Um vídeo que mostra militantes arrancando um cachorro de um morador de rua em Paris provocou grande revolta na França nas últimas semanas e chamou atenção para o racismo e a xenofobia dentro do movimento de proteção aos animais, muitas vezes ligados a partidos de extrema-direita. Nas imagens, Anthony Blanchard, presidente da associação Causa Animal Norte, aparece empurrando um morador de rua de origem romena, chocando passantes e internautas pela agressividade.
Depois de uma grande mobilização, incluindo uma petição online assinada por quase 250 mil pessoas pedindo a devolução do filhote, o caso passou a ser investigado pelas autoridades francesas. Pega de surpresa com centenas de ameaças, a associação justificou o ato desajeitadamente, afirmando que o cachorro “havia sido drogado por um ‘Rom’ – uma expressão francesa pejorativa para designar ciganos. O viés racista e xenofóbico do argumento podia ser comprovado em outras publicações dos militantes, que faziam questão de realçar a origem romena do homem, identificado como Iulian Vaduva.
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Desrespeito com o morador de rua baseia-se no argumento da suposta barbárie dos ‘estrangeiros’, diz especialista
Para a associação, Vaduva não era um morador de rua, mas um cigano que fazia parte de uma rede de tráfico de animais. Segundo Blanchard, o cão não tinha registro, não era vacinado e havia sido drogado para ser mais dócil e comover os pedestres a darem mais dinheiro. Após investigações, no entanto, comprovou-se que todas as acusações eram falsas. Blanchard responde por roubo com violência e a associação se comprometeu a devolver o cachorro.
Não é a primeira vez que histórias falsas de maus-tratos de animais são usadas por militantes contra estrangeiros. Há dois anos, por exemplo, circulou a notícia de que jovens muçulmanos matavam cruelmente gatos na cidade de Roubaix, norte da França. O boato foi criado por um grupo de extrema-direita e acabou sendo bastante compartilhado na internet.
“Há uma forma de ecologia de extrema-direita, que se manifesta por um discurso misantropo e identitário. Esta tradição é antiga: na Alemanha, ela existe desde o final do século 19”, explica Stéphane François, politólogo francês especialista em direitas radicais. Em toda a Europa há núcleos de partidos ultraconsevadores que se ocupam exclusivamente da causa animal, sempre usando argumentos seletivos.
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Na França, por exemplo, há o exemplo da Marine Le Pen, líder do maior partido de extrema-direita do país, o Frente Nacional. Le Pen já denunciou diversas vezes a crueldade do método halal em matar os animais, que é praticado pela religião muçulmana. No entanto, nunca falou nada contra o fois gras, por exemplo, de fabricação tradicional francesa, criticado avidamente por defensores de animais.
“Os rituais de abate da religião muçulmana, mas também da judaica, é geralmente o primeiro argumento da extrema-direita neste sentido. Eles alegam que as minorias religiosas maltratam os animais e que é preciso reformar as leis para que estas práticas terminem”, explica Jean-Yves Camus, pesquisador francês e diretor do Observatório de Radicalidades Políticas da Fundação Jean Jaurès. Por outro lado, as práticas tradicionais europeias como a caça e as touradas são geralmente ignoradas.
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Sem-teto com filhote de cão na rue Auber, em Paris: histórias falsas de maus-tratos de animais é recorrente
Uma das maiores associações de proteção dos animais da França, a Fundação Brigitte Bardot, também tem laços próximos com a extrema-direita, principalmente por causa de sua fundadora, que já demonstrou inúmeras vezes sua admiração por Marine Le Pen. Em uma entrevista à imprensa local, a ex-atriz afirmou que Le Pen “é a única que pode salvar a França” e já chamou a líder ultraconsevadora de Joana D’Arc do século 21. Em 2008, Bardot foi condenada a pagar uma multa de 15 mil euros (cerca de 64 mil reais), por incitação ao ódio contra a comunidade muçulmana.
O próprio presidente da Causa Animal Norte tem um discurso extremista. Em 2013, Blanchard postou uma carta de indignação para o presidente da república, afirmando que o governo não dá a devida importância para os animais, “preferindo dar o dinheiro dos contribuintes franceses aos imigrantes”. Ele reclama ainda especificamente dos ciganos, enumerando os supostos beneficios dados pelos governantes: “Criação de vilas luxuosas para os Roms, gratuidade de transporte público para os Roms. E quem paga a conta? Os franceses”.
“Esta utilização é estratégica e age sobre dois sentimentos: o primeiro é o amor aos animais que é muito importante na França; o segundo é a suposta 'barbárie dos estrangeiros’, que na verdade quer dizer, implicita ou explicitamente, os muçulmanos. É uma forma de condenar certas práticas muçulmanas acobertado pelo amor aos animais”, argumenta François.