O que acontece quando o PIB em uma cidade chinesa continua subindo, mas seus habitantes começam a sentir que a qualidade de vida está caindo? Esta não era uma questão que eu esperava considerar quando viajei para esta próspera cidade portuária na província de Liaoning, no nordeste da China, para investigar os surpreendentes protestos do dia 14 de agosto. Doze mil pessoas foram às ruas exigir a remoção de uma fábrica, produtora de uma substância química chamada PX, das redondezas. Mas esta acabou sendo uma pergunta impossível de ser ignorada.
Nas últimas três décadas, o arrebatador crescimento chinês proporcionou novas oportunidades e aumentou a qualidade de vida de centenas de milhões de pessoas. E, como os líderes chineses bem sabem, é muito mais fácil manter a estabilidade social quando as pessoas sentem que a vida está melhorando; o governo comunista é autoritário, mas desde que consiga dar o que a maioria dos cidadãos deseja, seus críticos serão poucos e discretos. Não é um “mandato divino”, como os imperadores costumavam proclamar, nem um mandato popular, mas sim uma barganha. Em algum momento, porém, o crescimento da China irá diminuir – talvez em dez, quinze ou vinte anos, dependendo da estimativa; ou talvez haverá um crash repentino e uma difícil aterrissagem, como preveem os analistas James Chanos eNouriel Roubini, entre outros. Há muita especulação sobre o que irá acontecer.
Mas mesmo antes da desaceleração econômica, outro tipo de tensão está surgindo: alguns chineses mais abastados estão começando a separar o aumento da renda da percepção de bem-estar. Recentemente, medos crescentes com relação à segurança alimentar (leite em pó contaminado para bebês; melancias explosivas) e infraestrutura frágil (acidente com o trem de alta velocidade; prédios desmoronando), entre outros receios, provocaram indignação popular e reação na internet com críticas ao governo.
Pelos menos para alguns dos habitantes das cidades chinesas, especialmente os casais jovens com filhos, estas preocupações estão começando a pesar mais do que o apelo de um apartamento ainda maior ou um carro mais exuberante. Mesmo entre aqueles que não vão tão longe quanto o artista-ativista Ai Weiwei, que recentemente escreveu
na revista Newsweek que Pequim é uma “cidade dos pesadelos”, a crença de que o aumento do PIB por si só possa trazer felicidade e segurança está começando a ser questionada.
Ou pelo menos foi o que me disseram alguns aflitos cidadãos de Dalian que participaram dos protestos do dia 14 de agosto.
Sai fora PX
Naquela manhã garoenta de domingo, uma multidão ocupou a Praça do Povo, em frente à sede da prefeitura de Dalian. Alguns carregavam cartazes feitos à mão com os dizeres: “Sai fora PX! Devolva-nos o meio ambiente! Devolva-nos Dalian!” Foi um dos maiores protestos registrados na China na última década. As duas maiores autoridades da cidade, o prefeito e o secretário do Partido, rapidamente prometeram transferir a fábrica. Os cautelosos moradores de Dalian receberam estas promessas com mais ceticismo do que a maioria da imprensa internacional (que rapidamente declarou a vitória do “poder do povo”). Eles agora estão acompanhando o desenrolar da história com atenção.
A substância química PX, manufaturada nas instalações Dalian-Fujia, é utilizada na produção de poliéster. A fábrica não foi vinculada a nenhum problema de saúde pública, mas a população teme que uma eventual tempestade tropical possa romperos tanques de armazenagem dos produtos químicos, que estão localizados perto da costa, e inundar a cidade com águas tóxicas. A manifestação aconteceu poucos dias depois que uma tempestade real, o tufão Muifa, passou bem perto do litoral, suscitando discussões on-line sobre uma série de possibilidades assustadoras. Previsões apavorantes, assim como uma convocação anônima on-line para uma marcha na Praça do Povo, tinham circulado pelas redes sociais nos dias anteriores.
Quando cheguei em Dalian na terça-feira seguinte, várias pessoas conversaram comigo sobre as razões da marcha daquele domingo, embora a maioria deles tenha pedido que seus nomes não fossem publicados. O tufão Muifa e a angústia que ele desencadeou foram os fatores imediatos que levaram à manifestação, mas havia algo mais em suas mentes. Agora, finalmente, eles conseguiam expressar isso: a surpreendente e aterradora convicção de que os melhores dias de Dalian ficaram para trás. Aquele lugar próspero viu sua era de ouro passar.
Hoje a vida cotidiana é mais dura, e a própria cidade está literalmente caindo aos pedaços. “Dalian costumava ser uma das melhores e mais belas cidades da China”, comentou um professor universitário. “Mas agora está tudo indo ladeira abaixo.” Não que este desespero tenha causado o protesto, mas contribuiu para uma atmosfera de tensão que se mostrou altamente inflamável quando o fósforo certo foi aceso.
Se você já esteve em Dalian – especialmente depois de uma parada em, digamos, Wuhan ou Hohhot ou Lanzhou, ou qualquer outra cidade chinesa menos próspera – parece difícil acreditar. Dalian, afinal, é a anfitriã regional das reuniões do Fórum Econômico Mundial, é uma zona portuária movimentada e um centro industrial de artigos leves, e uma cidade cosmopolita com uma loja Armani e uma concessionária da BMW logo ali na Rua do Povo. Não há nenhuma tensão étnica à vista ou disputas de fronteiras na região. De acordo com estatísticas oficiais, a economia cresceu incríveis 15% em 2010. De certa forma, Dalian representa a visão mais otimista do futuro do país. Do que se poderia reclamar?
A tentação do dinheiro
Aparentemente, de muita coisa. A qualidade do ar é “muito pior do que antes”, me disseram. “O mar e o céu já foram azuis; hoje eles são cinza.” A construção recente de um sistema de metrô tem sido um “desastre” graças a um planejamento desleixado; o projeto não era apropriado para o poroso leito de rocha da cidade. Já em 2011, cinco seções das linhas recém- construídas desmoronaram, abrindo fendas nas calçadas; pelo menos um trabalhador foi morto. O trânsito em Dalian está um pesadelo, não só porque há muito mais carros nas ruas, mas “devido ao desenho urbano mal feito, que faz com que o centro da cidade seja muito denso”.
A tentação do dinheiro fácil faz com que construtoras ergam novos prédios, um atrás do outro, sem se preocupar se eles são habitáveis; e a administração local, que lucra com as vendas das terras, faz pouco para impor limites. “Como os preços das casas continuam aumentando, mais e mais casas são construídas, mas elas não são bem planejadas”, conta um professor.
Edifícios históricos magníficos, erigidos pelos russos e pelos japoneses no começo do século XX, têm sido demolidos para dar lugar a construções rápidas, altas e baratas. “Os moradores estão indignados”, ressalta o professor. “Eles pensam: vocês destruíram a cultura da nossa cidade.” Talvez nenhuma destas reclamações seja tão terrível ou digna de nota, mas juntas elas dão forma à sensação de que o lugar está indo na direção errada. Durante décadas, as coisas só melhoraram – em Dalian como em outras cidades da China – mas agora, muitos aqui dizem que a maioria das coisas está piorando. “As pessoas em Dalian se queixam muito da deterioração da qualidade de vida e do meio ambiente”, afirmou Wen Bo, um ambientalista nascido em Dalian que hoje vive no Japão.
Os habitantes da cidade não acreditam que estas mudanças tenham sido inevitáveis; eles têm alguém específico em quem colocar a culpa. “O povo de Dalian odeia o antigo líder”, me disse uma contadora chamada Xie. “A indústria química não é o único desastre que ele nos trouxe.” Ela se referia a Xia Deren, o antigo chefe do Partido de Dalian, que recentemente foi promovido a vice-secretário do Partido na província de Liaoning. Entre os residentes, Xia é considerado corrupto e indiferente à vontade popular. Alguns manifestantes carregavam cartazes que diziam “Xia Deren, demita-se.”
Outro fato sobre Xia que se destaca: ele sucedeu Bo Xilai, um líder bem mais popular.
Bo Xilai é o atual chefe do Partido em Chongqing, candidato ao Politburo em 2012, e uma figura controversana política chinesa; ele tem uma longa lista de inimigos dentro do Partido e também já enfrentou uma série de acusações de corrupção. Mas ao contráriode Xia, Bo certamente soube fazer-se benquisto em Dalian. Os dezessete anos que ele passou na cidade – desempenhando uma série defunções, começando como prefeito em 1992 – não só lançaram sua carreira como uma figura política singular como também mudaram as expectativas dos cidadãos com relação ao seu líder.
Longa ressaca
Alto e carismático, Bo subverteu o modelo do político chato e enfadonho de terno escuro, e se tornou o que a China tem de mais próximo a um político-celebridade. “Em todo Festival da Primavera, Bo ia à TV e saudava os cidadãos”, lembrou Xie, a contadora, que acrescentou sem ironia: “Ele parecia ser muito afetuoso”. Ele também aumentou as expectativas com relação à qualidade de vida urbana, construindoáreas verdes e levando as indústrias poluidoras para fora dos limites da cidade. Os anos de Bo, como me contaram os habitantes de Dalian, foram os “anos dourados” da cidade.
Hoje eles vivem uma longa ressaca. Um líder popular se foi, e há buracos nas calçadas.
De certa forma, como me disse Wen Bo, “foi por isso que o protesto do dia 14 de agosto teve dois motivos. O medo imediato do que aconteceria se houvesse um derramamento químico… Mas também o ressentimento por as pessoas acreditarem que Dalian está indo pelo caminho errado.”
A maior parte da China ainda tem muito a prosperar antes de chegar a seus anos dourados. Mas dificilmente o que vem depois de uma era de ouro pode ser considerado aprazível.
Tradução Carolina de Assis
Texto originalmente publicado no site da revista The Atlantic
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