O primeiro apareceu no dia 3 de fevereiro de 2010, antes do sol nascer. Foi pendurado na estátua de José Maria Morelos, que fica logo em frente à sede do governo estadual, no centro de Monterrey, capital de Nuevo Léon. Morelos foi um padre que se tornou líder revolucionário durante a guerra de independência do México. O grande lençol branco, que exibia uma mensagem de um cartel de drogas, ocupava toda a extensão do cavalo de bronze do herói. “Lá Vem o Monstro”, lia-se, ao lado da assinatura “Z”. Naquela mesma manhã, seis mensagens similares, escritas à mão e também assinadas por “Z”, apareceram em municípios vizinhos a Monterrey. Os soldados vieram, removeram as mensagens e foram embora.
Os narcomantas, como são conhecidos os comunicados oficiais dos cartéis, pressagiavam uma horrível explosão de violência em Monterrey, cidade de quatro milhões de habitantes no nordeste do México e capital financeira do país. Nos meses seguintes, estudantes seriam assassinados em frente ao portão da universidade de elite da cidade. Um prefeito seria sequestrado, torturado e morto. Praças, delegacias de polícia e até mesmo o consulado norte-americano seriam atacados com granadas. Bloqueios controlados por atiradores mascarados paralisariam a cidade por vários dias. A origem da violência foi uma guerra por território entre os autores dos narcomantas, os Zetas, e seus antigos aliados, o Cartel do Golfo.
Esse é o tipo de violência que já seria esperado em lugares como Ciudad Juárez ou Tijuana – cidades fronteiriças que há muito tempo servem como portas de entrada do tráfico para os EUA. Mas como pôde a próspera Monterrey, a “Sultana do Norte”, que apenas alguns anos antes era considerada uma das cidades mais seguras da América Latina, rebaixar-se tão rapidamente a esse estado caótico? Se isso pôde acontecer aqui, haverá no México algum lugar seguro?
No entanto, o que de fora pareceu um súbito colapso foi na realidade o resultado de um processo que durou décadas. Em sua origem está a decadência das instituições incumbidas de manter a leie a ordem, as mesmas que, a despeito de sua crônica disfunção e da corrupção, foram capazes de conter a violência do tráfico no antigo sistema estatal. Mas quando este sistema falhou e, diante do “monstro” do crime organizado, a elite de Monterrey, seus políticos e população se voltaram a essas instituições para que elas os resgatassem, encontraram-nas completamente apodrecidas. E, então, os desesperados residentes de Monterrey pediram auxílio ao último poder no qual acreditavam ser possível confiar: o militar. Muitos viriam a se arrepender dessa escolha.
Praça central
Toda cidade e vilarejo mexicano tem uma praça central. É onde os candidatos políticos fazem suas promessase os protestos são organizados, onde espetáculos acontecem e se celebram os heróis nacionais. No século XX, no entanto, um novo tipo de praça surgiu – uma praça simbólica, cujas fronteiras compreendem o território controlado por algum cartel de drogas. Ser dono dela significa controlar o tráfico e a distribuição em uma determinada área – um negócio lucrativo e, consequentemente, muito disputado.
Até recentemente, ninguém mantinha uma praça – ou qualquer outro negócio legal ou ilegal – sem o consentimento tácito do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Em algo que tem sido chamado de “a ditadura perfeita”, o PRI governou o México continuamente por mais de 70 anos, começando em 1930. Enquanto o México sob o governo do PRI parecia ser uma democracia eleitoral, os políticos na verdade indicavam seus sucessores e o poder fluía verticalmente desde o presidente até o burocrata de mais baixo cargo. O presidente escolhia à mão seu sucessor a cada seis anos, em um ritual chamado de dedazo, ou “dedão”.
O controle do PRI se estendia para muito além da política, indo desde o desenvolvimento industrial até a reforma agrária. A coisa não era diferente em relação ao tráfico de drogas. De modo geral, o PRI se fazia de cego em relação ao comércio ilegal, desde que os cartéis repassassem a membros do governo uma percentagem do lucro e prevenissem a violência de ultrapassar os limites da respectiva praça.
Luis Astorga, especialista na história do tráfico, escreveu que nas raras ocasiões em que a polícia e os militares intervieram, foi para evitar que “os traficantes se tornassem totalmente autônomos ou que ficassem tão indomáveis a ponto de ultrapassar os limites da violência social e historicamente tolerável”. Ou, como mais tarde diria um governador de Nuevo León no início dos anos 90: “O que o controle por parte dos governos do PRI garantia era que o tráfico de drogas não chegasse a perturbar a paz social”.
O desmantelamento dessa ordem social começou com mudanças políticas de forte potencial sísmico. Em 2000, Vicente Fox, do Partido da Ação Nacional (PAN), foi eleito o primeiro presidente mexicano não filiado ao PRI desde 1930. O PRI também perdeu vários importantes governos estaduais naquele ano. Uma das perversas consequências dessa abertura democrática acabaria por desfazer o equilíbrio que, ao longo de décadas, limitou a competição entre os vários cartéis de drogas e seus aliados políticos.
Mensagem clara
Em Nuevo León e em Tamaulipas, territórios respectivos dos Zetas e do Cartel do Golfo, intensos tiroteios ocorreram nas principais vias públicas, e corpos mutilados foram exibidos como troféus em praças públicas. Tão chocante para os residentes de Nuevo León quanto a explosão de violência foi a incapacidade de agir das autoridades. Em abril, o cadáver torturado de um policial foi abandonado em Santiago, um município próximo de Monterrey. Uma carta escrita à mão e pregada em seu peito listava os nomes dos trinta e cinco policiais que, alegava-se, trabalhavam para os Zetas. Quatro dos nomes de policiais que haviam sido mortos nas semanas anteriores estavam marcados com um X. A lista era assinada pelo Cartel do Golfo, junto com a Família Michoacana e o Cartel de Sinaloa, grupos tradicionalmente estabelecidos em outros estados.
Enquanto alguns policiais eram vistos como alvos emrazão de suas ligações com os cartéis, outros foram visados simplesmente por realizarem seu trabalho. O prefeito de Monterrey deu sua resposta tentando reorganizar o departamento de trânsito, já que a função de investigar o tráfico em todo o estado o fez particularmente suscetível à coalizão com os cartéis. O prefeito indicou Enrique Barrios como secretário de trânsito em maio de 2010, ordenando- lhe que investigasseas ligações do departamento com o crime organizado. Barrios criou uma divisão de assuntos internos, com quatro advogados que respondiam diretamente a ele.
Todos os quatro foram sequestrados nas duas primeiras semanas de trabalho. O segundo homem no comando da secretaria de trânsito foi capturado logo em seguida. Os criminosos foram atrás de Barrios logo pela manhã; o secretário estava tão consciente do que o destino lhe guardava que, assim que ouviu alguém entrando em sua residência, levantou-se da cama, dirigiu- se à janela e gritou: “Estou indo!”. Saiu pela porta da frente e se entregou aos sequestradores, pedindo apenas que sua família fosse poupada. Ele foi entregue alguns dias depois, com sinais de espancamento, e se demitiu logo em seguida. Barrios preferiu se manter calado sobre o episódio.
A mensagem enviada por meio de sequestros como o de Barrios – e houve muitos casos similares, cujas vítimas eram principalmente políticos, a polícia, a elite empresarial e suas famílias – foi clara. A ordem social antiga havia sido restaurada. Mas agora, seria o crime organizado que estabeleceria as fronteiras para as autoridades políticas, e não o contrário.
Dia sangrento
Nos primeiros meses de 2011, outra terrível explosão de violência tomou conta de Monterrey. Em janeiro, 33 pessoas foram assassinadas em um período de 24 horas – um dos dias mais sangrentos da história da cidade. Em fevereiro, o chefe de inteligência de Nuevo León foi sequestrado. Algumas horas mais tarde, seu carro foi encontrado no centro de Monterrey, incinerado. Os sequestradores atiraram nele cinco vezes, inclusive na cabeça, a uma curta distância. Encheram o carro de gasolina e atearam fogo. Em meio à violência, o governo mexicano publicou seus mais novos números relativos às mortes por causa da guerra às drogas. As informações eram chocantes: 35 mil pessoas haviam sido assassinadas desde 2007 – mais de 15 mil apenas em 2010.
A secretária de Estado Hillary Clinton viajou ao México em 24 de janeiro. Embora essas visitas costumem ser anunciadas com semanas de antecedência, Clinton só divulgou a viagem setenta e duas horas antes – um reconhecimento tácito da situação volátil na segurança pública. A primeira pauta na agenda de encontros entre Clinton, Calderón e o ministro mexicano de assuntos internacionais foi a cooperação entre os dois países através da Iniciativa Mérida.
A administração de Bush deu inicio à Iniciativa Mérida em 2007, não muito tempo depois de Calderón passar a empregar o exército na guerra contra os cartéis. Seguindo o modelo do Plano Colômbia, a Iniciativa Mérida dá apoio aos esforços mexicanos contra o narcotráfico por meio de investimentos que vão desde equipamento militar até treinamento para promotores. A administração Obama tem apoiado totalmente a Iniciativa Mérida, além de ser efusiva em sua simpatia para com os esforços de Calderón. Desde 2007, o governo norte-americano já destinou mais de US$ 1,5 bilhões ao projeto.
Como parte do acordo original, os EUA exigiram que 15% dos fundos destinados à Iniciativa Mérida fossem investidos em uma série de requerimentos básicos para garantir os direitos humanos no país, como o de que os oficiais se responsabilizassem juridicamente por seus atosdurante as operações e o de que fosse a justiça civil a encarregada de julgar os soldados que cometessem abusos. Por lei, se os requerimentos não fossem atendidos, a verba não deveria ser liberada.
No entanto, a despeito de provas claras apresentadas pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do México e mesmo pelo Departamento de Estado dos EUA de que o México não tem cumprido os requerimentos, a administração Obama continua liberando a verba. Em uma conferência em Guanujato, Clinton foi indagada sobre os esforços de Calderón na área de segurança. Ela respondeu: “Acho que vocês podem agregar: eu sou fã. O presidente Calderón está dando continuidade a seus planos. Nós estamos fornecendo ajuda, na medida do possível, para que esses planos se concretizem. E agora é só uma questão de manter o rumo”.
Estudantes mortos
Em uma das minhas últimas noites em Monterrey, encontrei-me com Indira Kempis, uma conhecida estudante e ativista da Monterrey Tech, a mais prestigiosa universidade da cidade. Em março de 2010, dois de seus colegas foram baleados dentro dos portões principais da instituição. O exército originalmente afirmou que eles eram criminososarmados, mas revisou mais tarde sua história, alegando que os estudantes foram mortos em um tiroteio entre soldados e traficantes. Uma investigação exaustiva da Comissão Nacional de Direitos Humanos do México descobriu que o exército havia impedido o acesso à cena do crime por várias horas, confiscado as fitas de vídeo do sistema de segurança interno e plantado armas próximas aos corpos dos estudantes. Mais de um ano depois, as investigações militares e civis permanecem abertas.
Em outubro, outra estudante – uma artista de 21 anos chamada Lucila Quintanilla – foi morta na praça principal de Monterrey. Três sujeitos armados estavam perseguindo um homem na calçada principal da praça, disparando armas automáticas, quando uma bala perdida atingiu a cabeça de Lucila.
Kempis se ofereceu para me mostrar o lugar onde Quintanilla havia sido assassinada. Era cerca de 10 horas da noite e o centro da cidade, antes vibrante e movimentado, estava agora deserto. O medo mantém boa parte dos habitantes em casa e as pesadas taxas cobradas aos restaurantes e bares pelo crime organizado acabou levando muitos a fecharem definitivamente as portas. Caminhamos pela região que antes havia sido o coração da praça, em frente à sede do governo e à estátua em que os Zetas penduraram seu narcomanta. Grades de aço foram colocadas nas portas das lojas, bancos vazios ladeavam a calçada. Subitamente, Kempis parou e apontou. “Aqui”, disse. No silêncio sinistro daquele lugar, não havia dúvidas de quem controlava a praça. As construções e as estruturas ainda estavam boas,mas haviam sido roubadas das pessoas e da atividade que um dia havia lhes dado vida. A praça pertencia aos cartéis e a ninguém mais. Enquanto estávamos ali, uma mulher usando um casaco largo verde-oliva parou para nos observar, com suas mãos enfiadas nos bolsos. Quando estava a apenas alguns passos de nós, tirou subitamente uma das mãos do bolso. “Vermelho ou branco?”, perguntou, abrindo a mão e nos mostrando duas pílulas. Agradecemos, dizendo não, e ela voltou a caminhar pela praça, à procura de outros clientes.
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Tradução: Henrique Mendes
Publicado originalmente na revista The Nation e reproduzido no número 02 da revista Samuel
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