Em uma das centenas de casas que cercam a Universidade de Havana, na capital de Cuba, há um alpendre com pouco menos de dois metros de extensão, um modesto jardim e duas cadeiras de balanço. Há também três colunas brancas, de pintura desgastada a ponto de já permitir ver o cimento, e entre elas há duas pequenas mesas de lata. Atrás desse balcão improvisado está Simone Cruz, uma havaneira de 27 anos, graduada em gastronomia.
Simone fala baixo e, quase sem se mexer para se aproximar de quem a chama da calçada, conta que ainda não tem prática na nova profissão: vendedora de bijuterias e acessórios para cabelo. Ela deixou há apenas três meses seu emprego de assistente em um refeitório escolar. O convite veio de sua vizinha e agora sua chefe, dona da casa e do estabelecimento montado oito meses atrás: “Trabalho um pouco mais, mas ganho mais também. Eu tive medo, mas preferi arriscar e mudar”.
Fotos: Daniella Cambaúva/Opera Mundi
Simone admite que foi um “longo e penoso processo” deixar a gastronomia – profissão para a qual estudou na universidade mais antiga do país, onde também se formou Carlos Manuel de Céspedes, líder do movimento de independência do país, e o revolucionário Fidel Castro. Apesar dos riscos e do medo, sentiu-se motivada a apostar na mudança para poder juntar algum dinheiro. Sua meta é abrir um pequeno restaurante em sua própria casa.
“Quero fazer e servir cajitas”, diz ela. As cajitas são uma tipo de “quentinhas”, geralmente compradas por trabalhadores e estudantes na hora do almoço. Mas, frisa Simone, “ainda preciso de dinheiro”. Em meia hora de caminhada pelas ruas de Havana é possível encontrar dezenas de cafeterias e pequenos restaurantes domésticos, como o que Simone pretende abrir, e que são montados na frente das casas, aproveitando-se de uma garagem ou uma varanda, com um ou dois empregados.
O cardápio tem cachorro quente, pão com queijo ou refeições em cajitas ou pratos de plástico que não custam mais de dez pesos cubanos (o equivalente a 60 centavos de reais).
Esses pequenos estabelecimentos comerciais farão cada vez mais parte, de agora em diante, da “atualização do modelo econômico cubano”, a mais importante política econômica anunciada no país nos últimos anos, recebendo parte dos funcionários estatais que foram ou estão sendo cortados. Pelo menos, é o que planeja o governo da ilha. “É preciso apagar para sempre a noção de que Cuba é o único país do mundo onde se pode viver sem trabalhar”, disse o presidente Raúl Castro para definir um dos pilares das mudanças discutidas e ratificadas no Sexto Congresso do Partido Comunista, em abril de 2011.
Ampliação do trabalho
Em meados de 2010, quando esse plano de atualização do modelo foi mencionado pela primeira vez, os cubanos foram avisados de que a política trabalhista na ilha seria alterada logo na primeira fase, prevista para ser concluída até o primeiro trimestre de 2012. O objetivo é enxugar o excesso de funcionários da máquina estatal e, simultaneamente, ampliar as oportunidades não estatais. O objetivo é aumentar a produtividade e, gradativamente, melhorar os salários no país, onde atualmente a taxa de desemprego é de apenas 2%.
Nas palavras de Raúl, “fazer com que todas as pessoas aptas se integrem ao trabalho”. Poucos meses após o primeiro anúncio, o governo ratificava a decisão que mudaria a estrutura do emprego em Cuba: de um lado, demissão de 500 mil trabalhadores no setor estatal; do outro, ampliação do trabalho fora do controle do Estado.
A meta é “flexibilizar o trabalho por conta própria”, como diz Carlos Mateo, vice-ministro de Seguridade Social. Ao Opera Mundi, Mateo afirmou que esta alteração “permitirá ao Estado concentrar-se no processo de ajustes”.
O trabalho fora do Estado já não é uma novidade na ilha. A modalidade foi introduzida nos anos 1990, quando o país enfrentou a dura crise causada pela queda da União Soviética. O país viveu “uma economia de guerra”, como definem os próprios cubanos ao relatar as dificuldades enfrentadas naquele momento.
Na época, foram concedidas as primeiras licenças para os trabalhadores por contra própria e surgiu um novo tipo trabalhador: o contapropista. Foi aí então que, rapidamente, apareceram pelas ruas de Cuba paladares, como foram chamados os pequenos restaurantes particulares, lanchonetes, cabeleireiros e táxis privados. Ao todo, naquele período, foram concedidas 306 mil autorizações. No fim da década, essas licenças deixaram de ser outorgadas.
Antes, a contratação de mão-de-obra só era permitida em 83 das 178 atividades que o setor privado desenvolve no país. Agora, as 178 são autorizadas a ter empregados. De outubro de 2010 a julho de 2011, 325.947 autorizações foram outorgadas. A expectativa do governo era atingir esse número somente no final de 2011. A área mais procurada (22% das solicitações) foi a de venda e elaboração de alimentos, seguida por negócios particulares (17%), transporte de passageiros (6%) e aluguel de casas (3%).
Daniella Cambaúva/Opera Mundi
Segundo dados do Ministério da Seguridade Social, 68% dos cubanos que solicitaram licenças como autônomos estavam desvinculados do mercado de trabalho – já trabalhavam como contapropistas na informalidade, sem ter licença concedida – e 30% correspondem a ex-empregados estatais e aposentados. Para pedir uma concessão como essa, segundo o vice-ministro, é preciso apresentar documentos, atender às exigências – como respeitar os edifícios tombados – e estar de acordo com normas sanitárias.
Ricardo Alarcón, presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular – o Congresso cubano –, comemora esse processo, considerado pelo governo um processo de descentralização. Para ele, não é necessário que o Estado administre barbearias ou venda de raspadinhas de gelo e fruta, populares durante o verão cubano. “É inútil, custoso, vai contra o pressuposto do Estado e favorece a corrupção. Você precisa quase criar um ministério para fazer o que uma pessoa sozinha é capaz de fazer”, ironizou.
Além das novas concessões, os contapropistas conviverão com uma novidade conhecida por poucos cubanos: pagar impostos sobre a renda e contribuir para a seguridade social. Os valores anunciados variam entre 25% e 50% da renda líquida anual dos pequenos empresários. Estarão isentos aqueles que ganham menos de cinco mil pesos cubanos anuais. Foi fixado também um imposto de 10% para quem alugar a casa ou a garagem, piscina ou um quarto.
Já a contribuição para a seguridade social deve ser de 25%, sendo que os contapropistas é que deverão arcar com os custos dos empregados contratados.
Outra mudança está na política salarial, a começar pela diferença entre o maior e o menor salário do país, segundo Mateo. O valor mais alto é de 650 pesos, que é quanto recebe hoje um ministro, e o mais baixo é de 225 pesos cubanos, salário dos auxiliares de limpeza. “Os salários podem aumentar um pouco, mas adiantar a cifra é complicado”.
Máquina estatal
A taxa de desemprego de 2% é um número considerado baixo para os padrões latino-americanos. No Brasil, o mesmo índice chegou a 6,3% em 2010, na Colômbia, a 6,9%, no Chile, a 8,7%, e no México, a 5,6%. Essa é uma das “conquistas da Revolução” da qual Carlos Mateo tem orgulho de falar: “Nunca houve uma crise de desemprego, o Estado é absorsivo”.
O vice-ministro trata a demissão dos 500 mil funcionários públicos com naturalidade. Ele reconhece o risco de aumentar o índice de desemprego no país, mas garante que a economia cubana poderá absorver grande parte dessa mão-de-obra. “O contapropismo é uma alternativa de trabalho.
Os que ficarem disponíveis poderão trabalhar na agricultura”, exemplificou. Para Mateo, Cuba enfrenta hoje uma queda na eficiência, resultado perverso da política do pleno emprego, uma das vitrines do “socialismo real”: o empregado sabe que, se seu desempenho não for satisfatório, na pior das hipóteses, ele será transferido de cargo. Quase 80% dos cinco milhões de trabalhadores cubanos são servidores públicos.
Calcula-se que um milhão não tem função específica ou produtiva. Por isso, a possibilidade de ser demitido criou uma insegurança inédita para o trabalhador cubano, admitiu o vice-ministro, mas que deve aumentar a eficiência da produção.
Enxugar a máquina estatal, segundo ele, é fundamental para atingir os objetivos propostos no Congresso: elevar salários, aumentar exportações, substituir importações e crescer na produção de alimentos. “Sem a elevação da eficiência e também da produtividade não podem se sustentar as despesas sociais próprias do sistema socialista, esfera na qual temos o dever de ser racionais, poupando bem mais sem sacrificar a qualidade”, analisou.
O critério utilizado para escolher os 500 mil se baseará na “idoneidade demonstrada”, baseada em avaliações de eficiência, qualidade, produtividade, conhecimentos, disciplina e qualificação.
Os trabalhadores dispensados receberão um mês de salário, a partir do qual, se não conseguirem emprego, também receberão 60% numa escala segundo a antiguidade, que termina aos cinco meses para quem tiver mais de 30 anos de serviço. A fórmula modifica a política anterior em que havia um seguro-desemprego que, em alguns casos, prolongava-se indefinidamente.
As reformas na ilha provocam em Havana, inevitavelmente, a dúvida se o trabalho por conta própria e revisão de salários não provocarão desigualdade social. Os funcionários do governo ouvidos pela reportagem, neste caso, respondem citando, cuidadosamente, uma frase de Raúl Castro: “O socialismo significa justiça social e igualdade, mas igualdade de direitos, de oportunidades, não de renda. Igualdade não é igualitarismo”.
Artigo publicado originalmente em Opera Mundi
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