Mike está debruçado sobre uma pilha de lascas encharcadas de madeira no chão de uma clareira do Golden Gate Park. É uma tarde clara de inverno, e a luz do sol se infiltra pelos eucaliptos, batendo na grama ainda úmida por causa de uma tempestade recente. Mike vasculha as lascas, examinando de forma lenta e cuidadosa a terra por baixo. Dois sacos de papel enchem um bolso do seu casaco de flanela.
Esse engenheiro de 28 anos trabalha em uma importante empresa de softwares de San Francisco. Sua fala é baixa e contida; nos fins de semana, ele pega seu Subaru Forester e vai esquiar em Tahoe, onde tem uma propriedade no sistema “time-share”. Faz doações à rádio pública e é fã dos restaurantes indianos da cidade. Mike, enfim, é – ou parece ser – um membro bem ajustado da sociedade.
Mas o que ele está fazendo – revirando as lascas de madeira em um canto úmido e obscuro do parque de 400 hectares que rasga a parte oeste de San Francisco – é crime. Ele está procurando os cogumelos psicodélicos do gênero Psilocybe, que crescem de forma natural em San Francisco e no vizinho condado de Marin do outono à primavera. Ele me conta que, se encontra um cogumelo, guarda-o nos sacos de papel, coloca os sacos na mochila e volta para casa de bicicleta, preferindo as ruas mais estreitas.
Recentemente, Mike concordou em me levar numa de suas caçadas aos cogumelos e, enquanto vasculhava o chão,me falou da sua afinidadecom a psilocibina (a substância ativa dos cogumelos). Estávamos na parte mais baixa do Golden Gate Park, perto do seu final, na Ocean Beach; exceto por um ocasional praticante de corrida, o parque parecia vazio, uma floresta no meio de uma das cidades mais famosas do mundo.
Mike me disse que não consome os cogumelos com muita frequência – talvez uma ou duas vezes por ano –, mas que, quando o faz, é porque deseja explorar um problema que tem perturbado sua vida. “Quando eu os uso, pode ser porque tenho uma decisão a tomar, ou talvez porque eu suspeite que minha perspectiva sobre algo não seja tão saudável ou apaixonada quanto eu gostaria que fosse”, disse. “A psilocibina me permite ver as coisas sob um ponto de vista renovado. Quando uso, não fico tão sobrecarregado pelo cinismo ou por outras camadas de autoproteção naminha psicologia.”
Será que Mike está delirando a respeito do poder dos cogumelos para renovarem sua visão de mundo?
Na última década, as pesquisas a respeito dos efeitos das drogas psicodélicas sobre a consciência têm se tornado um crescente campo de estudos no ambiente acadêmico norte-americano. Psicólogos da Univeridade da Califórnia em Los Angeles, da Escola de Medicina Johns Hopkins e da New York University, entre outros lugares, já publicaram estudos mostrando que as drogas psicodélicas podem promovera felicidade entre pessoas comuns, além de aliviar a depressão e a ansiedade em doentes terminais. Os efeitos positivos descritos por Mike a propósito do uso da psilocibina são semelhantes a muitas descrições de casos contidas nessas pesquisas.
Epifania psicoespiritual
No primeiro semestre de 2011, Charles Grob, professor de Psiquiatria e Pediatria da Escola de Medicina da UCLA, publicou um estudo no importante periódico Archives of General Psychiatry mostrando que pacientes com câncer em estágio terminal relatavam sentir muito menos ansiedade após consumirem uma pequena dose de psilocibina durante um experimento cuidadosamente controlado. Grob e sua equipe voltaram a questionar os pacientes após três e seis meses; com o passar do tempo, eles invariavelmente relatavam mais benefícios.
“Muitos dos indivíduos nos disseram que a droga os ajudou a aceitar o fato de que eles iriam morrer”, disse Grob. O professor estabeleceu uma distinção entre a psilocibina e os antidepressivos comuns, que segundo ele tendem a abafar ou suprimir problemas psicológicos sem necessariamente curá-los. “Os índices de resposta entre pessoas com câncer terminal a medicações convencionais que atacam os sintomas da ansiedade e da depressão não são tão impressionantes”, disse ele. “A psilocibina é um mecanismo inteiramente diferente. Ela tem o potencial de facilitar o que já foi chamado de epifania psicoespiritual.”
A pesquisa de Grob corrobora um estudo anterior, realizado por pesquisadores da Johns Hopkins, segundo o qual 60% dos indivíduos que usavam psilocibina em um experimento controlado aludiam posteriormente à experiência como uma das cinco mais proveitosas e espiritualmente significativas das suas vidas.
William Richards, psicólogo do Centro Médico Bayview Johns Hopkins, participou do estudo e explicou que as drogas psicodélicas foram sensacionalizadas na mentalidade popular no final dos anos 1960 e começo dos 70. Antes disso, seu efeito sobre a consciência era considerado um campo legítimo de investigação científica, incluindo o trabalho relacionado a flagelos como a esquizofrenia e o alcoolismo. Mas, quando o governo tornou essas drogas ilegais, em 1968, as pesquisas nos EUA pararam.
Excessos da contracultura
Somente no final da década de 1990 as autoridades reguladoras federais começaram a atenuar as restrições sobre experiências controladas com drogas psicodélicas. “Elas estão passando por um renascimento após ficarem quase totalmente adormecidas durante 30 anos”, disse Richards, atribuindo esse degelo em grande parte ao caráter metodológico exigente das propostas iniciais das pesquisas (já Grob especula que a passagem do tempo desde os excessos da contracultura, na década de 1960, também podem ter influído). Uma das principais conclusões do estudo de Grob é que, na dosagem certa, a psilocibina pode ser ingerida com segurança, sem medo de efeitos colaterais graves – ou seja, de uma bad trip, como se diria nos anos 60. Isso pode facilitar a obtenção de autorizações para estudos científicos com drogas psicodélicas, me disse Rick Doblin, diretor-executivo da entidade militante Maps (Associação Multidisciplinar para os Estudos das Drogas Psicodélicas, na sigla em inglês). Isso, apontou Doblin, também é importante porque, se um participante reagisse de forma muito ruim ao consumo da psilocibina ou de outra substância psicodélica, o fato poderia inviabilizar futuras pesquisas sobre as drogas.
Mas, embora Doblin note com satisfação que os cientistas já podem novamente estudar as drogas psicodélicas de forma legal, disse que continua sendo difícil obter verbas para essas pesquisas. Nenhuma agência federal irá destinar dinheiro diretamente para experiências que envolvam substâncias que a FDA (Administração de Alimentos e Drogas) classifique como ilegais, e a alternativa óbvia para a obtenção de verbas – a indústria farmacêutica – não está interessada; é que as drogas psicodélicas não podem ser patenteadas, e só devem ser consumidas em doses pequenas.
Mesmo assim, os estudos realizados até agora estão levando a um maior interesse em torno das drogas psicodélicas, mesmo em lugares improváveis. A Maps atualmenteajuda a financiar um estudo recém-iniciado em Harvard que se destina a determinar se o MDMA (vulgo ecstasy) pode ter utilidade terapêutica para veteranos de guerra do Iraque e Afeganistão que sofrem de transtorno do estresse pós-traumático.
História silenciosa
Matt Palmquist, da Miller-McCune, abordou isso em uma matéria de capa em 2009, que enfocava o trabalho de dois cientistas noruegueses. Questionados sobre as razões para que os potenciais benefícios das drogas fossem aparentemente subestimados, Pål-Ørjan Johansen e Teri Krebs responderam: “A política para as drogas já alcançou as pesquisas sobreo MDMA e os tratamentos. No entanto, é comum que novos tratamentos levem um par de décadas até serem totalmente testados e aceitos. Há bastante interesse entre os clínicos e cientistas acerca do potencial terapêutico do MDMA. Essa é uma história silenciosa há 20 anos”.
Perguntei a Grob sobre os benefícios médicos de tratar pacientes de câncer comsubstâncias psicodélicas. Ele explicou que o propósito de administrar psilocibina em doentes terminais não é curar sua doença, e sim ajudar os pacientes a lidarem com a sua situação. A título de ilustração, Grob me disse que nem todos os efeitos que os participantes da pesquisa experimentaram durante seu estado alterado estavam diretamente relacionados ao câncer. Muitos relataram experiências de “cura profunda” relacionadas a relações pessoais.
“Uma mulher chorou muito. Achei que suas lágrimas tinham a ver com o seu fim iminente, mas não. Ela estava chorando porque nunca havia conseguido dizer ao seu pai que o amava enquanto ele estava vivo, e da mesma forma ele não havia sido capaz de dizer que a amava. Ela nos contou que, durante o transcurso da experiência de estado alterado, ela estava fazendo isso, e sentia que havia sido capaz de curar grande parte doconflito que havia carregado consigo por causa disso.”
No dia em que acompanhei Mike, ele não encontrou cogumelos – o chão já havia sido explorado por outros conhecedores do segredo psicodélico do Golden Gate Park. Mas ele não pareceu chateado. “Os cogumelos não sãoalgo que eu use com muita frequência, eu não os uso por ‘diversão’”, afirmou. “É um mito que os cogumelos só sirvam para produzir alucinações. É mais do que isso.”
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Tradução: Rodrigo Leite
Publicado originalmente no site da revista Miller-McCune (atual Pacific Standard) e reproduzido no número 02 da revista Samuel
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