A Esma (Escola de Mecânica da Armada) – onde morreram centenas de militantes de esquerda, vítimas da brutalidade da ditadura militar do país (1976-1983) — não parece cenário de filme de terror, tampouco é sombria como se pode imaginar. Ao contrário, tem lindos jardins e prédios igualmente belos, contrastando com a história de horror que se passou naquela instituição. Também não fica em um local distante, afastado da sociedade, mas no centro do elegante bairro de Núñez, na capital Buenos Aires. O ar, no entanto, é pesado.
Vanessa Martina Silva/Opera Mundi
Entrada do Centro Cultural da Memória Augusto Conti
Em 2004, mais de 20 anos após o fim do regime militar, o ex-presidente Néstor Kirchner transformou o local no Museu da Memória e para a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. Emblemático, o espaço tornou-se símbolo do resgate das histórias de pessoas que ali morreram ou que nasceram em cativeiro, como é o caso de Ignácio Montoya de Carlotto, neto de Estela de Carlotto. Presidente e fundadora da Associação das Avós da Praça de Maio, Estela passou mais de 30 anos buscando pelo bebê de sua filha que, grávida, foi levada para a Esma. O bebê, chamado por ela de Guido, desapareceu logo após o parto.
Criado por camponeses, Ignácio estudou música e tornou-se pianista e compositor. Foi apenas em agosto de 2014, com 36 anos, que pôde conhecer sua verdadeira história e que seus pais verdadeiros eram Laura e Walmir Oscar Montoya. Em maio de 2015, ele entrou na Justiça para assumir definitivamente sua identidade e os sobrenomes da verdadeira família. Assim, de Ignacio Hurban, tornou-se Ignacio Montoya Carlotto.
Flickr/CC/Agencia de Noticias ANDES
Ignacio é diretor e professor da Escola Municipal de Música “Hermanos Rossi” da cidade de Olavarría, provincia de Buenos Aires
Com três discos realizados em parcerias com outros artistas e após três anos de trabalho com a banda Sep7eto, Ignacio escolheu a antiga Esma para fazer o lançamento do álbum no último dia 21 de novembro. Não foi a primeira vez que ele tocou no local. Antes de conhecer sua própria história, esteve naquele anfiteatro três vezes e, já como Ignacio Montoya Carlotto, outras duas.
Às vésperas do segundo turno da eleição presidencial e em meio a uma forte polarização da sociedade argentina, velhos fantasmas voltaram à cena antes da apresentação do grupo. Ao longo do dia, ocorreram duas ameaças de bomba no memorial e, consequentemente, foi necessário fazer a evacuação das pessoas nos prédios. O fato dificultou a divulgação e mobilização para o show, que só foi confirmado de última hora.
Vanessa Martina Silva
Além de Ignacio, grupo é integrado por Inés Maddio, Ingrid Feniger, Luz Romero, Valentín Reiners, Nicolás Hailand e Juan Simón Maddio
Mesmo com os percalços, na primeira fila estava Estela de Carlotto. Diversos primos, familiares e amigos de Ignacio também compareceram. Ao final do evento, após o abraço e a felicitação pela apresentação, Estela chamou, maternalmente, a atenção do músico: “Ignacio, você não fez a barba”. Sorridente, ele retruca: “é, ela é assim”. Após cumprimentar os demais presentes, Ignacio conversou brevemente com a reportagem de Opera Mundi:
Opera Mundi: Suas composições têm uma sensibilidade muito grande. Qual é sua inspiração para compor?
Ignacio Montoya Carlotto: São músicas que temos tocado há tempos. O disco pode ser dividido em duas partes. Isso não foi planejado. Quando terminamos, vimos que havia duas partes: A primeira é mais paisagística, tem muito a ver com a descrição do lugar que eu vivo, as paisagens, as coisas que ocorrem com os que vivem e trabalham ali.
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A segunda mais humanista e com mais ênfase, tem a ver com o que ocorre com as pessoas que vivem nessas paisagens. Só me dei conta disso quando as vi agrupadas.
Quanto de Ignacio Hurban e quanto de Ignacio Montoya Carlotto há nesse trabalho?
Há muita coisa em comum e este ‘novo eu’ tem feito com que a música seja mais despojada, por não ter tanto tempo para divagar e pensar nas ideias. Este ‘novo eu’ tem mais cuidado com algumas coisas e menos com outras. E é mais exposto, muito mais exposto.
As últimas canções, como a “Vocação de Pássaro” — que foi minha última composição — é uma mostra disso, é bem mais exposta, com essa paixão pelo inevitável, com o que ocorre e não se pode mudar.
O que significa para você fazer essa apresentação aqui na Esma após as ameaças de bomba feitas ao longo do dia?
Dá um pouco de tristeza porque nós pensamos em fazer a apresentação oficial do disco com os convidados e não pudemos fazer como queríamos. Também não conseguimos falar com a imprensa, em parte porque o único assunto de que se fala é de eleições.
Agora, essas ameaças de bomba… Me dá um pouco de tristeza que o país esteja passando por isso depois de ter passado por tantas coisas, e muitas delas ocorreram aqui mesmo. Então penso que temos que brigar, ir contra isso e também temos que construir, com amor. Foi por isso que decidimos fazer a apresentação mesmo assim. Esse é o meu aporte à causa da paz em geral.
Vanessa Martina Silva
Prédio da Esma tem diversos dizeres que remetem à importância da memória para evitar a repetição de crimes de Estado
Quando nós estivemos com o papa [Francisco, no começo de novembro], ele disse que a coisa que mais teme é essa guerra em cotas que estamos vivendo. Essa violência que se magnifica na guerra é a amplificação estúpida de várias violências que ocorrem todos os dias.
Você falou durante a apresentação que usa sua arte pelos direitos humanos…
Eu não sou um militante dos direitos humanos e não serei porque já estou velho para isso. Eu escrevi essa música [Para a Memória] que é anterior a tudo o que ocorreu.
E acho que temos que seguir cantando essa canção, mas não sou ativista, sou músico, e se minha música requer que se fale dessas coisas, eu falo.
Assista à apresentação da canção “Para a Memória”: