Olhe para a semente. Ela tem uma forma oval, afilada como um pino de boliche, de um preto acinzentado, menor do que um grão de pimenta. “Dá pra ver que não foi totalmente domesticada”, diz Chris Schmidt.
Schmidt, com uma calvície prematura, fala mansa, um pouco monástico, atento aos detalhes, tem exatamente a aparência de um entomologista. Ele cuida de um banco comunitário de sementes em Tucson, Arizona. Neste exato momento ele está raspando a dura pele de uma semente com a unha do seu dedão de jardineiro antes de colocá-la em uma toalha de papel úmida para que ela germine. “A maioria das lavouras hoje são cultivadas para produzir sementescom coberturas mais fi nas”, explica. “Isso acelera a germinação. Mas se a pele é fi na demais, ela fi ca suscetível a doenças.”
A semente em questão é um exemplar da Proboscideasp, a “garra do diabo”, natural do deserto do sudoeste dos EUA e que já esteve espalhada pela vasta cabeleira dos bisões (hoje substituídos pelo gado domesticado). Foi cultivada pelo povo Tohono O’odham do Arizona durante séculoscomo fonte de alimento e pigmento usado em artigos de vime. Eles nunca conseguiram afinar aquela pele.
A manipulação das peles das sementes é só uma pequena etapa de uma saga que começou talvez 11 mil anos atrás, quando um gênio faminto no que hoje é a Síria tentou cultivar centeio pela primeira vez. Seu experimento sem querer provocou uma revolução agrícola que acalmou o impulso nômade da nossa espécie, construiu torres e impérios e fi nalmente deu cria ao monoteísmo, às guerras e ao Food Network – sem falar em profi ssões como “curador de banco de sementes” e “jornalista”.
Mas a última grande mudança em nossa longa jornada com as sementes permanece invisível ao olhos do público.
Um inédito monopólio sobre sementes alimentícias está se estabelecendo, especialmente nos países desenvolvidos, e pode decidir o sucesso ou o fracasso de uma colheita em uma era de drásticas mudanças climáticas. E grupos de segurança alimentar estão fomentando o debate sobre a concentração do material genético de nossas lavouras em salas isoladas dentro de grandes corporações.
O grupo de Schmidt, o NativeSeeds/SEARCH, é um jogador discreto e estratégico nesta silenciosa polêmica. Um freezer em seu laboratório contém mais de 1.800 potes com sementes “puras”, sem nenhuma modifi cação genética. As variedades foram colhidas ao longo de várias décadas nos arredores da fronteira entre os EUA e o México. “Trigo White Sonora”, “Acoma Squash”, “Feijão Olhos-de-Cabra Tarahumara” – os nomes exóticos nos potes são, de certa forma, reconfortantes. As velhas sementes sugerem que, apesar dos transtornos provocados pelas mudanças climáticas, por uma população mundial que chegará a 9 bilhões em 2050 e pela rápida degradação da terra, nosso legado agrícola pode nos oferecer alguma proteção – uma mina genética de onde poderíamos extrair plantações adaptáveis aos novos tempos.
Na Antiguidade, os humanos utilizavam cerca de sete mil plantas diferentes para saciar suas necessidades alimentícias. Hoje, nossa dieta agrícola foi reduzida a, talvez, 150 espécies. Sim, há quatro mil híbridos de milho disponíveis nos EUA, mas eles são primos de primeiro grau, formados por meia dúzia de raças diferentes. E somente quatro empresas multinacionais controlam hoje a maioria do material genético destas lavouras – exatamente 56% do negócio multibilionário do comércio de sementes. Quando a colheita é a medida do lucro, a biodiversidade não é prioridade.
Oligopólio global
As quatro grandes corporações são Monsanto, DuPont, Syngenta e Bayer. Juntas elas representam algo muito raro, um momento único na história da humanidade: a ascensão do primeiro oligopólio global de sementes alimentícias desde o surgimento da agricultura.
A maioria dos americanos provavelmente não sabe que as sementes que dão origem à comida nas suas mesas – e ao algodão que eles vestem, ao etanol que queimam em seus carros e à forragem que engorda as galinhas e vacas que eles comem – são controladas por um pequeno clube de conglomerados. Nos anos 1990, com a introdução das sementes geneticamente modificadas – a implantação de genes estranhos para aumentar a resistência a insetos ou herbicidas –, centenas de pequenas empresas de sementes nos EUA foram simplesmente liquidadas. Elas não conseguiram competir com as grandes. Após um frenesi de aquisições e fusões, as dez maiores gigantes acabaram ficando com 67% do mercado mundial de sementes. Na definição da maioria dos economistas, isso é monopólio. Mesmo que as lavouras de alimentos sejam um recurso essencial à sobrevivência da humanidade – desculpa aí, Microsoft e Google –, o governo dos EUA começou a indiciar a indústria por formação de cartel e outros abusos há somente dois anos.
A Monsanto, por exemplo. Pode-se dizer de qualquer corporação cuja página na Wikipedia contenha seções como “Trabalho infantil”, “Suicídios de fazendeiros” e “Condenações por extorsão na Indonésia” que ela tenha sérios problemas de imagem. Ainda assim a empresa, o bicho-papão favorito do movimento pela agricultura sustentável, parece imune à controvérsia.
Em parte porque seus técnicos inventaram as sementes geneticamente alteradas mais populares do mercado. O sistema RoundupReady é sucesso de vendas, produzindo lavouras resistentes com o poderoso glifosato, um herbicida que permite que os agricultores se livrem de ervas daninhas sem muito esforço.
As sementes da Monsanto implantadas com DNA tóxico matam insetos irritantes sem precisar de pesticidas. Mas o produto mais importante da companhia é, definitivamente, um pedaço de papel.
A Monsanto, como outros fornecedores de sementes transgênicas, exige que os fazendeiros assinem um acordo de “tutela tecnológica” que proíbe os clientes de replantar a semente. Écompreensível: o contrato assegura o retorno dos investimentos da empresaem biotecnologia, que podem chegar a dezenas de milhões de dólares em pesquisa e custos regulatórios por variedade de sementes. Mas também acaba com uma prática tradicional dos fazendeiros de conservar sementes locais e mais “biodiversas” para uso futuro.
Soberania genética
Este ritual de soberania genética que remonta ao período Neolítico está desaparecendo. Isto porque, perversamente, os agricultores não são proprietários do material genético das suas sementes hi-tech. A Monsanto e outras corporações, sim. E a enorme fatia do mercado da Monsanto – quase um terço do milho e da soja cultivados nos EUA – signifi ca que, quando a companhia eleva seus preços em 50%, como fez entre 2005 e 2008, os fazendeiros resmungam discretamente, já que eles não querem ficar de fora.
Espertinhos que tentem replantar as sementes modifi cadas podem ser denunciados anonimamente através de um telefone 0800 da empresa. A gigante chega a contratar detetives particulares para investigar os suspeitosde “quebra de patente”. Se necessário, eles são processados – inclusive agricultores que afi rmam quesuas terras foram acidentalmente infectadas por sementes trazidas pelo vento. Estas táticas de intimidação renderam à empresa alguns epítetos poucos simpáticos, como “Gestapo”.
“Nós acreditamos que a competição na indústria das sementes é bem robusta, e estamos absolutamente confi antes na integridade do parecer do Departamento de Justiça”, me informou Tom Helscher, porta-voz da Monsanto. Ele afi rmou que os agricultores podem escolher entre dezenas de tecnologias genéticas de diversas empresas. “A luta para ganhar um fazendeiro é intensa.”
Penso em tudo isso enquanto levo Chris Schmidt para almoçar em seu restaurante mexicano favorito. Eu o questiono sobre o que Jim Orf, um desenvolvedor de sementes de soja da Universidade de Minnesota, comentou sobre o fi m de nossatradicional intimidade com as sementes.
“Quando eu pergunto aos fazendeiros que sementeseles usaram ano passado, ou no ano anterior, eles não sabem responder”, conta ele. “Eles dizem ‘Syngenta’ ou ‘Monsanto’, ou eles esperam que eu sugira alguma coisa. Eles estão prestando mais atenção nos preços do que no que eles estão plantando.”
Orf está convencido de que a diversidade genética está diminuindo, mas diz que ninguém sabe bem o quanto. Ele diz que milhares de variedades de soja reunidas em um catálogo podem impressionar, mas muitas são as mesmas variedades registradas múltiplas vezes pelas gigantes do agronegócio. É tudo tão complexo, suspeito e inédito, que poucos conseguem acompanhar. Ninguém pode prever onde esta perda coletiva de memória agrícola pode nos levar.
E há ainda a pergunta de um milhão de dólares: alguém pode possuir uma semente? Uma forma devida deveria ser patenteável? Uma semente pertence à companhia que somente inseriu um gene para torná-la mais resistente a doenças? Ou é propriedade de gerações de agricultores e pesquisadores do setor público que aperfeiçoaram sua capacidade de germinação ou sua pele, aquela tão importante camada de proteção?
Eu olho para o meu prato de enchiladas. Imagino que a Monsanto está me encarando de volta. Suas sementes e seus genes patenteados estão lá, encarnados em pelo menos 80% do milho nas minhas tortillas.
Tradução: Carolina de Assis
Publicado originalmente na revista Conservation Magazine e reproduzido no número 02 da revista Samuel
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