Cena de Nostalgia da luz, no qual Guzmán cria alegoriapara falar das vítimas da ditadura
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Nomeado por si mesmo para ser a Comissão da Verdade e Reconciliação de um homem só, o chileno Patrício Guzmán devotou as últimas quatro décadas a registrar o efêmero governo Allende e a sombria Era Pinochet que se seguiu. Ninguém se dedica de forma tão incansável a retratar sua pátria quanto Guzmán, um membro da classe média confortável de Santiago que se encantou com o socialismo de Allende — e depois foi chacoalhado pelo golpe de Pinochet em 1973.
A melhor maneira de abordar sua obra é começar por onde Guzmán começou, com A batalha do Chile (1975-1979), provavelmente a mais vital peça de história real já registrada em película — no mínimo, porque nações inteiras geralmente não mergulham em uma autocracia homicida por meio de um filme.
As três partes de “A batalha” totalizam mais de quatro horas e documentam a ascensão de Allende e o subsequente golpe alimentado pela CIA. Ele só conseguiu concluir seu épico durante o exílio na Espanha. Alguns anos após Pinochet ceder o poder, voltou para mostrar o filme pela primeira vez em Santiago.
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Deserto do Atacama
Num documentário desesperado, Chile, a memória obstinada, Guzmán cutuca feridas que ninguém deseja abrir, levando A batalha para escolas onde as crianças aprendiam uma bizarra versão de 1973. Em sua procura da verdade, a própria história lhe ajudou em seguida, quando Pinochet foi preso na Inglaterra, em 1998, acusado de violações dos direitos humanos. O caso Pinochet (2001) acompanha o processo desde o momento em que o promotor Carlos Castressana, de Madri, descobre uma brecha na lei espanhola que lhe permitiria denunciar Pinochet por violações dos direitos humanos, até o momento em que o ex-ditador pousa a salvo em sua pátria — quando então o sonâmbulo Judiciário chileno de repente sente o cheiro da carniça.
Ele retornaria mais uma vez ao passado com Salvador Allende (2004), dando ao ícone socialista perdido a biografia que ninguém no Chile escreveu.
Já Nostalgia da Luz, seu último filme, pode parecer uma estranha nova direção — rumo à astronomia e à filosofia, pousando no deserto do Atacama, que por causa da sua elevação e secura é um dos melhores locais para observatórios no planeta. Mas Guzmán usa a distância das estrelas para ruminar sobre a natureza do tempo, e reencontra seu tom sociopolítico, especulando sobre como o tempo tratou Chacabuco, cidade-fantasma que virou campo de concentração: seus ex-prisioneiros, os ossos espalhados das vítimas desaparecidas de Pinochet, e as idosas que ainda vasculham o deserto atrás de partes de corpos.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto originalmente publicado na revista mensal norte-americna In These Times
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