Rãs-de-unhas-africanas: anfíbio de laboratório ajudou a descobrir anomalias de gênero causadas por herbicida
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Darnell vive no porão de um instituto de ciências biológicas na Universidade da Califórnia-Berkeley, numa banheira plástica sobre prateleiras de aço inox. Ele é uma rã-de-unhas-africana (Xenopus laevis), espécie às vezes apontada como o “rato de laboratório” entre os anfíbios. Como a maioria desses seres, ele é robusto e longevo, hábil nadador, mal rastejador e glutão. Bom procriador, também, já teve filhos e netos. Existe, no entanto, algo de excepcional em Darnell: ele é fêmea.
Geneticamente, Darnell é macho. Mas, após ter sido criado em água contaminada com o herbicida atrazina na concentração de 2,5 partes por bilhão — ligeiramente menos do que o permitido na água potável —, ele desenvolveu um corpo feminino, interna e externamente. Ele é também mãe de filhotes, tendo acasalado com outros machos. Recentemente, ele foi transferido para um tanque sem atrazina, e ficou esbelto, perdendo o aspecto rechonchudo das fêmeas dos sapos. Mas em março passado, quando Tyrone B. Hayes, professor de biologia integrativa da UC-Berkeley, o abriu para dar uma olhada, Darnell continuava tendo órgãos internos femininos. “Ele ainda tem ovários, mas sem óvulos no interior”, disse-me Hayes no dia seguinte, enquanto olhávamos a rã.
Hayes é um homem atarracado, de 1,65 metro, com voz suave e um sorriso fácil. Ele é um tipo raro. Você dificilmente encontrará entre professores universitários alguém que guarde o dinheiro e a identidade em uma meia infantil com desenhos do Homem-Aranha, em vez de usar uma carteira; que vá correndo para o trabalho, num percurso de quase 20 quilômetros; ou que componha raps sobre suas pesquisas, cantando-os em colóquios científicos. E a maioria dos cientistas, ao descobrir que quantidades ínfimas de um dos mais vendidos herbicidas do país causam anomalias de gênero em sapos, teria se contentado em publicar os resultados e deixar que agências reguladoras e fabricantes brigassem a respeito.
Mas Hayes é diferente dos outros cientistas. Claro, publica nos periódicos científicos corretos e apresenta seus trabalhos em simpósios, mas também lidera a mobilização contra a atrazina, depondo em audiências públicas, aparecendo em todas as mídias e até lançando o site AtrazineLovers.com, contra o uso do herbicida.
Tudo isso rendeu a Hayes um status quase de rock star. Ele já foi personagem de um livro infantil (O Cientista Sapo), viaja o mundo dando palestras e estima já ter aparecido em uma dúzia de documentários. E, embora diversos pesquisadores tenham descrito os preocupantes efeitos da atrazina, é o talento dramático de Hayes que chama a atenção para o problema. Sem ele, o herbicida talvez não estivesse passando por sua terceira reavaliação na Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) em menos de uma década, e a Syngenta, fabricante suíça de produtos químicos, talvez não estivesse sendo processada nas esferas estadual e federal por mais de 40 distritos hídricos do Meio-Oeste, que alegam que a atrazina contaminou sua água potável.
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Nascido em 1967 num hospital para negros de Columbia, na Carolina do Sul, Hayes cresceu apanhando lagartos, sapos e tartarugas nos pântanos próximos à casa da sua avó. Ele era, como admite, “um garoto esquisito”, que criava girinos em piscinas infláveis e montava observatórios de pássaros, usando panelas na cabeça para evitar ataques de gralhas e pombos na hora de filmar seus ninhos. No ensino médio, seu talento artístico atraiu a atenção dos professores, que o colocaram em aulas para alunos superdotados. Mas era a ciência que dominava seus pensamentos. Mais tarde, quando chegou a hora de pensar na faculdade, Hayes candidatou-se só a Harvard, porque ouvira esse nome no seriado de TV Green Acres. Foi aceito.
A transição para a elite universitária dos EUA foi dura. Ele se sentia isolado e pensou em largar o curso. Mas encontrou seu rumo com a ajuda do especialista em anfíbios Bruce Waldman, seu mentor, e da namorada, Kathy Kim, que se tornaria sua esposa e mãe dos seus dois filhos. Acabou graduando-se summa cum laude [com a maior das honras] em biologia. Após esse início acidentado, a ascensão de Hayes foi meteórica. Doutorou-se em biologia integrativa pela UC-Berkeley em apenas três anos e meio. Menos de um ano depois, a universidade o contratou como professor-assistente — logo ele se tornaria o segundo mais jovem professor com contrato vitalício na história do departamento.
Surpresas com atrazina
Registrada para uso em 1959, a atrazina é agora utilizada em metade do cultivo americano de milho e em 90% da cana-de-açúcar do país, sem falar em gramados e campos de golfe. Ao todo, cerca de 36 mil toneladas são aplicadas por ano, o que faz da atrazina o segundo herbicida mais usado, atrás apenas do glifosato, vulgo Roundup. Embora a Syngenta, maior fabricante, não revele seus lucros com a atrazina, a empresa ganhou US$ 2,3 bilhões em 2010 com sua linha de herbicidas seletivos (que matam apenas plantas específicas), entre os quais a atrazina é o principal produto.
Em 1997, a consultoria Pacific EcoRisk procurou Hayes em nome da Novartis, antecessora da Syngenta na produção do herbicida. A consultoria queria que ele estudasse a atrazina, que na época passava por um processo de reaprovação exigido pela EPA. Hayes topou o trabalho. Mas algo aconteceu. Nos experimentos do pesquisador, sapos Xenopus expostos à atrazina tinham suas caixas vocais diminuídas, o que os deixava em desvantagem para cortejar as fêmeas. Isso já era bastante assustador. Mas, quando Hayes examinou as gônadas dos sapos, ele descobriu algo ainda mais perturbador: cerca de um terço dos machos expostos tinha órgãos reprodutivos mal formados. Muitos eram hermafroditas, com ovários e testículos. Alguns tinham mais do que dois de cada órgão — e alguns dos testículos produziam óvulos em vez de espermatozoides.
Para surpresa de Hayes, a EcoRisk e a Novartis não pareceram tão preocupadas quanto ele com essa descoberta. Hayes cogitou simplesmente entregar-lhes seus dados, mas afinal não conseguiu fazê-lo. Em 2000, demitiu-se do painel de cientistas a serviço da EcoRisk. Ele então repetiu a experiência duas vezes, e em abril de 2002 publicou suas conclusões na revista Proceedings of the National Academy of Sciences. Hayes postula que a atrazina afeta o gênero por ativar um gene que produz uma enzima chamada aromatase, que transforma andrógenos (hormônios sexuais masculinos) em estrógenos. Em suas palestras, ele faz questão de destacar que o estrógeno é igual em sapos e humanos. A substância química que altera de forma tão poderosa as gônadas de um sapo pode estar tendo esse efeito sobre nós também.
Manobras agressivas
Com a mesma assiduidade com que Hayes pesquisa ligações entre a atrazina e os sapos hermafroditas, a Syngenta tenta refutá-las, financiando uma série de pesquisas que têm concluído que a exposição à atrazina não produziria sapos intersexuais, que estes poderiam ser encontrados independentemente da exposição à atrazina e que a exposição à substância só produz sapos intersexuais em concentrações muito elevadas.
Talvez se a Syngenta tivesse apenas questionado a pesquisa de Hayes, as coisas se restringiriam a questões como tamanhos das amostras ou condições dos laboratórios. Mas a empresa começou a enviar funcionários às palestras de Hayes nos Estados Unidos e no exterior, para, segundo ele, às vezes distribuir materiais desqualificando seus métodos e acusando-o de fabricar resultados ou de se recusar a partilhar dados.
Tivesse Hayes a cabeça mais fria, ele poderia arquivar os e-mails agressivos que trocava com a Syngenta. Mas ele continuou bombardeando seus inimigos. Até que, em 2010, a Syngenta protocolou uma queixa de violação ética junto à UC-Berkeley, acusando-o de enviar e-mails que eram não só “agressivos, antiprofissionais e insultantes, como também lascivos e vulgares”.
“Passei uma semana de cama com dor de estômago”, lembra Hayes, cuja maior preocupação era como a confusão seria vista pelas fundações das quais ele depende para as verbas de pesquisa — não que ele fosse algum dia se retratar pelos e-mails. Seus críticos ficaram em êxtase. O diretor jurídico da universidade considerou que nenhuma violação ética havia ocorrido, mas admoestou ambos os lados a se comportarem. Dezesseis cientistas de diversas disciplinas escreveram à universidade em apoio a Hayes, apontando na manobra da Syngenta uma tática para desviar as atenções.
Quando pergunto a Hayes o que deu nele para se engalfinhar com a Syngenta desse jeito, ele fica em silêncio por um momento. A resposta está relacionada ao seu lema: IDGAF, abreviação de “I don’t give a fuck” (“estou pouco me lixando”). Para ele, não se lixar significa recusar uma barganha mefistofélica na qual, em troca de uma chance de respeito profissional, você precisa deixar seu verdadeiro ser em casa.
Agora que tem um cargo vitalício na universidade, a fachada não é mais necessária. Ele pode fazer rap. Ele pode xingar. E, se alguém quiser questionar sua legitimidade, “vou em cima”. É mais ou menos o que ele quer dizer quando assina seus e-mails para a Syngenta com um “Meu nome é Tyrone”.
Faz uns 18 meses que a polêmica dos e-mails começou, e Hayes concluiu que ela lhe foi mais útil do que prejudicial. “Graças à publicidade deles vou dar 129 palestras no próximo ano”. Em 2009, uma investigação do New York Times concluiu que 33 milhões de americanos estão expostos à atrazina por causa da água. Dados de 2010 da Agência de Proteção Ambiental (EPA) mostram que a contaminação supera o limite federal em nove de dez Estados que monitoram isso. A tendência da atrazina de contaminar os mananciais levou a União Europeia a proibi-la em 2003.
Ceticismo científico
A EPA argumenta que as cifras elevadas não representam um risco à saúde. Mas estudos epidemiológicos apontaram ligações entre a exposição pré-natal à atrazina e defeitos congênitos, nascimentos prematuros e baixo peso ao nascer. A EPA está levando em conta esse argumento ao reconsiderar se proíbe ou restringe a atrazina. Mas a revisão dos trabalhos científicos pela EPA já se encaminha para o seu quarto ano, e Hayes não espera uma ação decisiva. Em 2005, o Conselho de Defesa dos Recursos Naturais obteve documentos revelando que funcionários da agência se reuniram em particular com a Syngenta mais de 40 vezes.
A outra razão para o ceticismo de Hayes envolve o poder do lobby do milho. Produtores de milho gostam da atrazina porque ela aumenta as safras e lhes permite reduzir o uso do arado.
Hayes está preparando novos trabalhos. Ele irá mostrar que sapos machos expostos à atrazina no começo da vida têm cérebros feminilizados e tendem a ficar por baixo no momento da cópula, mesmo quando colocados em um tanque com fêmeas.
Na última vez em que conversamos, Hayes estava se preparando para disparar um e-mail à Syngenta anunciando as suas futuras publicações. “Acho que será apenas informativo. Só para que eles saibam. É por isso que me chamam de Tyrone.”
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto publicado originalmente na revista norte-americana Mother Jones
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