A entrevista a seguir aconteceu em Belém, no Pará, dois dias depois que vi no palco do Se Rasgum, festival ponta firme de rock e sons do norte, uma mulher cantando uma música com a letra safada assim: “Você me leva à loucura quando você me beija com esse corpo suado e essa boca com sabor de cerveja”. Ionete da Silveira Gama (ou só Onete) cantava carimbó, ritmo típico e respeitado do Pará, com tambores e instrumentos de sopro.
Se você acha que o som era um desses hits chiclete com tecladinho e sintetizador, que a cantora tinha uns vinte e poucos anos, vestia shortinho piriguete de mostrar a polpa da bunda e chacoalhava o silicone pra galera, pode quebrar esse estereótipo em 37 mil pedaços. Ela usava um vestido rodado branco, todo comportado e estampado com flores vermelhas; dançava com discrição, remexendo de leve a cintura, e tinha, veja só, quase 70 anos, alguns a menos do que minha avó, o que dava, sem dúvida, todo o peso e moral pras entrelinhas úmidas das letras.
Dona Onete é uma das mais importantes cantoras e compositoras de carimbó do Pará. Nasceu em Cachoeira do Arari, noroeste do Estado, canta desde os 11 anos de idade, nunca gravou um CD, embora já tenha feito centenas de shows pelo Brasil – solo e acompanhada por figurões; compôs mais de 400 canções, letra e melodia, sem saber tocar nenhum instrumento. Foi militante pau-pra-toda-obra do PT na década de 1980, participava de encontros nacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores), brigava, cantava nas festas do partido e deixava os homens babando por sua voz e presença – dizem até que ela dançou cheek–to-cheek com Fidel Castro num desses encontros.
– E foi, dona Onete?
– Pois foi, minha filha. Durante o show, pirei quando ouvi aquela primeira letra. Fiquei imaginando dona Nair, minha avó, no lugar de dona Onete.
Respeitaria ainda mais a velhinha. Dona Onete cantava acreditando na letra, acreditando naquele erotismo caboclo de “corpo suado, gosto de cerveja” e tal não como um lance pontual na vida, mas como parte essencial dela. Sem safadeza o amor não sobrevive, era o que ela parecia dizer. Na segunda música, fiquei de cara ao ver a molecada com menos de 30 anos se acabando de cantar as letras de cor e continuei pirando enquanto ouvia as outras canções que, em sua maioria, iam pelo mesmo caminho da primeira.
No fim da apresentação, fui pedir uma entrevista com dona Onete porque, certeza, ela teria algo importante para me dizer sobre o amor e a safadeza da humanidade. E ela disse. Anota aí: “Pra curar os males do amor e do sexo burocrático dessa vida cada vez mais asséptica e chata, com gosto de Listerine e cara sem graça de virilha cavada, a solução é suor, birita e mandinga paraense”.
Sabrina – Suas letras são meio sensuais, né, dona Onete?
Dona Onete – No meu show eu digo: olha, gente, essa música é pra beijar na boca. Existe coisa melhor? Eu já fiz muito isso. A Ivete Sangalo canta isso agora, mas eu já beijava há muito tempo (risos). Tocava esses bregas bonitos, eu dançava muito, aí eu beijava, dançava, era assim, era a felicidade. Aí eu ia pra casa, escovava o dente, tomava leite, dormia e pronto.
Sabrina – Então a senhora já viveu todas essas coisas que canta?
Dona Onete – Muitas das coisas, sim, outras são histórias de amigas minhas. Eu só canto coisa de vivência.
Sabrina – A senhora gosta de beijo com gosto de cerveja?
Dona Onete – Quem valoriza um copo de cerveja? Um motorista me ouviu ensaiando e disse: Dona Onete, eu vou dizer pra minha mulher “tu briga porque eu bebo cerveja, mas a Dona Onete diz que a boca cheirando a cerveja é que é bom”.
Sabrina – Gosto de cerveja na boca de homem é bom?
Dona Onete – Tem beijos de vários sabores, né? Pode ter gosto de café, de goiaba, de manga. O beijo com gosto de cerveja ajuda muito, desde que não seja exagerado. Todo mundo enfeita uma cama pra ter uma relação (sexual), acha que uma cama de cetim, não sei o que lá, é bom, que vai ajudar, mas nada disso resolve (a melhorar o sexo).
Sabrina – O que resolve?
Dona Onete – É o desejo. Se o homem te desejar e você desejar o homem, acontece em qualquer lugar.
Sabrina – Em qualquer lugar?
Dona Onete – Qualquer um. Não vê na música “Paixão cabocla” (na música, Onete canta que deseja o homem no chão, na rede, na canoa)? O caboclo não tem isso, não tem cama de cetim, nada. É na cama, no chão, no rio, no igarapé, sei lá por onde. Aí acabou, tá ali, os dois tão vivos, tá ótimo.
Sabrina – Tem que ser bem natural, né?
Dona Onete – Rola melhor com o gosto do seu suor, com o suor dele. Já pensou você, pra ter uma relação com o teu marido tem que ir tomar banho, passar isso e aquilo no corpo? Isso nem resolve, ele nem tá sabendo que você passou isso. Ele tá é interessado em outra coisa, é o instinto animal, é o cheiro do suor. Amor é pele, meu bem. E a fala macia, com carinho, sem gritar.
Sabrina – A senhora já namorou muito?
Dona Onete – Eu não tive muitos namorados, mas fui muito cortejada. Tem uma música minha chamada “Proposta indecente” que surgiu durante um encontro da CUT (Central Única dos Trabalhadores) em São Paulo, em 1982.
Saímos da reunião e fomos pro Bar Brahma (tradicional bar no centro da cidade). Tinha muito homem. Quando eu entrava, todo mundo me olhava. Tinha um rapaz moreno em quem eu queria chegar, mas ele era tímido – depois ele veio me dizer que ficou encantado comigo, mas também não conseguia chegar em mim porque tinha muita gente em volta. Eu queria ser a estrela do bar.
Sabrina – A senhora era ciumenta?
Dona Onete – Não. Fui casada 25 anos com o pai dos meus filhos. Depois não aguentei.
Sabrina – Por quê?
Dona Onete – Ele me dava tudo, carro na porta, como na música da Dalva de Oliveira que diz “não é só casa e comida que prende por toda a vida o coração de uma mulher”. É um verso, né? Mas é um verso que eu tenho vivência. Eu cantava naquela época. Eu ia pra janela, ia arear as panelas e colheres cantando coisas lindas. E meu marido tinha ciúme porque muitas pessoas paravam pra me ouvir. Aí, ele brigava comigo. E depois ele era muito farrista, saía com um bando de homem.
Você tá ouvindo isso, né? (Dona Onete fala dirigindo-se a Renato Reis, fotógrafo que nos acompanha) Tem homem que dá muito mais valor aos amigos do que à própria mulher…
Sabrina – Em uma das suas músicas a senhora fala de tomar um chá de tamaquaré. O que é isso?
Dona Onete – (risos) Isso é uma história que aconteceu quando deixei do meu marido. Eu devia ter uns 42 anos. Morava em Igarapé Miri (PA) e vim pra Belém pra ir ao mercado Ver-o-Peso (mercado popular da cidade que vende alimentos, animais, ervas medicinais, artigos religiosos) pra comprar miçanga, pano, essas coisas de colocar na roupa, porque tava fazendo a roupa de uma pessoa que ia dançar na quadrilha da festa de São João.
Eu tava passando no mercado, no setor onde ficam as mulheres que vendem ervas, e uma delas me chamou e disse: Olha, se você brigou com seu marido, e não sei o quê, e quer que ele seja só teu – aí, ela me botou todo o papo na cabeça –, eu tenho um material que faz ele viver só pra você. Aí, ela me mostrou uma redinha de crochê branca e vermelha colocada embaixo da tenda dela, e um calanguinho (pequeno lagarto, também chamado de tamaquaré) deitado nessa rede. Ela balançava a rede e o tamaquarezinho só abria e fechava o olho, ele é muito preguiçoso.
Aí ela me mostrou um potinho Com um pozinho. Era o pó do tamaquaré pra colocar no café, na comida ou pra despejar na rede onde teu marido dorme pra fazer ele querer só você. Ela fica embalando o tamaquaré na rede por três sextas-feiras. Se o homem toma o chá, ele fica na tua, e se botar o pó na rede dele aí é que ele não enxerga mais nada.
Sabrina – E funciona?
Dona Onete – Sabe mulher que bota chifre no cara, o marido bebendo cerveja na mesma mesa com o amante dela – e ela fica mexendo com o amante por baixo da mesa – e o marido não percebe? O homem fica cego. É o chá.
Sabrina – É mesmo?
Dona Onete – É. Mas dizem que não dura muito (a mandinga), dura uns sete anos. Mas sete anos é muita coisa.
Sabrina – A senhora usou o chá de tamaquaré?
Dona Onete – Não, eu não precisei usar pra ninguém. Mas usei o marketing do chá. Eu era professora e na época em que eu morava sozinha, muitos amigos professores frequentavam a minha casa, abriam a geladeira, comiam tudo, bebiam tudo que tinha, bagunçavam minha casa. Aí eu comecei a dizer que tava usando chá de tamaquaré na minha casa, botando na água, na comida, em tudo. Aí, eles sumiram (risos). Até café que eu oferecia eles recusavam.
Sabrina – A senhora já usou alguma dessas coisas pra fazer mandinga que se vendem no mercado de ervas do Ver-o-peso?
Dona Onete – Não, nunca usei, mas eu acredito. Eu fiz uma música chamada “Chamego de boto”. Acredito muito nisso, no candomblé, no poder dos pajés. Eu tenho conhecimento e sou protegida por eles. Eu não atuo, mas acredito.
Sabrina – O que a senhora acha que é o amor?
Dona Onete – Eu sou do tempo do antigamente. Acho que não custa nada uma troca de carinho. Eu lembro de dois amigos homossexuais.
Eu vi o tratamento dos dois. O homem gosta de carinho, onde ele acha carinho ele fica. O homem gosta de sair do banho e a mulher dele leva a sandália pra ele calçar, a toalha. Eu passei seis dias com esse casal de homens e via como tinham carinho, um levava a sandália pro outro. E eu pensava: meu Deus, quantas vezes não levei a sandália pro meu marido…
Renato Reis – O que falta pro amor dar certo?
Dona Onete – O amor não tá na paixão, nessa coisa que arde. Ele vem aos poucos, ele não vê feiúra, não vê cor, não vê nada. Ele é calmo, sem tempestade. Tem que falar manso, chamar de meu nego, minha nega. Todo mundo gosta de ser chamado de nego e nega, não é?
Assine a revista Samuel. Apoie a imprensa independente.
NULL
NULL