Em entrevista ao cartunista Carlos Latuff, o prêmio Nobel da Paz Mohammad El Baradei, ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, fala sobre a situação do Egito, após as eleições que levaram a Irmandade Muçulmana ao poder, e sobre as pressões dos EUA em relação à questão nuclear iraniana.
Carlos Latuff – Você poderia me dizer qual é a sua opinião sobre o Egito após as eleições? Quero dizer, como é o Egito sob a Irmandade do governo muçulmano?
Mohammad El Baradei: Bem, o Egito está passando por transição difícil. A revolução surgiu com as pessoas pedindo dignidade humana, igualdade e liberdade. E nós ainda não estamos lá, o país está muito dividido, muito polarizado. Nós ainda não temos uma Constituição própria que defina os valores básicos que todos precisam seguir, nós não temos ainda uma capacitação. Assim, o país ainda está passando por um momento difícil, mas espero que, em breve, estejamos em uma posição de conseguirmos nos concentrar nas prioridades da revolução. As pessoas precisam de comida na mesa, de cuidados para a casa, de educação, de moradia. Nós ainda temos 40% dos egípcios abaixo do nível de pobreza, ainda temos uma grande parte dos egípcios que não sabe ler ou escrever. Essas são as prioridades e não devemos continuar a debater diferenças de interpretação da religião, pois essas são coisas que cada ser humano deve decidir por si mesmo.
Depois de 60 anos de repressão, nós ainda estamos tentando compreender o que é a democracia, como ela funciona, como podemos proteger os direitos das minorias e os direitos básicos, como as liberdades de religião, de expressão… Nós estamos no processo de aprendizagem, ainda estamos a atravessar a curva de aprendizado, mas estou otimista de que esses jovens que encenam esta revolta em breve assumirão e serão capazes de conduzir o Egito a um futuro diferente, como eu chamo um novo Egito.
Latuff – Então a revolução não acabou na sua opinião?
Mohammad El Baradei: Não, de jeito nenhum. Ainda não somos capazes de dizer que estamos bem-sucedidos em qualquer dos objetivos da revolução: a dignidade humana, a liberdade e a justiça social. Pode levar tempo, mas precisamos ter certeza de que estamos no caminho certo. Que a revolução não será abortada, tomada como refém por qualquer facção, pois todos precisam trabalhar juntos, todo mundo precisa entender que temos uma humanidade em comum, todos nós precisamos trabalhar nisso e esquecer as diferenças superficiais: raça, cor, religião, estas não são as questões que precisamos focar.
Latuff – Você acha que presenciamos uma espécie de “déjà vu” quando lidamos com a energia nuclear no Irã? Digo isso porque os Estados Unidos usaram o argumento de armas de destruição em massa para invadir o Iraque… Você acha que estamos testemunhando algo semelhante?
Mohammad El Baradei: Eu acho que não, eu espero que não. Eu acho que seria totalmente louco invadir ou atacar o Irã forçadamente. Eu não acho que há qualquer prova concreta de que o Irã está trabalhando para desenvolver armas nucleares. Eles estão desenvolvendo a capacidade nuclear, que não é diferente do que você tem na Alemanha, no Brasil ou na Argentina, mas é a tecnologia. Sim, ele se torna capaz de desenvolver uma arma nuclear em um curto período de tempo, mas isso não significa que você está desenvolvendo uma arma nuclear. Isso é muito motivado pela concorrência de ideologia, a concorrência de poder. A única maneira de resolver essa questão, a questão do Irã, é através do diálogo e da construção de confiança. Qualquer uso da força seria completamente improdutivo e levará o Oriente Médio ao “Armageddon” total.
Latuff – Você não acha que é muito estranho esse argumento dos Estados Unidos? Se Paquistão, Índia e Israel podem ter armas nucleares, por que não o Irã?
Mohammad El Baradei: Eu acho que ninguém deve ter armas nucleares, incluindo os Estados Unidos. Quer dizer, eu acho que continuar a contar com armas nucleares significa que, mais cedo ou mais tarde, teríamos armas nucleares sendo usadas por grupos extremistas, acidentalmente, intencionalmente, e que isso iria acabar em autodestruição. Precisamos entender que não podemos continuar neste século 21 com armas nucleares. Precisamos encontrar uma maneira melhor de viver juntos, sem depender de arma nuclear, ou depender do uso da força em geral. Eu acho que é loucura, nós temos que mudar essa mentalidade. Se não fizermos isso, vamos destruir todo o nosso planeta, mais cedo ou mais tarde. Concordo com você, não podemos continuar a ter produtos nucleares. Então temos alguns países que contam com armas nucleares e que dizem para todos os outros que eles não podem tocar em armas nucleares. Isso não é sustentável e não vai nos levar a qualquer lugar, é o senso comum, a lógica comum.
Latuff- E quanto à Síria? Você vê alguma relação entre a campanha contra a Síria nos Estados Unidos e a campanha contra o Irã?
Mohammad El Baradei: Bem, há , infelizmente, um jogo de poder em sua origem. E todo mundo está tentando ver um resultado que satisfaça, forneça, ou que vá junto com seus interesses políticos na Síria. Então, tem a Rússia e o Irã, de um lado, e os EUA e os países do Ocidente no outro lado. O que eles não entendem é que as vítimas são os seres humanos que estão sendo abatidos todos os dias. Temos que ter um sistema de segurança que não é baseado em interesses políticos nem em interesses atlânticos, mas realmente na solidariedade. Nós temos que se preocupar com as pessoas que estão morrendo nas cidades, morrendo no Congo, morrendo em Ruanda. São as vidas humanas com que devemos nos preocupar, Carlos. A questão não é o meu ponto de vista. Todo mundo vai perder. Espero encontrarmos em breve uma maneira para parar a matança em cidades, começar a operação de manutenção da paz e iniciar um diálogo político para encontrar uma solução em que todos estão seguros, a maioria e a minoria , todos vivendo juntos. Esse é o único caminho. Deveríamos aprender com o Iraque, mas não parecemos estar aprendendo quaisquer lições, com o que vemos acontecendo no Irã ou na Síria.
Latuff- E você acha que o Brasil pode desempenhar um papel em ajudar a resolver a crise na Síria?
Mohammad El Baradei: Eu acho que o Brasil é uma grande potência, está entre as seis maiores economias do mundo. Eu penso e tenho dito que o Brasil deve ser ativo, não só na questão da Síria, ou a questão do Irã, mas no mar global. O Brasil não pode e não deve, na minha opinião, continuar a sentar-se no banco. Eles devem ir para o campo e começar a jogar. Sabemos que o mundo é marcado por duplo posicionamento. Se você quer escolher o duplo posicionamento, a desigualdade, a insegurança, você tem que ter um lugar novo, como o Brasil, como a África do Sul, como a Índia, você não pode apenas contar com a abordagem ocidental. Esta é uma abordagem, mas não é a única abordagem. Precisamos de uma abordagem global e equilibrada.
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