Congresso no Paço das Artes, em São Paulo: participantes formavam grupos para discutir a arte no Brasil
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De 12 a 17 de dezembro passado, o enorme vão livre abaixo do Paço das Artes, na Cidade Universitária, em São Paulo, transformou-se num fervilhante misto de festa, happening e assembleia política. O IV Congresso Fora do Eixo não parecia muito um “congresso” de qualquer tipo. Quase ininterruptamente, formavam-se e desmanchavam-se rodinhas e rodonas de conversa, desde quatro ou cinco pessoas até aglomerados de 50, 70 ou mais pessoas. Esse pessoal, credenciado ou não, ia chegando e flutuando de roda em roda. Nem mesmo avisos com temas identificavam os instáveis conglomerados ou os vários convidados (Vincent Carelli, Emicida, Cláudio Prado, Pedro Alexandre Sanches — para citar apenas algumas das quase 200 personalidades de várias áreas culturais): nuvens de palavras-chave, rodando num telão único, mais inspirador que informativo, eram o que havia de mais próximo a uma “programação”.
Esse método do Fora do Eixo — rede de trabalhos cooperativos de agentes culturais independentes, criada no final de 2005 —, que lembra a dinâmica de um churrasco com muitos convidados, foi chamado de “não grade”. No fundo do espaço, oficinas — de dança, de videopoemas e de outras produções culturais. Do outro lado da rua, no auditório da Faculdade de Educação da USP, aconteciam, nos fins de tarde, as sessões do concorridíssimo Seminário de Música — este mais formal, reunindo um respeitável elenco da música independente nacional (ou seja, a música de parcos recursos e pouco acesso à mídia tradicional), empenhado em fazer um balanço de sua situação pós-digitalização e traçar estratégias de base cooperativada, capazes de fazer frente ao cenário atual.
Como os “fora do eixistas” sempre repetem: “Tudo ao mesmo tempo agora”. A “não grade” do Congresso, que reuniu mais de duas mil pessoas de todo o Brasil e de países latino-americanos, espelha algo da intensa e permanentemente cambiante mobilização dessa original e surpreendente rede cultural.
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Casa coletiva
O Fora do Eixo, que começou há apenas seis anos como uma colaboração entre os pioneiros de Cuiabá, Uberlândia, Rio Branco e Londrina, hoje conta, além de uma vasta rede de grupos parceiros, com 112 coletivos de produção cultural (pontos Fora do Eixo) associados e sete Casas (sedes fixas, e também residências coletivas de lideranças do circuito), uma em cada região do país, sendo três delas na região Sudeste, mais especificamente em São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES).
Vitor Guerra, que durante o Congresso atuou na coordenação dos registros e no debate sobre audiovisual na rede FdE, mora na Casa Fora do Eixo SP desde sua criação, em fevereiro de 2011. Com sua “garagem-estúdio multimídia faça você mesmo” (palco, pista de dança e espaço para transmissões ao vivo pela internet), suas paredes e muro com grafites permanentemente refeitos pelos amigos artistas, e um pátio com uma tabela de basquete sempre em uso, o sobrado, numa travessa residencial do bairro do Cambuci, rapidamente se tornou um ponto de encontro da cena musical independente, não só da capital paulista, mas de bandas de todo o país que estejam em trânsito.
Todo domingo misturam-se cerveja, pão com salsicha servida num panelão, shows musicais e muitos papos sobre ações culturais de todo tipo. Vitor explica que a criação da casa, bem no meio do “eixo” nacional, marcou um salto de organização da rede, que culminou no IV Congresso. Reuniram-se na Casa, dividindo moradia e trabalho, que não para nem nas madrugadas — a qualquer hora há alguém com seu laptop ligado na rede —, 16 lideranças do FdE, vindas de todas as regiões do país, e uma população flutuante de membros em trânsito, chegando a juntar 40 pessoas ou mais.
Atualmente, Vitor, que tem 25 anos, é membro da articulação nacional e do grupo de gestão regional do Clube de Cinema — à frente do audiovisual do FdE. Trabalha na PósTV, o projeto de webTV do circuito, e em tudo mais que a mobilização permanente demandar. Diz que não troca sua vida, de jeito nenhum, pela de quem apostou no caminho regular de trabalho em sua área, que é tentar emplacar projetos individuais de filmes e conseguir lugar de assistente em equipes e produtoras de cinema e TV.
Cada um dos 112 coletivos da rede produz eventos em sua cidade, negociando com casas de shows e parceiros locais e articulando-se com a rede FdE para receber bandas de todo o país. Boa parte desses coletivos é também composta de moradias coletivas, mas que funcionam como uma pequena empresa cooperativada, na qual todos trabalham, moram e consomem coletivamente, com uma única conta bancária, um fundo comum consensualmente administrado.
Nacionalmente, o FdE organiza-se em sete regionais, todas elas com representantes que integram um colegiado nacional de 70 membros. Esse conselho, permanentemente conectado pelas ferramentas contemporâneas de comunicação on-line, mantém um constante debate sobre as decisões estratégicas, inclusive as financeiras, que direcionam os recursos dentro das várias frentes e ações simultâneas do FdE.
No ano passado, a rede FdE realizou 170 festivais de música independente, 5.152 shows, distribuiu mais de oito mil títulos, principalmente CDs de bandas independentes, realizou 750 projeções de filmes, e foi responsável por atividades de formação, algumas delas resultando na criação de novos coletivos na rede, vindos dos lugares mais remotos do Brasil.
* Texto publicado originalmente na revista Retrato do Brasil
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