Carteirinhas criadas pelo Levante Popular da Juventude identificando os torturadores que agiram durante a ditadura
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #04: Comissão da Verdade
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Nestor Veras tinha 60 anos quando foi preso em frente a uma farmácia de Belo Horizonte, em abril de 1975. Membro do Comitê Central do PCB (Partido Comunista Brasileiro), tinha mulher e cinco filhos. Desde aquele dia, foram 37 anos sem que se tivesse qualquer informação sobre seu paradeiro. Agora, vem uma informação: “(Veras) tinha sido muito torturado e estava agonizando. Eu lhe dei o tiro de misericórdia, na verdade dois: um no peito e outro na cabeça”. O relato do ex-delegado do Dops (Departamento de Ordem Pública e Social) Cláudio Guerra ao recém-lançado livro Memórias de uma guerra suja foi a primeira “bomba” lançada às vésperas da instalação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil. Além da execução de Veras, Guerra também confessou — mas ainda não está claro o quanto se pode confiar em seu relato — ter participado da incineração dos corpos de 11 militantes de esquerda que haviam sido presos, torturados e mortos pelo aparelho de repressão da ditadura.
O polêmico depoimento de Guerra é uma boa medida do árduo trabalho que aguarda os sete brasileiros — cinco homens e duas mulheres — nomeados em maio pela presidente Dilma Rousseff para conduzir a investigação oficial sobre as milhares de violações aos direitos humanos ocorridas no período. Para as vítimas do terrorismo de Estado, em especial os familiares de mortos e desaparecidos políticos, a comissão é uma das últimas oportunidades de revelar ao país fatos ocorridos nos chamados “Anos de Chumbo”. Como Nestor Veras, há pelo menos outras 162 pessoas detidas pela repressão cujo destino ainda é totalmente desconhecido.
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Passo fundamental
As experiências de países da América Latina que passaram por regimes autoritários mostram como as Comissões da Verdade são um passo fundamental para romper o pacto de impunidade imposto pelas ditaduras. Seu resultado direto, no entanto, pode, caso a comissão se sujeite a pressões de civis e militares interessados em ocultar os fatos, ser instrumento de composição e apaziguamento na transição para a democracia.
Para o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz (1980) e ativista de Direitos Humanos na América Latina, foi exatamente o que ocorreu com a Conadep (Comisión Nacional sobre a Desaparición de Personas), criada em 1983 por Raúl Alfonsín. Esquivel chegou a ser convidado por Alfonsín para presidir a comissão, mas recusou. “Disse que só aceitaria com uma condição: que tudo passasse pela justiça civil e não pela justiça militar. Porque os militares não poderiam ser juiz e parte de tudo isso. Aí Alfonsín ficou em silêncio”, contou Esquivel à repórter Luciana Taddeo.
Primeiro presidente civil do pós-ditadura, Alfonsín fez um governo marcado pela tentativa de equilibrar o desejo de justiça com a pressão dos militares. Assim, fez da Conadep uma comissão com poderes limitados. Liderada pelo escritor Ernesto Sábato, durante nove meses, ela analisou documentos e ouviu testemunhos de vítimas e familiares de desaparecidos. Esquivel lembra que as provas eram quase todas fornecidas pelas organizações de direitos humanos, já que a comissão não podia requisitar documentos oficiais nem convocar testemunhas.
Ainda assim, o resultado foi um relatório de 50 mil páginas intitulado Nunca Más, que apontou a existência de 8.960 desaparecidos políticos, número que a própria comissão já considerava subestimado — hoje acredita-se que cerca de 30 mil pessoas tenham sido mortas pela ditadura argentina. O relatório ainda identificou 1.351 responsáveis por sequestros e assassinatos de opositores, mas os nomes não foram tornados públicos. A lista foi entregue só a Alfonsín, que repassava as causas ao Conselho Supremo das Forças Armadas.
Nos anos seguintes, Alfonsín acabou cedendo à pressão dos militares e aprovou duas leis de anistia: a Lei de Obediência Devida, que isentava de culpa os militares de baixa patente que seguiam ordens dos superiores, e a Lei de Ponto Final, que estabelecia prazo de um ano para que fossem apresentadas queixas contra os militares. Anos depois, o presidente Carlos Menem acabou anistiando também a cúpula das Forças Armadas, incluindo os generais-presidentes Jorge Videla, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone.
“O pacto de impunidade só se rompeu com [Nestor] Kirchner. O que ele fez foi apoiar o que nós pedimos por anos: a anulação das leis de impunidade”, observa Esquivel. Desde 2003, e após condenações na CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos), a Justiça argentina iniciou um processo de investigação e julgamento que já levou à condenação de centenas de militares, incluindo Videla e Bignone.
Interesses políticos
Segundo um estudo de três pesquisadores chilenos, encomendado pela Associação para a Prevenção da Tortura, com sede em Genebra (Suíça), há um triste padrão no trabalho das comissões da verdade de respeitar interesses políticos de modo a não ameaçar a transição para a democracia.
Teria sido assim no Chile, onde a Comissión Nacional de Verdade e Reconciliación, instaurada em 1991 por Patrício Alwin, sequer tinha a autorização para identificar culpados individualmente. O grupo de trabalho também durou nove meses e o balanço final declarou a responsabilidade da ditadura de Augusto Pinochet pela morte de 3.400 pessoas, de acordo com o levantamento assinado por Víctor Espinoza Cuevas, Maria Luisa Ortiz Rojas e Paz Rojas Baeza. Mesmo sem a acusação nominal, o relatório causou revolta no setor militar, ainda fiel a Pinochet.
Outra limitação da comissão chilena foi o fato de só poder investigar violações que resultaram em morte, o que excluiu as milhares de vítimas de tortura. Para acalmar as Forças Armadas, o primeiro governo da Concertação voltou atrás na promessa de campanha de revogar a lei de autoanistia imposta pelo ditador. Só recentemente, após uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Chile revogou sua lei de anistia e promoveu investigações criminais sobre o período.
Em El Salvador e na Guatemala, as comissões da verdade foram instaladas em meio a acordos de paz mediados pela ONU (Organização das Nações Unidas) entre governo e guerrilha. Ambas também favoreceram a conciliação nacional, embora tenham reconhecido as violações do governo salvadorenho na guerra civil com a FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) e o genocídio do governo da Guatemala contra as populações de origem maia.
Fator positivo
Apesar das limitações das comissões da verdade, o caso brasileiro é ainda mais constrangedor. Aqui, a própria investigação e o balanço dos crimes da ditadura militar, que durou de 1964 a 1985, são um tabu a que se aferram os defensores de uma legalidade imposta pela Lei de Anistia em 1979, que o Supremo Tribunal Federal julgou poder ser acolhida por uma Constituição, elaborada quase dez anos depois e que ampliou como nunca o leque de direitos humanos reconhecidos pelo Estado brasileiro.
A “desvantagem” de quase 30 anos na criação da Comissão da Verdade brasileira, no entanto, pode se tornar um fator positivo. Se, por um lado, o correr do tempo pode dificultar a investigação, por outro pode ser um fator de independência para o trabalho de seus integrantes, uma vez que não há mais a necessidade de garantir a transição. A democracia consolidada afasta qualquer possibilidade de se invocar o temor de um golpe militar para frear a comissão.
Esta é, por exemplo, a opinião do ex-secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, para quem ainda há muitos fatos obscuros a serem esclarecidos sobre o regime militar que a comissão vai poder investigar. “Para começar, o trabalho não se inicia do zero. As Comissões de Anistia (2001) e de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995) já levantaram milhares de documentos e depoimentos”, argumenta. Destaque-se também o histórico relatório Brasil Nunca Mais, elaborado nos anos 1980 sob a coordenação do arcebispo católico Dom Paulo Evaristo Arns e do pastor presbiteriano Jaime Wright.
Miranda, que atualmente preside a Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores, chegou a ser cotado para integrar a comissão, mas acabou ficando de fora. Ponderado, prefere dizer que a comissão vai permitir rever o passado, “para atualizar os livros escolares, servir de referência básica da sociedade sobre o que aconteceu e evitar que se repita no futuro”.
Mas ele não descarta que as informações levantadas pelo grupo de trabalho possam servir para a abertura de processos judiciais. “Já há uma iniciativa em curso de setores do Ministério Público, que pediram a abertura de processos e investigações, com base na tese do crime continuado de sequestro”, afirma o ex-ministro. Ou seja: para esses procuradores, no caso de desaparecidos que a ditadura nunca reconheceu estarem mortos, a aplicação da Lei da Anistia não faria sentido, pois o crime de sequestro continuou existindo depois de sua aprovação.
Sobre o atraso em relação aos vizinhos, Nilmário Miranda prefere olhar para frente. “Cada país teve uma transição diferente. Na Argentina por muito tempo vigorou uma anistia. No Uruguai, a população já rejeitou por duas vezes em plebiscitos a revogação da lei de anistia. Prefiro trabalhar com o ‘antes tarde do que nunca’”.
* Publicado originalmente no site de notícias internacionais Opera Mundi
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