A crise financeira fez o mundo tremer e chegou a custar algumas cabeças. Para o teatro, no entanto, ela foi perfeitamente conveniente. Não se pode esquecer que muitos teatros alemães ainda estão ameaçados pelos cortes, de modo que seria cínico realmente os denominar “beneficiários da crise”. Mas também não se pode negar que a crise proporcionouao teatro novos impulsos e ideias.
Basta dar uma olhada na programação dos últimos dois anos para notar que a crise esteve e continua presente nos palcos. E, excepcionalmente, não se trata daquela crise notória que sempre afetou o teatro de certa forma (“Teatro é crise”, observou Heiner Müller certa vez), mas sim da derrocada da economia mundial, com suas bolhas estouradas e seus sonhos de crescimento que exigiram uma reação imediata ou pelo menos a iniciativa de contornar retoricamente seu programa. Mal os bancos faliram e a economia entrou em baixa, as peças sobre o capitalismo tiveram um boom nos palcos.
A mais rápida foi Elfriede Jelinek. Quando sua peça Die Kontrakte des Kaufmanns (Os contratos do comerciante) estreou no Schauspiel de Colônia, em abril de 2009, foi a primeira produção de teatro a reagir explicitamente à crise financeira. Na verdade, a Nobel de Literatura austríaca já tinha escrito sua “comédia sobre a economia” em agosto de 2008, um mês antes de o banco norte-americano de investimentos Lehman Brothers abrir falência. Todavia, a clarividência e a fúria com que Jelinek já reagira aos escândalos bancários austríacos na época tornaram Die Kontrakte des Kaufmanns a mais atual peça sobre a crise. Trata-se de uma litania textual, um oratório sobre o dinheiro. Em infidáveis loops de pensamento e tiradas pontuadas de trocadilhos, Jelinek passa a palavra não só aos banqueiros e aos pequenos investidores, exploradores e explorados, mas também dá voz ao próprio capital, que não chegou a embarcar deste mundo para um melhor, mas acabou embarcando para uma bela ilha no Caribe, onde se pode curtir uma boa companhia e “jogar, zoar e malhar”.
Território épico
A contundente encenação de Nicolas Stemann, em Colônia, que após a estreia foi para o Thalia Theater, em Hamburgo, coprodutor do espetáculo, tornou-se – em maio de 2010 – um dos pontos altos do Berliner Theatertreffen, o festival de renome internacional que apresenta dez das mais “notáveis” produções teatrais em línguaalemã da temporada.
Este 47º Berliner Theatertreffen foi nitidamente dominado pela crise, uma tendência geral espelhada por todas as peças. Seja em Kasimir und Karoline (Kasimir e Karoline), de Ödön von Horváth, uma peça popularesca sobre a depressão econômica, numa encenação de Johan Simon para o Schauspiel de Colônia que abriu a seção Best-of-Schau em Berlim; seja em Riesenbutzbach, o projeto vienense de Christoph Marthaler sobre a estagnação; seja no drama social britânico Love and Money (Amor e Dinheiro), de Dennis Kelly, uma peça sobre a frieza emocional numa época de consumismo, encenada por Stephan Kimmig no Thalia Theater, em Hamburgo; seja na adaptação propositalmente tosca do filme Feios, Sujos e Malvados por Karin Beier no Schauspiel de Colônia; seja – cumpre lembrar – na encenação do romance Kleiner Mann, was nun? (E Agora, Garoto?), escrito por Hans Fallada para abordar a crise econômica e adaptado para o teatro por Luk Perceval, em uma montagem calorosa e humanista para o Münchner Kammerspiele – fato é que todas essas produções abordaram a pobreza, a decadência, a ambição por dinheiro, as deformações do capitalismo e os danos pessoais causados pela economia.
Velho Brecht
O verdadeiro vencedor da crise, no entanto, é o velho Bertolt Brecht, que sempre soube disto: que o capitalismo não ia dar certo. Com sua Ópera dos Três Vinténs (Dreigroschenoper), Brecht esteve presente em todas as épocas, tendo-se mantido um sucesso contínuo; contudo, a peça redescoberta e reabilitada atualmente foi Santa Joana dos Matadouros (Die heilige Johanna der Schlachthöfe), um dos melhores dramas existentes sobre o capitalismo, escrito na época da crise econômica mundial entre 1929 e 1931. Nessa peça, Brecht toma o exemplo do fabricante de carne Pierpont Mauler, que domina e manipulaa Bolsa de Chicago, para desmascarar os mecanismos da economia capitalista – e reivindica possibilidades de resistência. Importantes diretores de teatro, como Nicolas Stemann, Tilmann Köhler e – por último, no Burgtheater de Viena – Michael Thalheimer, reinterpretaram essa peça didática, extraindo dela um teor altamente explosivo.
A Visita da Velha Senhora (Der Besuch der alten Dame) também voltou a ser encenada com frequência. Nessa peça, Friedrich Dürrenmatt apresenta de forma exemplar como a ambição por dinheiro pode destruir uma sociedade inteira. Além disso, nota-se um renascimento das peças de crítica social que giram em torno das classes mais baixas, desde Asilo Noturno, de Máximo Gorki, até Kasimir und Karoline, de Horváth,passando por Stallerhof, de Franz Xaver Kroetz, recentemente desencavada por David Bösch no Burgtheater de Viena. Todas essas peças narram sobre os perdedores e os danos colaterais de um mundo completamente dominado pelo capitalismo.
Mas nem todo teatro tem um autor e diretor como Falk Richter, que há muito tempo vem investigando – no Schaubühne de Berlim – o impacto do capitalismo sobre o repertório emocional do indivíduo. Em outubro de 2009, Richter criou junto com a coreógrafa Anouk van Dijk um ótimo espetáculo sobre a crise. A peça intitulada Trust trata do fim de toda confiança. Um monólogo acelerado e contundente sobre o colapso do sistema financeiro no capitalismo high-tech culmina na hipótese de que a Fração do Exército Vermelho (RAF) – após passagem por todas as instituições – já tenha chegado aos escalões executivos das empresas e bancos. Lá, uma “quarta geração” dessa organização terrorista de extremaesquerda, que durante os anos 70 propagou horror pela Alemanha Ocidental, consegue agora afundar osistema de forma eficiente e duradoura. Extrair da crise lampejos de fúria e de espirituosidade também é uma alternativa!
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Tradução: Simone de Mello
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