“Confesso que não imaginava viver o suficiente para ver isso.” Foi com estas palavras que o escritor Fernando Morais comentou, em sua página no Facebook, a coletiva conjunta de imprensa dos presidentes Raul Castro e Barack Obama, após o encontro bilateral entre o cubano e o norte-americano. Uma percepção compartilhada por milhões de pessoas mundo afora, especialmente pelos que acompanharam de perto, como ele, os anos da Guerra Fria e o papel que a pequena ilha caribenha teve durante décadas nesta batalha ideológica.
Não menos atônitos, porém mais apreensivos, estão os europeus: o bloco, que vinha há alguns anos estreitando laços com Cuba, chegando a ocupar hoje a posição de segundo maior parceiro econômico da ilha, teme perder espaço — e dinheiro — com a reaproximação entre Washington e Havana.
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Agência Efe
Encontro entre líderes cubano e norte-americano, impensável há algumas décadas, aconteceu na VII Cúpula das Américas, no Panamá
Após mais de meio século sem relações diplomáticas, o encontro realizado no Panamá, durante a VII Cúpula das Américas, a primeira com Cuba presente, foi histórico. “Os Estados Unidos olham para o futuro. Não estou interessado em disputas que francamente começaram antes de que eu nascesse”, lembrou Barack Obama. A guinada na condução da política externa norte-americana é criticada por uma parte da direita republicana, mas sem grande convicção. “Até eles reconhecem que a abertura para Cuba traz potenciais oportunidades de negócios muito positivas para os EUA”, explica a Opera Mundi Nicholas Birns, professor na Universidade New School, em Nova York. O ritmo com o qual o bloqueio à ilha será levantado ainda não está definido, mas está claro que uma página foi definitivamente virada.
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A notícia, no entanto, foi acolhida com um pouco de receio na Europa, onde vários países estão se esforçando para que os Estados Unidos não voltem a ser a referência principal em Havana, como era o caso antes da revolução de 1959. O restabelecimento das relações entre Cuba e EUA “significa a queda de um segundo muro de Berlim”, declarou Frederica Mogherini, a alta representante da União Europeia para Política Externa e Segurança. Ela acrescentou que a UE queria “expandir relações com todas as partes da sociedade cubana”. Atualmente, a União Europeia é o segundo parceiro econômico de Havana, atrás apenas de Venezuela — assim, o temor europeu é, com a abertura econômica, perder espaço comercial com a reaproximação dos vizinhos norte-americanos.
Cuba e Europea
As relações entre a UE e a ilha estão conturbadas desde 1996, quando o bloco, então constituído por 15 países, adotou a chamada “posição comum” em relação a Cuba. Incentivado pelo premiê conservador espanhol José Maria Aznar, o bloco apoiou a última rodada de sanções norte-americanas contra Cuba, a Lei Helms-Burton. “Esta posição foi, sem surpresa, muito criticada pelas autoridades cubanas, paralisando as conversas entre Havana e a UE”, lembra a Opera Mundi Clément Doleac, pesquisador do Coha (Conselho de Assuntos Hemisféricos) em Washington. Apesar disso, 18 países europeus assinaram tratados de cooperação com Cuba, e a ilha nunca chegou a ser excluída das cúpulas bilaterais América Latina–Europa, organizadas desde 1994.
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No entanto, em julho de 2003, vários jornalistas independentes, ativistas sindicais e dissidentes foram presos em Cuba, acusados de conspiração; 75 pessoas foram condenadas a penas de 6 a 30 anos de prisão. Em seguida, o Conselho da UE congelou as relações diplomáticas com o governo cubano, suspendendo toda a cooperação com a ilha. Apos dois anos de tensão, a União Europeia decidiu finalmente deixar de convidar os opositores cubanos às celebrações oficiais, tal como as festas nacionais. Em consequência, Cuba normalizou os laços diplomáticos com vários países europeus, entre os quais França, Espanha (onde os socialistas tinham voltado ao poder) e Alemanha. A cooperação voltou, e foi muito ampliada em 2008, quando a ilha foi castigada por três furacões seguidos.
França aperta o passo
Desde 2010, uma batalha de influência tomou conta dos bastidores da política externa europeia. “Enquanto vários países, especialmente da região leste, continuavam favoráveis à 'posição comum', principalmente por causa da experiência histórica que sofreram com o autoritarismo soviético, outros países da UE tinham uma ideia mais flexível do que deveria ser a natureza das relações com Cuba”, analisa Clément Doleac. A despeito do racha, algumas nações decidiram acelerar a reaproximação, independentemente das decisões tomadas em Bruxelas. Assim, em abril de 2014, o chanceler francês, Laurent Fabius, aproveitou uma viagem na região para visitar Havana. Uma verdadeira reviravolta, já que, em 2003, o mesmo Fabius manifestava-se frente à Embaixada cubana em Paris, exigindo a libertação de presos políticos.
Reprodução/Governo francês
Ministro francês do Comércio Exterior, Matthias Fekl (à dir.) em visita a Cuba, às vésperas de viagem oficial do presidente Hollande
A França será também o primeiro país a enviar um chefe de Estado à ilha. O presidente François Hollande deve encontrar Raul Castro em Havana no dia 11 de maio, uma visita histórica, a primeira de um presidente francês. No passado, Cuba recebera apenas dois futuros governantes: Louis-Philippe d’Orléans, durante o exílio de 1798-1789 e François Mitterrand, então primeiro-secretário do Partido Socialista, em 1974. “Há muito tempo que a França está presente ao lado de Cuba, até durante os piores momentos, como o período especial”, insiste o secretário de Estado ao Comércio Exterior e ao Turismo francês, Matthias Fekl, que liderava uma delegação enviada à ilha em março passado para preparar a chegada de Hollande.
O secretário de Estado levou com ele o diretor-geral do Tesouro francês, para cuidar da questão da dívida cubana, mas também vários empresários. Por conta do vazio produzido pelas sanções entre os dez principais parceiros comerciais de Cuba, apenas quatro são membros da UE: Espanha, Holanda, Itália e França. Em 2013, as transações com a UE representaram 28,3% do comércio exterior de Cuba. “Não há dúvida de que empresas europeias vão sofrer se as relações entre EUA e Cuba forem plenamente estabelecida, sem restrições comerciais e econômicas”, acredita Clément Doleac. Por exemplo, a indústria de processamento de alimentos será severamente afetada por causa dos custos adicionais para a importação de produtos provenientes da UE em comparação aos custos reduzidos dos Estados Unidos. A Europa — e, especialmente, a França — pode perder o mercado do trigo, que representa US$ 150 milhões, se o embargo desaparecer.
Educação
“Nosso interesse vai muito além da área econômica”, pondera o ministro Matthias Fekl. Ter uma relação estreita com Cuba é também uma maneira, para Paris, de manter laços fortes com toda a América Latina. Após demonstrar um interesse fraco na região durante a gestão de Nicolas Sarkozy (2007-2012), a França voltou a olhar para América Latina, usando a sua ferramenta mais famosa, a cooperação universitária. É nesse âmbito, por exemplo, que o país participa do programa brasileiro Ciência Sem Fronteiras. “Não faz sentido pensar uma política universitária latino-americana sem incluir a primeira potência educadora da região, que é Cuba”, explica um alto funcionário do Quai d’Orsay, o Itamaraty francês.
Cuba é o país que recebe mais estudantes latino-americanos, “mais do que os Estados Unidos, Espanha ou França”, ressalta o funcionário. Além disso, a Aliança Francesa de Havana é proporcionalmente a maior do mundo, com 12 mil alunos, ou seja, um a cada mil habitantes da capital cubana. Dizem que ela deve este prestígio ao fato de que Che Guevara a frequentava durante sua adolescência na Argentina. Para Paris, como para toda Europa, conversar com Cuba acaba sendo uma maneira de conversar com toda América Latina.