Agência Efe
Na Copa América, setor vazio conserva assentos originais do estádio, em que se lê cartaz: 'Um povo sem memória é um povo sem futuro'
O Estádio Nacional do Chile, em Santiago, sediará neste sábado a final da Copa América entre a seleção local — que tenta conquistar o primeiro título de sua história — e a Argentina, mas qualquer que seja o resultado da partida, nenhuma glória esportiva poderá superar os rastros das histórias de violência, tortura e morte que ficaram nas grades, arquibancadas e nos pequenos complexos poliesportivos distribuídos pelo estabelecimento.
“Existe uma energia negativa naquele campo, não sei se é uma assombração. Enquanto o país não curar todas as feridas que foram abertas, não será possível comemorar nada lá”, lembra José Manuel Pérez, um dos sobreviventes da ditadura, ex-prisioneiro do estádio.
Desde setembro de 1973, a imagem do estádio está associada ao golpe de Estado de Pinochet, já que foi o local escolhido para abrigar os primeiros presos políticos da ditadura recém instalada, além de ser considerado o primeiro campo de concentração organizado pelo regime, ainda que de forma improvisada. Horas depois do bombardeio ao Palácio de La Moneda e da morte do presidente Salvador Allende (1970-1973), o Exército chileno começou o trabalho de reunir no palco futebolístico da capital centenas de prisioneiros, entre funcionários do governo, militantes comunistas e socialistas, líderes sindicais, artistas, acadêmicos e estrangeiros — um dos instrutivos mais conhecidos daquele golpe foi o de prender qualquer estrangeiro que estivesse andando pelas ruas de Santiago.
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Estádio Nacional do Chile, em Santiago, é considerado primeiro campo de concentração da ditadura chilena
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A reportagem de Opera Mundi conversou com três sobreviventes daqueles dois meses de horrores vividos dentro do maior complexo esportivo do Chile: José Manuel Pérez, Mario Urzúa e Ruth Vuskovic. Confira abaixo os principais trechos
Improvisação inicial
A decisão de levar as pessoas ao Estádio Nacional não foi planejada, pelo menos segundo o relato de alguns dos prisioneiros que primeiro chegaram ao recinto. Um deles foi o então sindicalista José Manuel Pérez, que relembra:
Cheguei durante a madrugada, quando os militares ainda não sabiam direito o que fazer com a gente, porque éramos mais de cem presos dentro dos vestiários, mas cada vez chegava mais gente, e os que vieram depois tinham que ficar sentados, às vezes horas debaixo de uma marquise, até que se decidisse onde seriam colocados.
Já Mario Urzúa, que era estudante e militante da Juventude Comunista, conta que “essa desorganização inicial permitiu que muitos, algumas dezenas, conseguissem escapar naqueles dias. Eu mesmo tentei, um amigo disse que conhecia uma passagem por trás de uma galeria. Eu era muito jovem e não tive coragem”.
Brasileiros
Havia muitos imigrantes no Estádio Nacional — sabe-se que uma das ordens no imediato pós-golpe era a de prender qualquer estrangeiro que estivesse andando pelas ruas de Santiago —, e os brasileiros estavam entre os grupos mais numerosos. “Havia até um rapaz vietnamita, que depois desapareceu, mas a maioria era de brasileiros, mexicanos e cubanos”.
Ruth Vuskovic foi uma das mulheres detidas no Estádio Nacional. Ela relembra:
Não havia nenhum rosto conhecido, e havia muita desconfiança, porque todos sabiam que havia gente infiltrada, mesmo entre as mulheres, então eu fiquei sentada num canto, tentei ficar calada e não entrar em depressão, quando uma moça senta do meu lado, era brasileira, a gente conversou muito, era muito amorosa, me abraçava. Não lembro o nome dela, mas sim do seu rosto e do seu carinho, e eu não sabia nada sobre ela, talvez fosse uma infiltrada, mas ela me ajudou muito.
Vuskovic também lembra de outra brasileira, que recebeu a notícia do marido falecido. “Era uma pessoa de quarenta e poucos anos, os militares levaram a ela os óculos e algumas outras coisas que eram do marido, que também era brasileiro e havia sido morto lá. Foi terrível, mas não era algo incomum. Nós a abraçamos muito, e ela chorava de soluçar”.
Dois dos brasileiros que passaram pelo Estádio Nacional são considerados vítimas oficiais pelos informes das Comissões da Verdade feitas no Chile: Wânnio José de Mattos Santos (o dono do óculos no relato acima) e Roberto Túlio Quintanilha. Em 2013, o brasileiro Dirceu Luiz Messias, que passou pelo Estádio Nacional, viajou ao Chile a convite do Museu da Memória, para um evento sobre os 40 anos do golpe, mas foi impedido de entrar, devido a uma lista de pessoas proibidas de ingressar ao país, na qual o seu nome havia sido instalado durante a ditadura e nunca foi removido. Depois de passar quase 12 horas preso no aeroporto, Messias foi obrigado a tomar outro avião de volta ao Brasil.
José Serra
O senador José Serra era um dos muitos brasileiros que moravam no Chile naquela época, por serem exilados da ditadura brasileira. Ele trabalhava na FLACSO (Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais), e, segundo o ex-presidente chileno Ricardo Lagos Escobar, que foi um dos seus amigos no Chile, “através desse trabalho, que lhe dava uma certa imunidade diplomática, ele conseguiu mandar muita gente pra fora do país e salvar essas pessoas”.
No dia 14 de outubro, o próprio Serra tentou fugir para a França, mas foi impedido pela polícia quando estava no aeroporto. De lá, ele foi levado, primeiro a uma delegacia, e depois ao Estádio Nacional, onde foi interrogado durante quatro horas – entre as 17h e as 21h30 do dia 15 de outubro de 1974, segundo documento desclassificado do Exército chileno ao qual Opera Mundi teve acesso, em 2013. Logo depois disso, ele foi solto e conseguiu asilo na Embaixada da Itália.
Comida e cobertores
Além da comida racionada, cada preso tinha também um cobertor — seu próprio cobertor. Quando eram chamados, os presos tinham que colocar o cobertor sobre a cabeça e acompanhar um soldado, ou até a tribuna presidencial, onde se tratava de interrogatórios ou acareações, ou para o setor do velódromo, no complexo esportivo, onde se realizavam as torturas dos prisioneiros homens. O militante comunista Alberto Corvalán, filho do senador comunista Luis Corvalán, foi um dos que sofreu as mais graves torturas, e numa ocasião chegou a ter que ser levado de volta aos vestiários numa maca improvisada com os cobertores de outros companheiros.
Dias depois, já um pouco recuperado, Corvalán decidiu dividir sua comida com os demais. Segundo Mario Urzúa, “era um pouco simbólico aquilo, e pode soar meio bobo, mas aquilo tinha uma força incrível, porque a gente sempre divida a comida e a água dando um pouco mais para os que estavam mais maltratados, e vimos que o Alberto ainda não estava recuperado, mas entendemos que aquele era um gesto de dignidade, e que tinha muita força, dava força para ele, e nós tínhamos que respeitar aquilo”.
Além da comida, também se dividia os cobertores. “Fazia muito frio, então todos deitavam um muito perto do outro, porque somente aquele cobertor não te esquentava nada, mas estando todos aglutinados, o calor humano produzia um efeito, mas também havia uma organização para que quem ficasse no meio um dia fosse para as pontas no outro”.
Alberto Corvalán era namorado de Ruth Vuskovic, e quando foram presos, eles tinham um bebê recém nascido de oito meses, “que por sorte, eu tive tempo de deixar com uma tia antes de ser presa”, relata ela. “Há poucos anos, eu li sobre casos de bebês que os pais foram presos e terminaram abandonados sozinhos no meio da rua ou numa praça, liguei para o meu filho no México (onde ela viveu exilada por dez anos) e disse ´olha só do que você se salvou?´”. Após sair do Estádio Nacional, Alberto Corvalán e Ruth Vuskovic conseguiram asilo na Bulgária, onde foram morar junto com o filho. Em 1975, Alberto faleceu por problemas de saúde decorrentes da tortura.
Arquivo pessoal
Ruth Vuskovic, com o marido, Luis Alberto Corvalán, e o filho, Diego, durante o exílio na Bulgária
9 de novembro
José Manuel Pérez foi um dos que ficou no Estádio do começo ao fim do horror. Em novembro, a ditadura começou a retirar os presos e levá-los a outros centros de detenção nas periferias de Santiago ou para as ilhas-presídios no extremo sul.
O esvaziamento do estádio foi motivado pelo jogo que a seleção chilena precisava fazer pela repescagem das Eliminatórias da Copa de 1974. O jogo seria contra a União Soviética, e o confronto de ida, em Moscou, havia terminado em empate por 0x0. Como os soviéticos não foram a Santiago para a revanche — segundo a versão oficial, por respeito ao que já se sabia que acontecia no estádio com os presos políticos —, o Chile ganhou os pontos do jogo e a vaga para o Mundial.
Antes disso, durante a retirada dos presos houve um processo de triagem, e José Manuel Pérez foi libertado, por ser considerado um sindicalista pouco perigoso, por não ter vínculos com nenhum partido político. “Isso também me gerou problemas, porque os demais suspeitavam que se você foi libertado é porque colaborou entregando companheiros, alguns amigos quiseram me matar, mas com o tempo eu os convenci de que não tinha dedurado ninguém”.
Mas a liberdade também levou Pérez a outro trauma:
Aquilo me fez perder totalmente a noção do tempo. Não sabia se havíamos passado, sei lá, quase um ano ali presos. Depois que saí, passei outros dias, não sei quanto tempo, sem poder sair de casa, tinha medo de tudo. Só depois que saí do país [para o exílio na Venezuela, entre 1974 e 1986], já com mais força, veio a vontade de entender aquilo. Busquei informações, naquela época não era tão fácil, e descobri que a data oficial da retirada dos últimos presos foi o dia 9 de novembro. Não faço ideia se eu estava entre os primeiros ou os últimos presos que saíram, mas decidi que o dia 9 de novembro seria o dia que eu queria celebrar, comigo mesmo, o dia da minha libertação. Nesse dia, eu acendo uma vela no meu quarto em homenagem aos companheiros que eu vi morrendo. Não é um agradecimento, porque até hoje não sei se o fato de ter sobrevivido pode ser considerado sorte.
Filhinha de papai
Ruth Vuskovic relembra o dia em que a levaram para interrogatório:
O pânico tomou conta de mim de uma forma estranha. Eu era filha de um ex-ministro do governo Allende [Pedro Vuskovic, ministro de Economia], e sentia que havia um certo classismo no tratamento, porque já era outubro e eu não havia sido nem interrogada nem torturada. Mas aí me chamaram, e quando eu chego, começam a me perguntar isso, isso, aquilo, e então, naquele pânico, não sei o que me deu, comecei a responder de uma forma que não era eu, me perguntavam onde estavam as armas que meu pai tinha, que ele e o presidente Allende escondiam armas, e eu dizia que não sabia, e fazia carinha de ingênua, e quando eles berraram insistindo eu disse 'ah, agora lembrei, papai adorava caçar, mas eu nunca ia com eles, porque o senhor não sabe, me dava tanta peninha ver os coelhinhos mortos', e assim foi o interrogatório inteiro, até que eles dever ter pensado, 'essa idiota não sabe nada de nada', e me soltaram. Mas da tortura em si, e outros tipos de violência que as mulheres sofreram no Estádio, acho que escapei sim por ser filha de ministro. Não se atreveram, como fizeram com outras.
O homem do capuz
Um dia, os militares sentaram os presos no chão em uma das tribunas e passou um sujeito com um capuz escoltado por três soldados, que olhava um por um os que estavam sentados. Os que ele apontava eram levantados e levados por outros soldados que estavam próximos. Quando passa do lado de Mario Urzúa, o homem do capuz para e olha para ele, que lembra de ter fechado os olhos. “Eu acho que fechei os olhos, mas às vezes minha memória diz que eu o encarei, e ele apontou o dedo na minha direção, e eu lembro perfeitamente da sensação de ter ficado em pânico, talvez eu tenha visto isso e depois fechado os olhos, enfim. Mas também lembro que o companheiro do meu lado, um sujeito alto, levantou e foi levado, ele foi o apontado”, conta Urzúa.
Urzúa diz que o escolhido voltou para o Estádio no dia seguinte:
A gente quase deu uma surra nele. Ninguém que havia sido escolhido podia voltar, não tinha acontecido ainda, e naquele momento parecia óbvio que ele era um infiltrado. A sorte dele é que alguns companheiros importantes resolveram defendê-lo, e foi sorte mesmo, porque naqueles dias ninguém sabia se podia confiar e em quem, e os militares sabiam muito fomentar essa intriga, com coisas como essa.
Um trabalho de investigação realizado pelo Centro Memória Viva do Chile aformou que o famoso “homem do capuz” se chamava Juan Muñoz Alarcón, e teria sido assassinado a facadas por membros do FPMR (Frente Patriótica Manuel Rodríguez, guerrilha ligada ao Partido Comunista), em 1977.
Derrota do Chile
José Manuel Pérez diz nunca mais voltou ao Estádio Nacional e que não gosta nem de ver jogos pela televisão. “Nunca gostei de futebol, mas não torço contra a seleção. Meus filhos e meu neto estão entusiasmado com a campanha do Chile, e, por eles, eu espero que a gente ganhe”.
Apesar dessa torcida, em seu coração está o sentimento de que o resultado de domingo vai ser negativo para o time da casa. “O Chile tem uma história cheia de temas não resolvidos, e o Estádio Nacional é um tema não resolvido”. Existe uma energia negativa naquele campo, não sei se é uma assombração, cada um acredita no que quiser, mas eu acho que existe uma força ali que é preciso respeitar. Ainda existe impunidade e não revelaram todas as verdades, porque ainda há documentos secretos. Enquanto o país não curar todas as feridas que foram abertas, não será possível comemorar nada lá”.