Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #04: Comissão da Verdade
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Mesmo contra a vontade das organizações de ultradireita que acusavam o juiz Baltasar Garzón, o julgamento contra ele terminou por favorecer familiares das vítimas do regime do ditador Francisco Franco, dando-lhes uma oportunidade que a Justiça espanhola lhes havia negado: depor diante do Supremo Tribunal como seus pais, avós ou tios tinham sido detidos, executados e sepultados em covas e valas clandestinas. Seus depoimentos não serviram para fazer justiça, mas detonaram uma condenação moral e social contra o franquismo, cujos seguidores ainda estão no poder. Os depoimentos sobre os crimes cometidos na ditadura foram ouvidos pela primeira vez num tribunal espanhol. E no tribunal de maior hierarquia: na Sala Penal do Supremo Tribunal.
Os filhos e netos das vítimas expuseram seu drama a pedido da defesa de Baltasar Garzón, magistrado da Corte Especial, submetido a juízo por pretender que esses crimes fossem objeto de investigação. Uma dezena de descendentes de vítimas — uma amostra dos 114 mil casos que Garzón documentou — relataram a brutalidade da ditadura. Fizeram esse depoimento diante de sete magistrados, que não fizeram um movimento facial sequer.
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Figura religiosa
Logo após os primeiros depoimentos, ocorridos no dia 1° de fevereiro, o advogado José María Ruiz, representante do autointitulado Sindicato Mãos Limpas, de ultradireita, pediu ao presidente do tribunal, Carlos Grandados, que “reconduzisse” os depoimentos dos presentes porque, disse ele, “quem deve ser julgado é o acusado Garzón”. No entanto, Granados rebateu: “Aqui quem determina quais provas são pertinentes é o presidente do tribunal”.
Do outro lado da sala, na última fileira onde senta-se o público, Miguel Bernad Remón, secretário-geral do Mãos Limpas, se mexia em sua cadeira. Tinha o ar indignado e registrou esse sentimento no site de sua entidade, referindo-se ao “grande circo de Garzón”, por recorrer às histórias das vítimas.
[O juiz espanhol Baltasar Garzón foi julgado na Suprema Corte de Madri por abuso de poder, por ter abrido processo contra o regime franquista]
Nas audiências, Bernad localizava-se no fundo da sala, aos pés de um crucifixo de dois metros de altura que enfeita a parede do tribunal superior. “Que imagem curiosa”, ironizou o escritor Manuel Rivas, referindo-se a essa luxuosa figura religiosa que causou estranheza na sede de uma instituição de um Estado que “se define laico”. “A imagem também causa estranheza por causa do papel colaboracionista da Igreja Católica com o franquismo, regime que apoiou e cujos membros foram nomeados Cruzados de Deus”, como lembrou o advogado Fernando Magán, que em 2006, representando a Associação para a Recuperação da Memória Histórica, apresentou ao juiz Garzón o pedido de investigação sobre o desaparecimento de 30 mil espanhóis.
Bandeira franquista
Inspirado no modelo do movimento italiano Mãos Limpas, também de ultradireita, Miguel Bernad lidera esse pseudossindicato — não se tem notícia de nenhuma lista de representados em administrações públicas, onde diz atuar — que se destaca por formular petições contra várias decisões dos governos socialistas ou autônomos, ou por supostos casos de corrupção.
Bernad já tinha ocupado um cargo, anteriormente, na Secretaria Geral da Nova Força e da Frente Nacional, partidos liderados por Blas Piñar, um dos notáveis defensores dos ideais franquistas.
O jornal Público divulgou que, em 3 de dezembro de 2011, a filha de Franco, María Del Carmen Franco y Polo, duquesa de Franco, nomeou Bernad “Cavalheiro de Honra” por seus “serviços em defesa dos ideais do movimento”.
De acordo com o jornal, esse ato foi realizado para celebrar o 119º aniversário do nascimento do general golpista. O evento foi realizado no restaurante El Faro de El Pardo, em Madri. No local, Bernad reverenciou o ditador diante da duquesa de Franco. Segundo a publicação, a fundação outorgou o título a Bernad como prêmio pela expulsão de Garzón da Corte Especial. A bandeira franquista chegou a ser hasteada, houve missa e um discurso de Blas Piñar, que opinou sobre o Valle de lós Caídos, monumento máximo do franquismo e mausoléu onde se encontram os restos mortais — dos dois grupos — da guerra civil: “Se a Frente Popular tivesse ganhado a Guerra Civil, não existiria um monumento laico para reconciliação”.
Apenas a verdade
Com a ajuda de um andador, María Martín, de 81 anos, entrou na sala do tribunal vestida de preto e cabelos completamente brancos. Assim que repetiu seu nome completo, com voz rouca e quase afônica, disse ao tribunal que só conhecia Garzón “pela televisão e jornais” e jurou dizer “apenas” a verdade.
“Minha mãe foi assassinada em 1936. Morreu por não ter mil pesetas. Meu pai, antes de morrer em 1977, me pediu que eu continuasse a procurá-la para que ela pudesse ser enterrada com ele”, disse.
Na noite de 21 de setembro de 1936, María tinha seis anos. Seu pai estava preso. Os franquistas chegaram e arrancaram María de sua casa, fazendo o mesmo com vizinhos, exigindo-lhes mil pesetas. Como eles não tinham o valor, todos foram detidos em Arena de San Pedro, mas sua mãe foi assassinada no trajeto. “Nesse dia mataram um total de 27 homens e três mulheres. Apenas um homem conseguiu fugir e nunca foi encontrado”, disse.
Neste mesmo dia, o historiador Ángel Rodríguez Gallardo, representante da associação Memória Histórica de Ponteareas, em Pontevedra, explicou que realizou inúmeras investigações sobre a repressão franquista em Galícia. Concluiu que houve um “plano sistemático” para eliminar os responsáveis políticos da Segunda República. “O que aconteceu foi uma coisa terrível, porque não foi feito nada, enquanto em outros lugares do mundo foram feitas denúncias de fatos similares”, disse.
Olga Alcega Madruga, integrante da Associação de Familiares Fuzilados, Assassinados e Desaparecidos, em Navarra em 1936, inaugurou o segundo dia dos depoimentos: “Não tenho sentimento de vingança”, explicou. A organização a qual ela pertence tem registros de 3.452 pessoas desaparecidas. “Todos os levados no dia 18 de julho de 1936 continuam desaparecidos. Eu sou a neta de Antonio Alcega, um carteiro desaparecido há 74 anos. Ele estava com suas vacas e a Guarda Civil o levou. Saiu do quartel muito ferido. Levaram-no a Megallón e lhe deram um tiro na cabeça”, relatou.
Na vala comum onde estão os restos mortais de seu avô há 79 homens e duas mulheres: “Hoje posso afirmar que meu avô foi assassinado. E, ainda por cima, abriram contra ele expediente de responsabilidades políticas quatro anos depois de haver morrido”.
Restos mortais
Pedro Fausto Canales, membro da associação de recuperação da memória histórica de Valladolid, esperou aposentar-se para poder intensificar a busca de seu pai, sequestrado por um grupo de falangistas, em sua casa, em Pajares de Adaja, Ávila, em 1936. Canales tinha dois anos e dormia no berço quando os falangistas invadiram a casa. Ele diz que seu pai e mais nove homens foram levados para Aldeaseca, fuzilados e enterrados em uma fossa.
“Em 23 de março de 1959”, contou, “uma semana antes da inauguração do Valle de lós Caídos, o regime exumou os restos mortais de sete pessoas de um poço em desuso”, onde se supõe que estivesse o corpo de seu pai. Esses restos mortais, juntamente com mais de milhares de mortos de várias regiões da Espanha, foram levados ao Valle de lós Caídos sem a autorização nem o conhecimento de seus familiares. “Eu sei que meu pai está na caixa 198, onde se supõe que estão os restos mortais de sete pessoas.” Suas tentativas para recuperar o corpo não foram bem sucedidas.
Já María Antonia Oliver París, da Associação da Memória de Mallorca, denunciou que na ilha mediterrânea a repressão começou no dia seguinte ao golpe militar, em 19 de julho de 1936. “As execuções começaram com listas pré-concebidas”, disse. A testemunha esclarece que não houve uma frente de oposição ao regime, mas frequentes assassinatos extrajudiciais. Sua associação documentou 1.600 casos, apesar de eles terem conhecimento de que as vítimas chegam a 3 mil. No final da seção, María Antonia disse em uma entrevista que o processo contra Garzón está abrindo “novas feridas nas atuais gerações”.
Na porta do tribunal, logo após a audiência, Ángela Fernández Carballedo, manifesta-se indignada, junto ao público, contra o julgamento de Garzón. Com as fotografias em tom sépia de suas vítimas — seu pai Francisco Fernández e seu tio Palmiro —, ela sustenta que “não se julga a verdadeira razão: os crimes do franquismo. Não estão julgando Garzón, mas nós, os familiares, estamos voltando a ser julgados. Franco continua nos mantendo presos”.
Tradução por Mari-Jô Zilveti
* Texto originalmente publicado na revista semanal mexicana Proceso
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