O jornalismo é uma das profissões mais arriscadas atualmente na Turquia. O país coleciona um número aproximado de 30 profissionais de imprensa presos sob acusação de desacato ao presidente Recep Tayyip Erdoğan ou de integrar organizações criminosas. “Não recomendo a ninguém atuar como jornalista hoje na Turquia, é perigoso”, admitiu Mustafa Edib Yilmaz, editor de Internacional do jornal de maior circulação, o Zaman, e um dos poucos críticos ao governo.
Num país em que 80% dos meios de comunicação são controlados por grandes grupos econômicos e empresariais atrelados ao governo que, em troca, recebem favorecimento em licitações e contratos públicos, o cerco à imprensa livre e crítica tem ficado cada vez maior.
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Mustafa Yilmaz: “não recomendo a ninguém ser jornalista na Turquia atualmente”
Mustafa Yilmaz denuncia que a liberdade de imprensa está por um triz no país, que vem seguindo uma tendência antidemocrática. Fundado em 1996, o jornal Zaman – que tem publicação diária em inglês e turco – emprega mais de 30 colunistas, entre muçulmanos e cristãos e de origem não turca como armênios e gregos.
Virada antidemocrática
A grande virada antidemocrática no país remonta às manifestações na Praça Taksim durante a chamada “Primavera Árabe”, em 2013. O grande divisor de águas, segundo Yilmaz, foram os protestos e denúncias de corrupção publicadas na imprensa crítica, em dezembro de 2013. Na ocasião, séries de reportagens atingiram diretamente a alta cúpula do governo, inclusive o filho de Erdoğan, Bilal, acusado de especulação no setor imobiliário. No dia 17 de dezembro daquele ano, três filhos de ministros foram presos por corrupção e um montante de US$ 4,5 milhões, provenientes de desvios, foram encontrados na casa de um diretor de um banco dentro de caixas de sapatos.
“Pelo fato de escrevermos artigos sobre corrupção, o governo passou a ter o jornal como alvo de investigações e pressões. Antes não havia sinais de autoritarismo do Estado. Em dezembro de 2013 foram divulgadas informações em massa sobre escândalos de corrupção”, relembrou o editor do Zaman.
Esta postura do jornal mais crítico da Turquia não foi poupada. Exatamente um ano depois, a polícia turca bateu à porta da sede do grupo de mídia, na periferia de Istambul, com um mandado de prisão do editor-chefe Ekrem Dumanli.
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Manifestação em dezembro em frente ao Tribunal de Jusitça em Istambul pede libertação de jornalistas presos
Na ocasião, 26 pessoas em todo o país foram detidas, entre jornalistas, alto executivos e ex-chefes de polícia, considerados por Recep Tayyip Erdoğan integrantes de uma conspiração terrorista para tirá-lo do poder.
O editor-chefe do Zaman foi liberado após uma semana de interrogatórios e terá que aguardar o julgamento em liberdade. Além do jornal, o canal televisivo Samanyolu também sofreu baixas com o presidente do grupo Hidayet Karaca, produtores e roteiristas de séries televisivas. Karaca ainda permanece preso.
“Esta foi a primeira vez que vimos a polícia entrar em uma redação de jornal em tempos democráticos. A última vez que presenciamos algo parecido foi durante o regime militar na década de 80. Do Zaman, a polícia levou cerca de 10 profissionais. Aqui na Turquia uma pessoa pode passar meses presa esperando julgamento”, destacou Mustafa Yilmaz.
Detenções
O início deste ano foi marcado por mais prisões. Em janeiro, a jornalista holandesa Fréderike Geerdink, especializada na cobertura da questão curda, foi detida pela polícia antiterrorista. A repórter, que vive na cidade de Diyarbakir, a capital do Curdistão (no sudeste da Turquia), já vinha recebendo intimidações que a acusavam de promover propaganda em nome dos curdos.
No dia 2 de março, o repórter turco Mehmet Baransu também foi levado pela polícia antiterror sob a alegação de integrar uma organização criminosa. No início de 2010, Baransu divulgou arquivos sigilosos no jornal Taraf Daily. À época, ele pretendia revelar planos de oficiais militares e colaboradores que planejavam um golpe. Os envolvidos no caso foram sentenciados, em 2012, a 20 anos de prisão. O jornalista já foi preso quatro vezes. Em dezembro, ele também estava na lista dos detidos por criticar o governo e insultar o presidente.
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Redação do jornal Zaman, em Istambul
Tayyip Erdoğan não é mais a mesma pessoa de quando entrou no poder em 2002, relembra Mustafa Yilmaz. O atual presidente turco foi um dos fundadores da legenda islamita-conservadora, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), em 2001. Erdoğan iniciou seu governo como primeiro-ministro em 2003 e assumiu três mandatos consecutivos. No dia 10 de agosto de 2014, foi eleito presidente com 52% dos votos. A imprensa o acusa de tornar-se cada vez mais autoritário.
Oposição intimidada
“Após 12 anos no poder, toda a oposição foi intimidada e suprimida. Para uma democracia equilibrada é preciso independência de poderes, existência da sociedade civil, oposição política e imprensa livre. Estamos nos distanciando muito rapidamente dos valores democráticos. Isto era algo totalmente imprevisível, pois Erdoğan chegou a representar uma força democratizante com valores nacionais, crescimento econômico e liberdade religiosa”, analisou o editor do Zaman.
Segundo a Fundação de Jornalistas e Escritores GYV , existem cerca de 30 jornais e revistas impressos no país, dos quais 12 reproduzem a voz do governo, ma,s de fato, não mais do que 20% é livre, independente e abertamente de oposição. Ainda há nove canais de televisão ligados ao presidente.
“A Turquia está passando por uma era não democrática. A imprensa livre é um dos pré-requisitos para a democracia. A situação está muito instável por aqui, não sei o que esperar para este ano. Há bem pouco tempo éramos um país ocidental e moderno no Oriente Médio e, hoje, estamos seguindo rumo a um governo ditatorial. Isso é um retrocesso”, alertou Üsame Türk, da GYV.
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Para Shahin Alpay, Erdogan quer instituir uma democracia soberana “à la Putin”
Na opinião do analista político Shahin Alpay, da Universidade de Bahcesehir, em Istambul, Erdoğan quer instituir uma democracia soberana “à la Putin”.
Mudança no sistema de governo
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Alpay, que também publica como colunista na edição em inglês do Zaman, diz que existe ainda hoje uma dúzia de jornalistas na prisão e outras dezenas processadas por diversos motivos “particularmente por insultar o presidente”.
O chefe do canal Samanyolo, Hidayet Karaca, é quem está há mais tempo detido – cerca de três meses – por “supostamente formar uma organização terrorista ao transmitir um filme no canal cinco anos atrás”, comentou.
Perguntado se a mídia é livre no país, Alpay analisa que grande parte dos meios foram comprados por importantes homens de negócio interessados em licitações públicas. E “os jornais e emissoras de TV que controlam são veículos de propaganda para o governo espalhar mentiras sobre os partidos de oposição”.
Por trás de um discurso democrático, há o grande interesse em controlar a mídia, ressalta o cientista político. “Erdoğan quer controlar os meios de comunicação para prolongar seu poder e mudar o sistema de governo parlamentarista para uma presidência executiva”.
Na prática, explica Alpay, o presidente declarou recentemente “inválida a Constituição até que uma nova seja elaborada para servir aos seus interesses”. Com receio que escândalos de corrupção venham à tona e “respinguem ainda mais sobre sua família”, o presidente estabeleceu um pleno controle do judiciário, da polícia e de boa parte da mídia, diz.
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Reporter da emissora Samanyolo cobre manifestação a favor da libertação do dono do canal
As próximas eleições parlamentares estão previstas para o dia 7 de junho. Na avaliação de Alpay, serão decisivas para o futuro da Turquia. Se o AKP, partido governista, conquistar 330 dos 550 assentos, ele terá condições de adotar uma nova Constituição “com absoluto controle sem freios ou contrapesos”.
Enquanto isso, Mustafa Yilmaz, que há seis anos se dedica à profissão no Zaman, ainda alimenta esperanças de a situação se reconfigurar no país. “Acredito na dignidade do jornalismo. Estou pronto para pagar qualquer preço, inclusive ser preso. Eu sou editor e a possibilidade é alta”, disse.