunicação deram espaço a textos sobre a relação entre islã e violência, e, finalmente, sobre o lugar dos muçulmanos na França.
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O sentimento de união nacional não durou. Poucas horas depois dos atentados, Marine Le Pen, a líder do partido de extrema direta Frente Nacional, já reivindicava o restabelecimento da pena de morte, abolida em 1981. “A França deve estar em guerra contra o fundamentalismo islâmico, porque os extremistas estão, sim, em guerra contra a França”, acrescentou.
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Um dia após os ataques à Charlie Hebdo, a revista Valeurs Actuelles, que, do ponto de vista político, se encontra no limite entre a chamada direita republicana e a extrema direita, colocou na capa [na foto, à direita] uma mulher com o rosto coberto por um véu feito com a bandeira francesa. O título: “Medo na França: será que Houellebecq tem razão?”, em referência ao livro lançado no mesmo dia do atentado pelo escritor Michel Houellebecq. No romance Submissão, o autor imagina uma França que em 2022 elege um presidente muçulmano, passando a adotar costumes como a poligamia, o uso do véu por todas as mulheres e o ensino islâmico obrigatório.
[Capa da revista 'Valeurs Actuelles', após os ataques em Paris, se pergunta: “Medo na França: será que Houellebecq tem razão?”]
O mal-estar, porém, vai muito além dos discursos dos representantes assumidos da islamofobia, como Marine Le Pen, Michel Houellebecq e outros. Antes mesmo dos atentados, ficava muito claro que a preocupação em relação à “questão muçulmana” tinha virado um tema presente em todas as famílias políticas. Já não faz mais sentido considerar a Frente Nacional como responsável, agora, de uma retórica presente também no Partido Socialista. Aliás, uma parte da esquerda, com um discurso antirreligioso, contribuiu muito na criação desta islamofobia rotineira. “Há 25 anos que a sociedade francesa ouve que o muçulmano deve esconder suas crenças, como se o Estado laico significasse a desaparição da religião do espaço público”, explicou Edwy Plenel, autor do livro Para os muçulmanos em entrevista concedida em dezembro a Opera Mundi. Ele compara o atual surgimento da “questão muçulmana” ao da “questão judia” no século 19, quando se instalou o ordinário da discriminação contra os judeus.
Para o especialista em islã Olivier Roy, professor do Instituto Universitário Europeu e autor do livro Em busca de um Oriente perdido, a maioria da população francesa considera hoje o islã como uma religião perigosa, cujos textos fundadores seriam a favor da jihad para acabar com o Ocidente. “Parece que todo muçulmano tem um chip na cabeça que faria dele uma pessoa impossível a ser assimilada na sociedade francesa”, explicou, em tom crítico, em coluna publicada pelo diário Le Monde. “O único jeito para ele ser aceito é gritar muito forte e publicamente que ele é a favor do um islã liberal, feminista e gay-friendly”, continua.
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Domingo, milhares de muçulmanos decidiram fazer parte da manifestação gigante em Paris, a maior da história. Mas eles não foram vistos como franceses “normais”, a favor da liberdade de expressão e contra a violência. Os muçulmanos precisam condenar com ainda mais força os atentados, já que foram cometidos por “irmãos” em religião. Em francês, a palavra — difícil de traduzir — é muito forte: “désolidariser”, ou seja, quebrar a solidariedade implícita que existe entre muçulmanos, pedir desculpas pelo que os outros fizeram. Cada ator, escritor ou político de origem muçulmana convidado na televisão nos últimos dias foi obrigado por jornalistas, muitas vezes histéricos, a se “des-solidarizar” publicamente sob pena de ser visto como favorável ao terrorismo.
Agência Efe
Muçulmano reza em mesquita na cidade de Montpellier, em memória das vítimas dos ataques contra 'Charlie Hebdo'
“Os muçulmanos acabam sendo punidos duplamente” explica Olivier Roy. Por um lado, são acusados de viver em comunidade, fora da sociedade francesa. Ao mesmo tempo, é exigida uma reação da comunidade muçulmana, como um todo, contra os atentados. “De qualquer maneira, se é verdade que em alguns bairros e subúrbios existem pequenas comunidades muçulmanas, não é o caso em nível nacional”, aponta o acadêmico. Os muçulmanos da França nunca manifestaram o desejo de criar instituições representativas nacionais, e muito menos um “lobby” muçulmano. Não há nenhum projeto de criação de um partido muçulmano (apenas na ficção de Michel Houellebecq). Os políticos de origem muçulmana estão presentes em todos os partidos, inclusive na extrema-direita. E também não há uma grande rede de escolas muçulmanas.
Apesar de tudo, a mídia, bem como os responsáveis políticos pela tragédia, continua falando da famosa “comunidade muçulmana”: alguns, para condenar o fato de que ela não quer mesmo se integrar à sociedade francesa; outros, para apontá-la como vítima da islamofobia. “Ambos os discursos, opostos, são baseados na mesma fantasia de uma comunidade muçulmana imaginária. Não há uma comunidade muçulmana, mas, sim, uma população muçulmana, e entender isso já ajudaria a prevenir a histeria presente e futura”, conclui Olivier Roy.