Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #06: Pornografia
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Annie Sprinkle tem o aspecto de uma mãe, porém nem todos gostariam que ela fosse a sua. Uma puta que virou artista e sexóloga. Nascida em 1954, na Filadélfia, com o nome de Ellen Steinberg, assim que ficou adulta deixou de vender cabritos para protagonizar centenas de filmes que a transformaram numa atriz pornô.
Não é nada difícil imaginá-la mascando chiclete, ansiosa para descobrir as imagens desses gemidos no escurinho do cinema. Garganta profunda era o nome do filme. O diretor Gerard Damiano foi processado e ela foi testemunha. Ao estrelar Teenage deviate, começou uma prolífica carreira no segmento pornô tradicional.
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Eram outros tempos aqueles. Os filmes contavam histórias, havia mais pelos pubianos (ela foi uma das primeiras a depilar-se diante de uma câmera), depois vieram os efeitos especiais, potencializando iniciativas bizarras. Mas nossa deusa foi além. Assim que sua intuição a fez ver o papel das mulheres na indústria da pornografia, a normatividade genérica que se expressava, ela cristalizou suas perversões, entregando-se a uma deriva sexual.
Annie entrou no lado obscuro do cinema pornô. Rodou um filme divertido com seu amigo Louie, um anão negro, fez amizades com mulheres “com as quais nunca fingiu nenhuma cena”, experimentou acessórios (de vibradores e algemas a linguiças, que em seguida eram servidas no almoço com a equipe de filmagem), brincou com fetichismo e sadomasoquismo ao extremo, o que lhe valeu o esquecimento de diretores conservadores que a taxaram de “pervertida”.
Gozou (porque sempre gozou) ao ser atada, levar porrada, raptada e violentada; enfiando e deixando-se penetrar com punhos pelo ânus e pela vagina; teve relações sexuais com gente amputada, com sangue de menstruação, vômito, urina e fezes. Perfurou seu clitóris, ao vivo, e torturou pênis com objetos pontiagudos. Já tinha ultrapassado os limites e o pornô deveria ser subvertido.
Pegada mística
Depois de atuar em cerca de cem filmes, a “exibicionista autêntica” dirigiu seu primeiro filme: Deep inside Annie Sprinkle (1982), em que ela fazia um depoimento para a câmera e fingia entrar em uma sala de cinema pornô atacando o público.
Conheceu o tantra ioga pelas mãos de um amigo indígena chamado Jamel e, pela primeira vez, teve uma experiência espiritual através do sexo, segundo confessa em seu filme hilário Herstory of porn (1999), considerado pelo New York Times uma obra de arte.
Na década de 1990, ela cumpriu seu desejo, transformando-se em “artista”, com filmes mais conceituais, políticos, feministas e educativos. Female genital massage, que ensina a se masturbar, inaugurou o estilo “gonzo”, o pornô na primeira pessoa, junto com John Stagliano.
Seu lado místico começava a se aprofundar, dando forma ao “medisturb”, prática que consiste em meditar e se masturbar simultaneamente. Annie descobriu, dessa forma, sexo com o mundo vegetal, erotizando-se em bosques, rodeada por cachoeiras. Com mais de 40 anos, assumia, sem nenhum complexo, a passagem do tempo.
A essa altura, Sprinkle preferia ser lésbica, congregando inúmeras mulheres, artistas e prostitutas, ativistas (pós) feministas que começavam a teorizar diante de sua vida e obra. Sprinkle também foi atrás: estudou e obteve doutorado em Sexualidade Humana em 2002, quando o pós-pornô começava a virar objeto de análise acadêmica e teses de doutorado. Nesse sentido, sua pós-pornografia elimina as “fantasias de dominação” do pornô tradicional sobre mulheres, assumindo uma atitude de gozo, de professora/puta disposta a ensinar a todas (e publicamente) seu conhecimento e suas habilidades.
Politização
Em 2003, Annie Sprinkle teve um câncer mamário. Esse fato, somado à inexistência de seguros de saúde para a maioria das prostitutas e estrelas pornô como Annie, levou-a a se casar com sua companheira Beth Stephens, artista e educadora sexual, que tinha seguro de saúde. Ao passar por isso, ela se converteu em artista politizada, revelando o abandono do sistema de saúde legal a milhares de mulheres e casais homossexuais.
Sprinkle editou vários livros teóricos e de autoajuda, fez performances impactantes e continua fazendo palestras em universidades. Hoje todo o seu trabalho é centralizado a partir do Love Art Laboratory, com o show de arte dramática Dirty Sexecology, casamentos performáticos, eventos políticos, feministas e artísticos.
Dessa forma, Annie, risonha e sensual, ensina-nos alguma coisa, convertendo imagens amadas e odiadas em ensaios políticos, reconectando-nos com o lado animal, ecossistêmico, levando à mudança de consciência e (des)ordem social.
Tradução por Mari-Jô Zilveti
* Texto originalmente publicado pelo El Ciudadano
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