Nos aeroportos leiloados circulam quase um terço dos passageiros e uma em cada cinco aeronaves comerciais
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É segunda-feira, 6 de fevereiro, 10 horas. Com o toque da sirene, o burburinho das centenas de pessoas presentes à sede da BM&FBovespa, no centro histórico de São Paulo, cai para um quase silêncio. É o sinal do início do ansiosamente aguardado leilão de privatização dos aeroportos de Brasília, Campinas e Guarulhos. Menos de três horas depois, o resultado está completamente definido, não sem algumas surpresas. Uma das maiores é que o total arrecadado — 24,5 bilhões de reais — equivale a quatro vezes e meia o valor mínimo estabelecido nos editais publicados pelo governo federal para a aquisição das concessões.
O aeroporto da capital federal teve o controle de sua operação vendido por 4,5 bilhões de reais. O de Campinas — o principal do país em volume de cargas —, por 3,8 bilhões de reais. Outros 16,2 bilhões foram comprometidos na aquisição do controle do terminal de Guarulhos — o maior em número de passageiros.
Vista pelo ângulo do montante arrecadado, a privatização desses aeroportos — que, no conjunto, são responsáveis pelo transporte de pouco menos de um terço dos passageiros, respondem por cerca de 60% do volume de cargas e são onde pousa e decola uma em cada cinco aeronaves comerciais que servem o território brasileiro — parece um grande sucesso.
À parte sua importância específica para os transportes, o leilão foi também simbólico: trata-se da primeira concessão à iniciativa privada de grandes aeroportos já em funcionamento (no ano passado, o de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte, ainda em fase inicial de construção, fora privatizado).
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Valores elevados
À medida que a voz firme do leiloeiro divulga as propostas para a aquisição das concessões, manifestações de surpresa surgem na BM&FBovespa. Tanto jornalistas quanto parte dos próprios investidores que concorrem não escondem certo assombro diante dos elevados valores. Para quem esperava uma disputa lance a lance, dessas que se veem em filmes quando se trata de um leilão de obras de arte, o que ocorre é uma decepção. Cena cinematográfica desse gênero só na disputa pelo aeroporto de Brasília, da qual sai vencedor o consórcio formado pela empresa Infravix Participações (com 50% do capital) e pela argentina Corporación América (50%). A Infravix é uma empresa ligada ao setor da construção civil, enquanto sua sócia é uma operadora de aeroportos.
Trata-se de uma combinação obrigatória, segundo as regras dos editais: os consórcios que disputam as concessões têm de incluir empresas com experiência de atuação no ramo. A disputa pelo aeroporto de Brasília acaba produzindo um ágio de 673% — isto é, o lance vencedor equivale a quase oito vezes o preço mínimo estabelecido.
Nos casos de Campinas e Guarulhos, a disputa é decidida de véspera. Assim que são lidos os valores das propostas iniciais — entregues dias antes — para cada um deles, fica claro que a diferença entre a mais alta e as demais em cada caso é tão grande que não haverá novos lances. O aeroporto de Campinas acaba arrematado com ágio de 160%. O vencedor é o consórcio formado pela Triunfo Participações (45% do capital), pela UTC (45%) e pela francesa Egis Airport Operation (10%). Guarulhos termina nas mãos da Invepar — formada pelos fundos de pensão Petros, Funcef e Previ e pela construtora OAS — e da ACSA (Airports Company South Africa), estatal sul-africana, que tem apenas 10% do capital do consórcio. O ágio chega a 373%.
As concessões leiloadas são válidas por períodos variados: a de Brasília, por 25 anos; a de Campinas, por 30 anos; e a de Guarulhos, por 20 anos. Sempre com a possibilidade de renovação por mais cinco anos, findo o prazo original. Durante o período de concessão, os valores das outorgas serão pagos em prestações anuais. Os vencedores formarão com a Infraero — a estatal federal que detinha até agora 100% do controle das concessões — sociedades de propósito específico (SPEs), nas quais o setor privado deterá 51% do capital, e a estatal, 49%.
Validade dos negócios
Os valores que deverão ser despendidos com a operação, manutenção e ampliação dos aeroportos, somados ao valor de outorga, dado o elevado ágio obtido nas vendas, trazem dúvidas sobre a viabilidade dos negócios. Guarulhos é um caso emblemático. O montante que o consórcio Invepar/ACSA se comprometeu a pagar — em média, 810 milhões de reais ao ano — é equivalente a cerca de 80% da receita bruta do terminal no ano passado. Se forem somados a isso os gastos com investimentos obrigatórios — cerca de R$ 4,7 bilhões —, impostos, encargos e custos operacionais, parece claro que, a não ser que as receitas se elevem expressivamente, o consórcio terá prejuízo — ou, no mínimo, baixo lucro.
A preocupação é partilhada pela International Iata (Air Transport Association), entidade que reúne as 280 maiores empresas áreas do mundo. “Mesmo considerando que uma quantidade substancial de recursos pode ser atingida por meio de melhorias, em especial em Guarulhos, é difícil conciliar o montante pago com o potencial de receita”, diz a entidade.
Segundo o diretor-presidente da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Marcelo Guaranys, esse aumento de recursos não virá da elevação das tarifas de embarque, pois estas serão reajustadas anualmente durante o período de concessão de acordo com a variação da inflação.
Quanto ao aumento dos valores cobrados das empresas que utilizam os terminais, o presidente da Infraero, Gustavo do Vale, disse que “é uma questão de discussão entre as partes, que vão negociar, o que não quer dizer que concessionários privados vão impor condições”.
Antes mesmo de a privatização se realizar, o governo federal, por meio da Infraero, deu início a obras de ampliação dos principais aeroportos brasileiros. Agora, nos aeroportos privatizados, elas serão assumidas pelos consórcios vencedores.
Em Guarulhos, várias foram concluídas ou estão quase prontas. Em dezembro de 2011, um dos módulos operacionais provisórios (MOPs) construídos pela Infraero entre o ano passado e o presente em diversos aeroportos do país já estava em funcionamento. Os MOPs são pequenos terminais construídos unicamente para as operações de embarque e desembarque de aeronaves, pois não dispõem de vários equipamentos de um terminal tradicional, como balcões de check-in, aparelhos de raios X e esteiras de bagagem. Sua função é desafogar emergencialmente os aeroportos que estão operando acima ou perto de sua capacidade máxima.
Intervenções anunciadas
Se as obras em Guarulhos parecem ir bem, não se pode dizer o mesmo das ações previstas para todos os 13 aeroportos que serão usados durante a Copa. No conjunto, das 37 intervenções anunciadas pela Infraero com o objetivo de preparar os terminais para a Copa, apenas 20 foram iniciadas ou finalizadas. As demais, a menos de 30 meses do início do evento, ainda se encontram em licitação ou em planejamento.
Pelos cálculos da Infraero, quando todas as obras estiverem terminadas, a capacidade desses aeroportos chegará a 256,8 milhões de passageiros/ano, bem mais que suficientes para atender à demanda prevista de 152,6 milhões de passageiros em 2014.
Não é essa, no entanto, a conclusão a que chegou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento. Estudo publicado no ano passado aponta que, se mantido o ritmo de construção, nove dos 13 aeroportos não ficarão prontos até 2014.
Caso o modelo das concessões feitas até aqui seja bem sucedido, a intenção é ampliá-lo para outros grandes e rentáveis aeroportos do país. A SAC (Secretaria de Aviação Civil) prepara um plano de outorgas para definir quais deverão ser os próximos da lista.
* Texto publicado originalmente na revista Retrato do Brasil
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