Apoiados em um pé, os flamingos do Salar de Uyuni, na Bolívia, caminham literalmente sobre as nossas baterias
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Você já viu flamingos na Lua? Em brejos, pântanos e zoológicos, essas aves pernaltas já são suficientemente notáveis — com suas plumas de fogo e seu bico de bumerangue, apoiadas numa só perna-palito, com um calombinho no joelho. Mas coloque-os numa paisagem infinitamente plana e branca, e eles se tornam algo de outro planeta.
O Salar de Uyuni, na Bolívia, é uma dessas paisagens. Maior planície salina do mundo, ele se estende por milhares de quilômetros quadrados e é famoso por poder ser visto do espaço. Na época de chuvas, uma fina camada de água transforma a planície, a 3.660 metros de altitude, no maior espelho do mundo, refletindo o céu e também os turistas aventureiros — além de milhares de flamingos que se aglomeram por lá todos os anos para botar seus ovos. É o único local do planeta onde ocorre a procriação das três espécies existentes de flamingos dos vulcões. “Imagine só milhares de flamingos procriando juntos, em um lugar, uma vez por ano”, diz Marita Davison, pesquisadora do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Cornell, nos EUA. “Eles estão basicamente colocando todos os seus ovos em um só cesto, em um só lago.”
É uma situação bem precária, mesmo que o lago permaneça intacto. Mas isso talvez não esteja no programa — porque os flamingos estão literalmente sentados sobre as nossas baterias. Se você escavar algumas dezenas de centímetros no Salar de Uyuni, misturar a terra com um pouco de água e deixar evaporar, em um par de anos você ficará com um monte de cristais de lítio — o mesmo material que alimenta nosso celular, nosso laptop e outros apetrechos portáteis. Ele pode alimentar até o seu próximo carro, se ele for elétrico. Na verdade, devemos a própria mobilidade dos nossos aparelhos móveis a esse terceiro elemento da tabela periódica.
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Pilhas de Bagdá
A demanda mundial pelo metal certamente irá aumentar nos próximos anos — chegando a níveis inéditos se os carros elétricos se enfileirarem nas nossas ruas e estradas. Alguns especialistas preveem que os atuais fornecedores de lítio poderiam em poucas décadas esgotar os estoques e depósitos conhecidos. E, se o mundo recorrer às planícies de sal da Bolívia para receber suas doses de lítio, o viveiro de flamingos bolivianos pode ficar em apuros.
Mas a potencial escassez de lítio também motiva a busca por alternativas que venham a eliminar a pressão sobre ecossistemas saturados do metal. Muitos pesquisadores energéticos estão tentando desenvolver baterias melhores, que usem menos lítio para armazenar mais eletricidade. Muitos esperam aproveitar novos materiais — polímeros, nanotubos, fibras de carbono e até algas — para criar um dispositivo de armazenamento melhor. As baterias de ar-lítio provavelmente multiplicarão em várias vezes o poder das baterias. Mas a ideia mais visionária é a de que o futuro das baterias pode na verdade não envolver bateria alguma.
Já não é sem tempo de as baterias evoluírem — a tecnologia não mudou muito nos últimos 200 ou, possivelmente, 2.000 anos. Basicamente, todas as baterias consistem em três elementos: um ânodo e um cátodo (os elétrodos), mais um eletrólito. O ânodo e o cátodo são dois elementos com potenciais eletroquímicos diferentes: o cátodo (o polo negativo da bateria ou pilha) é projetado para perder elétrons, e o ânodo (o polo positivo) para absorvê-los. Os dois ficam separados por (ou submersos em) um eletrólito, uma substância condutora preparada para reagir com os elétrodos. Quando um circuito é criado com os três elementos, os elétrons fluem do ânodo para o cátodo através do eletrólito, gerando a energia.
Antigos vasos em formato de granada encontrados no Iraque e datados da época de Cristo contêm todos os elementos dos cartuchos que carregamos nos nossos aparelhos eletrônicos atuais. O eletrólito deles era provavelmente vinho, e, de fato, recriações das “pilhas de Bagdá” usando esse líquido produziram voltagem. Ao longo dos séculos, a equação básica da bateria permaneceu a mesma. O que mudou foram os materiais que compõem os elétrodos e eletrólitos.
Carro elétrico
Nos anos 80 do século XX, surgiram as baterias de íon-lítio. Transformar o lítio em um eletrólito foi um feito e tanto. Essas baterias armazenam mais energia por quilo do que qualquer outra bateria comercial, e tem um lento “índice de autodescarga” (ou seja, elas mantêm a carga quando não estão em uso). O lítio tem mineração fácil, e é relativamente seguro se for atirado em um aterro sanitário.
Sua leveza, energia e facilidade de exploração são cruciais na produção de carros elétricos capazes de acelerarem rapidamente e cobrirem centenas de quilômetros sem parar no posto. Até o advento do lítio, o carro elétrico era imaginado apenas como um veículo de curto alcance. O EV1, lançado em 1996 pela General Motors, precisava ser recarregado após 120 km. Hoje, o elétrico esportivo Tesla Roadster pode andar cerca de 400 km sem recarregar. No momento, veículos totalmente elétricos nas estradas dos EUA são contados na casa dos milhares. O presidente Barack Obama espera elevar esse número a 1 milhão até 2015. Se a tecnologia, as políticas e a demanda permitirem, não é improvável que dentro de algumas décadas 100 milhões de veículos por ano dependam do lítio.
Essa disparada na demanda pode significar que, entre dez e trinta anos, deixaremos de atender às nossas necessidades em termos de lítio de forma tão barata quanto hoje. O ecologista Thomas Cherico Wanger, pós-doutorando em Stanford, alerta que “os recursos totais de lítio provavelmente estarão esgotados antes de 2025”. Outras previsões são menos sombrias, mas mesmo assim apontam para uma queda na oferta.
No entanto, Brian Jaskula, especialista em lítio do Departamento de Pesquisas Geológicas dos EUA, diz que o elemento dificilmente vai acabar, pois muitas novas fontes estão surgindo nos EUA, na Argentina e em outros países. O lítio também é fácil de reciclar, e, embora a demanda seja bastante grande, ele pode ser extraído da água do mar. Mesmo assim, se o carro elétrico decolar, “pode haver algumas perturbações de curto prazo entre 2020 e 2030”, diz Jaskula. E então as remotas planícies salinas da Bolívia provavelmente serão exploradas.
Independentemente da quantidade de lítio que houver para explorar, a maioria dos pesquisadores de baterias e outros especialistas concorda que ele afinal acabará sendo substituído por outra coisa – provavelmente por algo ainda não imaginado. Se de fato o nosso uso do lítio para o armazenamento de energia for temporário, parecerá ainda mais tolo e trágico destruir um ecossistema ímpar.
Peso morto
Então, podemos construir uma bateria sem lítio que seja menos nociva ao ambiente? A vasta maioria dos pesquisadores está focada em criar elétrodos mais eficientes e em reduzir os metais “antiecológicos” das nossas baterias atuais. Mas uma das ideias mais ambiciosas de todas é repensar a própria noção sobre o que é uma bateria. Pesquisadores do Imperial College, emLondres, e da Universidade Estadual de Nova York (Suny), em Buffalo, estão antevendo um futuro em que materiais banais — concreto, plástico, fibra de carbono — na estrutura dos carros e edifícios manteriam a energia necessária para alimentá-los.
“Atualmente, o gabinete do seu computador ou celular tem um propósito apenas estrutural — para que você possa atirá-los por aí e pegá-los outra vez”, disse Joachim Steinke, conferencista de química dos polímeros no Imperial College. Os invólucros que protegem nossos aparelhos, e particularmente nossos veículos, agregam um peso considerável e pouca coisa a mais. Mas novas tramas de fibra de carbono produzidas por Steinke e pela Equipe de Armazenamento Energético Estrutural do Imperial podem fazer com que esse peso morto se torne bem menos morto.
Steinke e sua equipe esperam dar um segundo propósito à estrutura de suporte dos nossos aparelhos eletrônicos e carros. A fibra de carbono que eles anteveem – e da qual já criaram um pequeno retalho – funcionaria como um capacitor (na verdade, um supercapacitor). Em vez de armazenar a energia por meios eletroquímicos, como faz uma pilha ou bateria, um capacitor a armazena de forma eletrostática. As cargas positiva e negativa são separadas, criando o potencial elétrico quando elas são unidas. Como os capacitores podem despejar toda a sua carga de uma vez, eles funcionam bem para equipamentos que precisam de um pico de energia, como um carro em aceleração.
A equipe do Imperial College está agora trabalhando com a Volvo para substituir um pedacinho do assoalho de um carro pela sua fibra de carbono, a fim de ajudar a mover o veículo. Mas, na visão de Steinke para o futuro, toda a carroceria do carro acumularia carga, permitindo que a bateria encolhesse ou sumisse completamente. O Tesla Roadster pesa cerca de 1.250 kg, dos quais 500 kg de bateria. “Então, se conseguíssemos reduzir o peso das baterias pela metade que fosse”, diz Steinke, “isso tornaria o Roadster muito mais eficiente”.
No mais “verde” dos mundos, depois de você ter estacionado o seu Roadster na garagem e o ligado a uma tomada para ser recarregado durante a noite, a energia viria do sol, do vento e de outras fontes renováveis. Mas, mesmo assim, ainda há o problema do armazenamento de energia – o sol não brilha à noite, e o vento não sopra 24 horas por dia. Atualmente, a solução é guardar os raios diurnos numa bateria de baterias no porão. Mas, se a cientista de materiais Deborah Chung, da Suny-Buffalo, estiver certa, poderemos transformar a própria estrutura das nossas casas em baterias. Ela está trabalhando em uma tecnologia na qual “plugar na parede” vai querer dizer mesmo “plugar na parede”. “Todo mundo está simplesmente olhando para baterias pequenas”, diz Chung. “Isso é maravilho, é ótimo. Mas seria bom se as pessoas pudessem saltar para fora dessa caixa e olhar ainda mais além. Se as estruturas puderem armazenar energia, isso realmente abre bastante o horizonte. Estruturas de concreto estão por todo lado.”
O concreto é um material poroso, feito com uma mistura de água e cimento — e a água funciona como eletrólito, embora não muito eficiente. Quando Chung colocou um ânodo e um cátodo numa laje de concreto, ela conseguiu produzir alguns microwatts por hora por quilo. Isso é suficiente para alimentar um ou dois aparelhos auditivos. “O que eu estabeleci é a viabilidade científica básica”, diz Chung. “É necessário fazer muito mais pesquisa para deixar a densidade energética em ponto de bala, e para torná-la recarregável.”
Mundo sem fio
Em um mundo que se tornou sem fio, parece francamente antiquado plugar algo tão tecnologicamente avançado quanto um carro elétrico em uma parede com um fio. Mas pesquisadores do Laboratório de Dinâmica Energética da Universidade Estadual de Utah dizem que não precisamos fazer isso. Eles desenvolveram o protótipo de um sistema energético sem fio que bombearia a eletricidade para os carros em movimento. A solução deles poderia afinal resolver o problema carro/bateria, ao retirar totalmente a energia do carro.
O truque consiste na ressonância magnética acoplada. Basicamente, uma grande bobina sob a pista seria ativada quando um carro se aproximasse, gerando um campo magnético. O campo pode ser moldado e afinado para uma frequência específica, permitindo que a eletricidade seja recebida por uma bobina receptora sob o assoalho do carro. “Tesla teve a ideia da energia sem fio há cem anos”, observa Jeff Muhs, diretor do laboratório. “Há cerca de quatro anos, ela se tornou tecnicamente viável.”
Ao menos inicialmente, a bateria continuaria sendo um elemento essencial. Com a expansão do número de carros elétricos nos próximos anos, as bobinas de Muhs poderiam ser enterradas em estacionamentos, em garagens e em “postos de abastecimento” sem fios. Posteriormente, poderiam ser incorporadas às ruas e rodovias. No fim das contas, no entanto, se a tecnologia de transferência energética sem fio provar ser a resposta,toda rodovia, estrada vicinal, beco e entrada de garagem seriam equipadas para emitir pulsos energéticos para osveículos totalmente elétricos que deslizarão sobre eles. “Daqui a 30 ou 40 anos, você teria esse sistema totalmente integrado”, diz Muhs. “Você veria todos os Estados americanos tendo uma faixa — talvez a ‘faixa de carregamento rápido’ —, e estaríamos afinando nosso sistema para continuar a expandir a rede de vias elétricas.”
Atualmente, no entanto, os protótipos para transferênciaenergética sem fio, os compostos de carbono e futurismos similares caberiam no porta-malas de um Prius. Até eles saírem do chão e pegarem a estrada, continuaremos dependentes do lítio. E os flamingos, serenamente apoiados em uma perna, podem ter de procurar outro lugar para se equilibrarem.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto publicado originalmente na revista Conservation Magazine
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