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Certa vez a polícia o prendeu, acusando-o de explorar a prostituição infantil, conta-me Adão Rodrigues, mas ele conseguiu provar sua inocência. Ele surge como um gaúcho quarentão no meio da selva do Brasil: sua família é do Rio Grande do Sul, de uma cidade próxima à fronteira com a Argentina, e ele usa botas, chapéu e bigode de gaúcho. Em uma tarde de abril de 2011, está se mudando com a esposa e os filhos de Porto Velho, Rondônia, para a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará. O sol da selva às duas da tarde castiga o caminhão carregado e a caminhonete onde viaja. Já trabalhou antes em pelo menos outras 12 centrais hidrelétricas.
O gaúcho se apresenta como um barrageiro, um construtor de represas. Mas Adão Rodrigues não é nem soldador, nem carregador ou engenheiro: é dono de discotecas ambulantes. Um empresário errante que oferece diversão noturna aos homens que trabalham nas hidrelétricas, algo parecido a Pantaleão Pantoja, o personagem do romance de Mario Vargas Llosa, Pantaleão e as Visitadoras, cujo trabalho era fornecer prostitutas aos soldados do exército, na Amazônia peruana.
Só que Adão Rodrigues não recebe ordens e, para ele, trata-se de um grande negócio, como para todos os empreendedores do sul que viajam ao norte em busca de riqueza. Seu próximo destino itinerante é a represa de Belo Monte, entre as cidades de Altamira e Vitória do Xingu, onde inaugurará uma discoteca com mulheres que dançam, bebem e vendem sexo aos trabalhadores da construção. Ele crê que o novo empreendimento será mais sofisticado do que sua discoteca A Taça Suja, o prostíbulo que agora abandona, a alguns quilômetros de Porto Velho, selva adentro.
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Sem vícios
Adão Rodrigues tem um dom para os negócios, mas também certa ética. Diz que não bebe e não suporta ter cigarros por perto. Diz que o que realmente lhe agrada é vender. Diz que tem o dom de saber tratar seus clientes, os funcionários e trabalhadores das hidrelétricas, e as mulheres que vêm trabalhar em sua discoteca. “Não se pode levar qualquer mulher para trabalhar em um clube noturno. Se no fim das contas ela tem 17 anos, você vai parar na cadeia.” Diz que exige delas documentos, que confere se não têm vícios, porque isso pode prejudicar seu estabelecimento. Diz que, quando seu filho começou a usar drogas, expulsou o garoto de casa e que, graças a Deus, hoje ele é um soldador, como uma vez o próprio pai havia sido.
Insiste em dizer que ele próprio não tem vícios, mas admite que lhe agradam as mulheres: “Só isso é verdade”, conta, enquanto come uma costela de boi. Também reconhece que tem inimigos – “até Jesus Cristo tinha”, observa –, mas que ainda assim é feliz, que ajudou outras pessoas a voltar a suas cidades de origem e lhes deu de comer quando não tinham comida. Diz que quando o prenderam, junto com sua esposa, suspeitando que prostituíam garotas, chegaram cem policiais em sua discoteca. E que teve que contratar o pior advogado de Porto Velho para se defender da confusão. Diz que a denúncia foi feita por um de seus inimigos, alguém que já o havia ameaçado uma vez e que havia prometido prejudicá-lo.
O empresário ambulante de clubes noturnos viajou a Porto Velho depois de ler no jornal uma notícia sobre a nova central hidrelétrica. Assim descobriu seu futuro. Estava trabalhando em outra represa e tinha a ambição de ganhar um milhão de reais. Com isso em mente, veio até a represa de Jirau. Aqui, no norte do Brasil, isolado no meio do nada, conseguia ganhar 25 mil dólares “limpos” em um mês. Adão Rodrigues é casado e tem um filho e uma filha com a mesma mulher, Fátima Triques. Em 1999, quando a conheceu, ela trabalhava em uma empresa do ramo alimentício no estado sulista de Santa Catarina. “Essa é uma boa hora para mudar”, lembra-se de ter dito e ri: “Era muito bonita e uma ótima empregada”. Apaixonou-se.
Oásis necessário
Como Adão Rodrigues, há no Brasil milhares buscando notícias da próxima central hidrelétrica no país. Jacy Paraná era uma cidade do noroeste de Rondônia de quatro mil habitantes, antes de ser iniciada a construção da represa de Jirau, onde conheci o barrageiro das discotecas. Hoje vivem ali vinte mil pessoas, gente como o gaúcho da selva, que chegou para ganhar dinheiro. A obra cria milhares de empregos temporários, mas deixa as populações ao redor devastadas.
Construir a futura central hidrelétrica de Belo Monte secará partes do rio Xingu, alagará enormes porções de terra, extinguirá espécies de peixes que alimentam as comunidades indígenas da região e destruirá a mata virgem. A natureza de qualquer represa é a de alterar a natureza. A da água e a de milhares de pessoas. Quando você vê Adão Rodrigues se mudar, também vê seu clube noturno destruído. O bilhar, os dezesseis quartos, a churrasqueira e a pista de dança. O barrageiro diz que uma vez contou seiscentos homens ali dentro. Para ele, suas empresas são oásis necessários no meio da área de trabalho. “Há muita gente solteira que vem para cá! O que vão fazer?”, pergunta-se em voz alta. “Vão buscar uma área de lazer com mulheres.” Diz que seu negócio é divertir os peões que querem descansar.
Os brasileiros gostam de pensar em seu país como um gigante adormecido, como se sua natureza inexplorada estivesse esperando ser acordada. Um de cada cinco litros de água doce do mundo está no Brasil. Sendo assim, chegou a hora de utilizar esse potencial, tirar a energia dos rios e arrancar os minerais do solo. Para isso, precisa-se de eletricidade, e a forma mais barata e fácil de consegui-la são as barragens. Até ali, nos cantos mais desamparados, chega o governo com seus investimentos e os cidadãos com sua força de trabalho. É preciso dar energia para conseguir energia. É preciso investir em hidrelétricas, principalmente na Amazônia. Só ali se constroem mais de cem. A maior é Belo Monte, que produzirá 11 mil megawatts e custará cerca de 20 bilhões de dólares, uma cifra parecida à quantidade gasta pela Nasa em um ano.
As gigantes de energia são herdeiras de uma tradição que começou no século passado, com a barragem de Tucuruí, a maior central hidrelétrica da América do Sul, depois de Itaipu. E é provável que, com elas, continuem acontecendo os desastres ambientais que outras represas causaram, como as de Balbina e de Samuel, responsáveis pela inundação de grande parte da selva. Algumas centrais hidrelétricas, no fim das contas, produzem mais contaminação do que energia. Belo Monte tem seus opositores no mundo. Desde o chefe indígena Raoni Metuktire, cacique do povo Caiapó, na Amazônia, até o cantor inglês Sting.
Pesadelo brasileiro
O novo Brasil é o das obras gigantes e dos investimentos milionários na Amazônia. O país que depreda todos os seus recursos naturais para produzir riqueza a um ritmo que rivaliza com o da China, da Rússia e da África do Sul. O que desvia o percurso dos rios para levar eletricidade a fábricas e cidades. O país dos brasileiros que querem montar seu próprio negócio e que são imaginativos e iludidos como Adão Rodrigues, que planeja ter um bar ao estilo do primeiro mundo, com mais de uma piscina, luxo e tudo o mais.
Como seus compatriotas, ele está agora mais otimista do que nunca. Esse é o Brasil que será anfitrião da Copa do Mundo e das Olimpíadas. A nação abundante em recursos naturais, produção e gente como Adão Rodrigues. A nova classe média brasileira é um país de quase cem milhões de habitantes. Eles são o que a Fundação Getúlio Vargas chama de “lado amável dos pobres”, quase um outro país, mesocrático, do tamanho do México e onde todos os habitantes teriam pelo menos 650 dólares para gastar por mês; quer dizer, dez vezes mais do que o limite da pobreza, segundo o Banco Mundial. Já não existe apenas o sonho americano. Existe o sonho brasileiro. E para as comunidades amazônicas, ele é um pesadelo.
O gaúcho do night club hidrelétrico tem uma biografia à la Indiana Jones, mas começou quando ainda era um garoto. A primeira represa em que Adão Rodrigues foi empregado, com documentos, foi a de Foz da Areia, no Paraná, às margens do rio Iguaçu. Era janeiro de 1977. O futuro empresário ambulante começou ali vendendo sorvetes e lustrando botas. Quando atingiu a maioridade, contrataram-no como soldador. Era um jovenzinho apenas e foi para o Iraque construir ferrovias. Quando voltou, trabalhou na construção de de plataformas petrolíferas no Rio de Janeiro e, depois, no Canadá. Ainda que tenha estado em mais de uma dezena de hidrelétricas, tem uma excelente memória das datas em que saiu do país ou voltou e de quando chegou a cada barragem. No final do século 20, o gaúcho da selva se cansou de ser empregado. Tinha ambições. Inaugurou sua primeira discoteca próxima à usina hidrelétrica de Machadinho, na divisa entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul. Trabalhava para a empresa Camargo Corrêa. Deu-se conta de que assim ganhava mais dinheiro.
A melhor do mundo
Hoje, dois meses após o primeiro encontro em Porto Velho e alucinado pela represa de Belo Monte, Adão Rodrigues me diz que só lhe resta criar seus filhos. Falta enraizar-se, como uma árvore vistosa, em um só lugar, o que não pôde fazer em mais de trinta anos perseguindo hidrelétricas entre rios impetuosos.
O empresário gaúcho está convencido de que Belo Monte é a melhor represa do mundo. Quando lhe pergunto se ela também é a melhor para o povo da Amazônia, garante que sim, para todo mundo. Mas se em Porto Velho as hidrelétricas de Jirau e de Santo Antônio funcionam sem cumprir com suas obrigações sociais, é fácil imaginar um futuro miserável para as comunidades próximas a Belo Monte. O rio Madeira, onde fica a represa de Jirau, é o mais caudaloso afluente do Amazonas — é escuro, agitado e carrega sedimentos. Muito diferente das águas verdes do Xingu, onde o empresário vive agora. Mas Altamira, seu atual centro de negócios, assim como Porto Velho que abandonou há poucos meses, já começa a sofrer com as hidrelétricas e a receber migrantes, e junto com eles, a violência.
Altamira é o maior município do mundo, com uma área maior do que a da Grécia ou da Nicarágua. Como muitos lugares no norte do Brasil, é uma cidade sem polícia e sem hospitais para atender a todos os casos de malária. Uma cidade que receberá milhares de novos habitantes nos próximos anos. O novo negócio de Adão Rodrigues, a Boite da Noite, fica à beira da estrada, longe de tudo, e conta com um grande salão com teto de palha e mulheres bonitas e caras.
Belo Monte parece ser a estação final do barrageiro gaúcho e, por isso, ele expandiu seus negócios construindo um hotel e uma casa em Altamira, a alguns quilômetros da hidrelétrica. Agora também tem uma churrascaria. “Mulheres e carne”, diz, “são as especialidades dos gaúchos”. Adão Rodrigues sempre quis ter uma mulher bonita ao seu lado, filhos, carros e dinheiro para viver em paz. Encontrou tudo isso nas hidrelétricas. Primeiro como trabalhador e, depois, como dono de prostíbulos próximos às obras em construção. Hoje, o homem que se lembra do dia exato em que chegou a cada nova cidade para se instalar temporariamente prefere não saber quando terminará Belo Monte. “Espero que o governo demore muito para construí-la”, diz, com olhos de vaqueiro. Este é um trabalho que gostaria que durasse a vida toda. O gaúcho já não quer sair daqui.
* Texto publicado originalmente na revista peruana Etiqueta Verde
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