A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou nesta terça-feira (31/05) que as mulheres que vivem em áreas afetadas pelo surto do vírus zika no Brasil considerem adiar a gravidez para evitar “consequências fetais” relacionadas ao vírus como má-formações e microcefalia. Para especialistas ouvidas por Opera Mundi, no entanto, a orientação da entidade não deve surtir efeito e expõe a necessidade de assegurar os direitos reprodutivos das mulheres.
A médica sanitarista Tania di Giacomo do Lago, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, considera importante o alerta feito pela OMS sobre os riscos de uma gravidez em áreas afetadas diante da gravidade da situação. Entretanto, ela entende que a recomendação penaliza as mulheres na medida em que se atribui a elas a responsabilidade de levar adiante uma gestação quando há risco para o feto em decorrência do zika. “Não se pode culpabilizar as mulheres”, diz Lago.
Agência Efe / Arquivo
Gestantes em hospital em Cúcuta, Colômbia: país é o 2o mais afetado após Brasil
A professora também acredita que a orientação da OMS não deve ser efetiva em um cenário como o brasileiro. “Isso [a recomendação da OMS] é ignorar que metade das gestações em países como o Brasil não são planejadas”, afirma. De acordo com o estudo Nascer no Brasil, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz entre 2011 e 2012, 55% das brasileiras engravidam sem ter planejado.
'Gestação é decisão da mulher'
Já a pesquisadora Débora Diniz, co-fundadora do Instituto de Bioética Anis, entende que a decisão de optar por uma gestação cabe apenas à mulher. “A recomendação de adiar gravidez não pode ser nunca a política recomendada por um Estado ou organização internacional, é uma decisão que só pode ser de cada mulher singular”, afirma.
Ela diz que a decisão da OMS, uma agência das Nações Unidas, está em “curto-circuito” com outra posição da ONU sobre a questão. Em fevereiro, o Alto Comissário de Direitos Humanos das Nações Unidas, Zeid Ra'ad Al Hussein, afirmou que países que sofrem com o surto do vírus zika devem assegurar os direitos reprodutivos das mulheres, oferecendo aconselhamento e acesso a contracepção e permitindo a interrupção da gravidez.
Na ocasião, o representante da ONU criticou a recomendação feita por governos como o de El Salvador de que as mulheres adiassem a gravidez para evitar a ocorrência de microcefalia no feto relacionada ao zika. “O conselho de alguns governos para que as mulheres adiem a gravidez ignora a realidade de que muitas mulheres e meninas simplesmente não podem exercer o controle sobre se e como ou sob que circunstancias elas vão engravidar, especialmente em um contexto em que a violência sexual é tão comum”, declarou Hussein em comunicado.
Para Débora Diniz, é “incompreensível” o fato de a OMS recomendar que mulheres não engravidem cerca de três semanas depois de declarar que não haveria motivo para transferir a sede dos Jogos Olímpicos, que serão realizados no Rio de Janeiro em agosto, avaliação reiterada nesta terça-feira.
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Agência Senado
A pesquisadora Débora Diniz: 'é preciso garantir direitos reprodutivos das mulheres e não ingerir injustamente em suas decisões'
“A única conclusão possível é que, na avaliação para o pronunciamento sobre as Olimpíadas, não se deu a devida importância aos riscos de saúde às mulheres em idade reprodutiva”, afirma Diniz.
Direito ao aborto seguro
A recomendação da OMS, segundo a pesquisadora, “necessariamente provoca o reagendamento dos direitos reprodutivos das mulheres na pauta nacional”.
“Não há como falar em adiamento de gravidez sem garantir direito ao planejamento familiar, acesso a contraceptivos, acesso à informação e a garantia de poder tomar decisões reprodutivas livres e informadas, inclusive de podermos falar em direito ao aborto seguro nesses casos”, afirma Diniz.
A pesquisadora é parte do grupo de advogados, acadêmicos e ativistas que articulou a discussão sobre aborto de fetos anencéfalos no Supremo Tribunal Federal, acatada em 2012, e que apresentará em breve perante o STF uma ação similar em prol do direito ao aborto em gestações de fetos com microcefalia. “Para a proteção efetiva do direito à saúde das mulheres, é preciso garantir seus direitos reprodutivos e não ingerir injustamente em suas decisões”, diz Diniz.
Tânia di Giacomo do Lago qualifica como “tímidas” as posições da Organização Mundial da Saúde na defesa dos direitos reprodutivos das mulheres. De acordo com a médica, a postura da OMS no momento deveria ser no sentido de orientar os Estados-membros a adotarem medidas que contribuam nesse sentido, como ampliar o oferecimento de métodos contraceptivos e à contracepção de emergência (pílulas do dia seguinte).
“Os Estados-membros deveriam fazer o que não fizeram até agora, que são ações concretas para [possibilitar] o sexo seguro”, diz a médica, que aponta também a necessidade de que os países considerem permitir a interrupção da gravidez em casos de zika.
Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas
O mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus zika, também transmite o vírus da dengue e da febre chikungunya