As Copas do Mundo de futebol têm ajudado a sustentar ditaduras (como
Argentina 1978), melhorar a infraestrutura de um país (como México
1986) ou projetá-lo como destino turístico. Mas talvez nunca tivesse
havido uma Copa que fizesse com que o país anfitrião modificasse seu
sistema judicial.
Para que a África do Sul pudesse sediar a Copa encerrada no último domingo, a Fifa exigiu que cada cidade-sede aprovasse
uma série de leis destinadas a proteger os interesses comerciais da
Fifa e aplicar punições rápidas em crimes comuns. O resultado foi a instituição de 54 “tribunais especiais” temporários que foram mais velozes e rigorosos que a Justiça comum, mas criaram polêmica. A importância da experiência sul-africana será ainda maior se a mesma exigência for feita ao próximo anfitrião do mundial, o Brasil.
Na África do Sul, em média, ocorrem 50 homicídios por dia. A cada ano,
cerca de 18 mil casas são assaltadas e os ladrões roubam mais de 15 mil
carros. Não surpreende, então, que, como um esforço para melhorar a
segurança durante a Copa, o governo sul-africano tenha gastado cerca de
10 milhões de dólares nos “tribunais especiais”, que trabalharam
quase 15 horas por dia para resolver casos envolvendo quem visitava o
país.
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Esses tribunais investigaram roubos a turistas nas ruas, casos de
revenda de ingressos, infrações por parte dos torcedores mais violentos
e até os esforços de empresas não autorizadas pela Fifa de usar o
mundial para promover suas marcas. E, em um país com um sistema
judicial e sobrecarregado como o do Brasil, os tribunais do mundial
funcionaram com uma eficácia similar aos da Holanda.
Por exemplo: uma mulher roubava a carteira de uma turista japonesa na Cidade do
Cabo, por exemplo. No dia seguinte, o caso era ouvido e a acusada,
sentenciada. Ou dois homens armados assaltavam um grupo de jornalistas na
quarta-feira, a polícia os prendia na quinta e, na sexta à noite, eles
já haviam sido julgados e começavam a cumprir penas de 15 anos de
prisão.
O professor de direito Pierre de Vos, da Universidade da Cidade do Cabo, diz ao Opera Mundi estar surpreso com a eficácia dos julgamentos na Copa.
“Aqui normalmente é preciso esperar de sete meses a um ano para que o
caso chegue aos tribunais. O suspeito que não pode pagar a fiança tem
de passar esse tempo na cadeia”, diz o especialista em direito
constitucional.
Os processos nesses julgamentos foram iguais aos de um tribunal normal,
com promotores, advogados de defesa para os acusados e juízes que
trabalham nas cortes regulares normalmente. A diferença, segundo De
Vos, é que os tribunais especiais dedicaram-se exclusivamente aos casos
de pessoas envolvidas na Copa – turistas, jornalistas, cambistas. Por
isso, “não era preciso incluir o caso em uma lista de espera para que
ele fosse ouvido”.
“Isso se justifica na medida em que, se um estrangeiro comete um crime,
pode ser julgado antes de deixar o país”, argumenta o ativista Patrick
Bond, diretor do centro de iniciativas sociais da Universidade de
KwaZulu-Natal.
Eficácia x Imagem
De fato, os tribunais processaram vários estrangeiros, entre eles um grupo de hooligans argentinos e um nigeriano condenado a três anos de prisão pelo porte de mais de 30 ingressos para revenda.
Mas a eficácia na condução desses casos tem um alto preço, já que são
necessários promotores, policiais e estruturas criadas exclusivamente
para a ocasião. Com cada processo da Copa custando cerca de 100 mil
dólares, Bond acredita que os tribunais especiais são um gasto
“desnecessário” em um país pobre, onde a maioria dos crimes violentos
não recebe nenhuma sanção e onde muitos réus ainda aguardam a sentença
na prisão.
“Isto é só mais uma demonstração de que o governo está disposto a fazer
qualquer coisa para dar ao mundo exterior a impressão de que este é um
país eficiente, onde tudo funciona bem”, acrescenta o ativista social,
que também teve seus próprios problemas com os tribunais especiais.
Emboscada
Bond e dois colegas de trabalho foram presos quando distribuíam
panfletos políticos no Fan Park de Durban, área de concentração de
torcedores.
“Estávamos convidando as pessoas a participar de uma manifestação
contra a xenofobia e a violência dirigidas aos imigrantes de outros
países africanos”, explica Bond. “A polícia nos prendeu por algumas
horas, acusando-nos de fazer ambush marketing (ou ‘marketing de emboscada’) e ameaçando nos submeter a um dos tribunais especiais”.
Esse pacote de leis especiais, ou bylaws,
como são chamadas no país, inclui provisões contra a promoção de
produtos ou serviços não autorizados pela Fifa ou pelos patrocinadores
do mundial.
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“As leis especiais determinavam que, durante a Copa, nos lugares públicos como aeroportos, estações de trem ou arredores dos fan parks, não se podia fazer publicidade que não fosse aprovada pela Fifa e seus patrocinadores”, explica o advogado Pierre de Vos.
Limites
Mas as leis também proibiam o ambush marketing nos
estádios. A prática foi definida como “atividade promocional por meio
do uso de palavras, sons, ações ou qualquer outro método que faça
referência ao mundial, ou use o campeonato para fins promocionais”. A
punição podia ser multa de até 1,5 mil dólares ou seis meses de prisão,
e os tribunais especiais foram encarregados de impor as sentenças.
No entanto, para De Vos, a definição de ambush marketing exigida pela Fifa e aprovada pelos governos municipais foi tão ampla que pode ter violado a constituição sul-africana.
“Os cidadãos foram proibidos de utilizar o mundial para fins comerciais
ou políticos”, explica o professor de direito. “Esses limites à
liberdade de expressão são tão amplos que, levados a um tribunal
superior, seriam difíceis de justificar.”
Elogios e críticas
Os organizadores da Copa se disseram satisfeitos com o trabalho dos
tribunais especiais, que em um mês ouviram mais de 75 casos e
decretaram mais de 30 sentenças. E a maioria dos turistas parece ter
ido embora com a impressão de que a África do Sul era mais segura do
que esperavam. Alguns especialistas em segurança argumentavam que,
depois do mundial, os tribunais especiais deviam ser habilitados para
se dedicar a crimes comuns que dificilmente são punidos no país, entre
eles invasões de domicílio e assaltos a estabelecimentos comerciais.
Ativistas sociais, no entanto, trabalham em uma estratégia legal contra
as leis que limitaram a liberdade de expressão. Eles planejam
aproveitar o rastro da Copa, agora, para promover a discussão de
problemas como a discriminação, o desemprego e os poucos benefícios
que, segundo eles, o evento trouxe para a África do Sul.
“Quando me prenderam e me acusaram de fazer ambush marketing, eles não
podiam comprovar que eu estava fazendo propaganda de algum produto ou
serviço”, afirma Patrick Bond. “Eu disse a eles que estava apenas
promovendo a constituição sul-africana, e isso os deixou um pouco
confusos”.
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