Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #06: Pornografia
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É bem provável que esta reportagem desagrade algumas mulheres. Aqui, você vai ler sobre sexo anal, gozo na cara, ânsia ao ser forçada a enfiar o pinto inteiro na boca e tudo o que há no cardápio oferecido em filmes pornô fartamente disponíveis na internet. E tudo assim, às claras mesmo. Se você também está cansada de se decepcionar com os filmes de sacanagem e de engolir o que não gosta, pode abraçar uma causa que começa a ganhar espaço: Make Love Not Porn (faça amor, não faça pornô). Criada pela inglesa Cindy Gallop, uma das razões que a fez pensar na campanha justifica-se por experiência própria. Aos 51 anos, Cindy começou a perceber nos homens com quem se relaciona — na faixa dos 20, 30 anos — um padrão sexual muito semelhante ao exibido nos filmes pornô. “Vi que a escola desses moços eram filmes e cheguei a uma questão maior do que preferências sexuais”, disse à reportagem da Tpm. E olha que Cindy não é o tipo de moça certinha. Ela mesma curte (bastante) filmes de sacanagem; o problema está em transformar esse tipo de filme em cartilha sexual.
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Depois de anos trabalhando no mercado publicitário, Cindy define-se como “business game-changing” (algo como “especialista em transformações corporativas revolucionárias”). Seu trabalho é ajudar empresas a mudar radicalmente de postura. Em seu dia a dia, está um desejo por mudança de comportamento, cultura e padrões. Cindy mergulhou, assim, numa empreitada contra a pornografia machista e de baixa qualidade que domina o mundo, de olho também na educação sexual de crianças e jovens.
Cartilha pornô
O que Cindy constatou na cama bate com as pesquisas mundiais: um estudo realizado pela empresa YouGov (agência de pesquisa com grande representação na Europa e nos EUA) com adolescentes britânicos entre 14 e 17 anos apurou que 27% dos 1.400 entrevistados acessavam conteúdo pornográfico toda semana. A deputada inglesa Claire Perry, a favor desse movimento, afirmou em um debate: “Um terço das crianças inglesas com 10 anos já viu pornografia na internet”. Ou seja, muito antes da primeira vez — e não raro antes do primeiro beijo — as crianças já estão estudando a cartilha pornô no computador de casa.
E aí o que pode acontecer? Quando se tornam adultos, passam a acreditar que toda mulher é louca por sexo anal e gosta de levar palmadinhas de pinto na cara. “Sim, algumas mulheres gostam de ser xingadas durante o sexo. Outras curtem enfiar o pênis inteiro na boca ou levar gozo na cara. Mas não são todas!”, exclama Cindy. Como na grande maioria dos filmes pornográficos esse tipo de comportamento forja um êxtase feminino, a lição de casa acaba deturpada, assim como toda visão do que é transar e dar prazer a uma mulher.
Algumas pessoas, geralmente nascidas antes de 1980, podem achar tudo isso um exagero. Mas a verdade é que aquela dificuldade para conseguir uma revista de sacanagem, uma foto sensual ou assistir a um filme proibido para menores acabou. Hoje basta escrever a palavra “pornô” no Google para navegar pelo vasto território do sexo, em que violência, submissão feminina e foco no prazer do homem são as constantes. A atriz pornô carioca Yasmin Vianna, 26 anos, é destaque em alguns filmes como Nas garras da tigresa (produtora SexXxy, 2010) e Um metro e meio de bunda – volume 16 (produtora Explicita, 2011). Ela trabalha nessa área há oito anos e conta que nunca participou de uma cena em que o prazer da mulher estivesse em primeiro plano. “A ideia é que passemos a sensação de que estamos ali só para satisfazer o homem”, descreve.
Yasmin ficou muito interessada na campanha Make Love Not Porn: “Poderia ser bem bacana mesmo, né? Umas cenas mais românticas, intensas… Até os homens iriam gostar”, pondera. Ela diz, ainda, não conhecer mulheres que gemem de prazer ao receber um jato de gozo na cara — como acontece em dez entre dez filmes pornô.
E que mulher já não se viu colocada no papel de uma atriz pornô sem o clima necessário para isso? “Uma vez fui tomar um café com um paquera, mas não rolou clima para ficarmos e decidimos ir embora. Entramos no carro e no tempo de virar para pôr o cinto de segurança ele tinha botado o pau inteiro para fora e disse, sem constrangimento: ‘Chupa’. Foi agressivo. Me senti num filme pornô desses sem roteiro”, contou a designer Marcela, 23 anos. A produtora Camila, 28, conta que acabou vomitando ao ter a cabeça empurrada pelo parceiro para que o pinto dele entrasse inteiro na boca. “Qual o propósito disso? Parece que eles querem fazer a gente passar mal e parecer que o pau é grande”, disse.
Com a chef de cozinha Adriana, 34, aconteceu o seguinte: na primeira vez que saiu com o sujeito, ele insistiu em fazer sexo anal antes mesmo de rolar um clima para isso. Ela conta: “Tentei desviar o assunto e aquilo foi ficando chato. Aí, para descontrair, comecei a chupar o pau dele. Pra quê? Logo ele queria que eu batesse o dito na minha cara e queria gozar na minha boca. O problema é que não foi natural, era meio impositivo”, lembra. Exatamente como nos filmes pornô.
Outro olhar
Cindy garante que não está travando uma cruzada careta contra a indústria pornográfica, mas sim batendo na tecla de que é possível dar outro olhar para esses filmes e aumentar a qualidade do que é feito. “Existem pessoas brigando por esse espaço, mas, como em toda indústria consolidada, é muito difícil quebrar paradigmas”, afirma.
A diretora sueca Erika Lust é uma das vozes nesse movimento por uma pornografia mais humana. Radicada em Barcelona, ela vem fazendo pornografia de qualidade desde 2004, quando lançou o curta-metragem The good girls. “Eu evito mostrar aquele estereótipo da mulher de cinema pornô: a mulher fácil, que vende seu corpo por dinheiro, a vadia, a teenager, a tigresa, a enfermeira… e o que mais estamos acostumadas a ver no cinema pornô tradicional. Também evito fantasias masculinas clichês. O que faço é aproximar o cinema adulto da minha perspectiva feminina e feminista”, disse, em entrevista à Tpm. Em seus filmes, a diretora explora o toque da pele e os sons reais do sexo. “Minha intenção é que a pessoa se imagine ali”, explica. Com relação ao movimento Make Love Not Porn, Erika brada: “Acho uma grande iniciativa. Admiro Cindy Gallop e todas as suas ideias inovadoras”.
Um dos objetivos da campanha de Cindy é trazer o assunto à tona. Até porque nem sempre as mulheres, principalmente as mais jovens, percebem como a pornografia está inserida na vida delas. Seja no relacionamento com o namorado, na vida sexual, na maneira como se comportam socialmente, nas coisas que leem, nos filmes e nos programas a que assistem. “É preciso falar de sexo, é preciso discutir a pornografia e a necessidade de educação sexual real”, defende, mais uma vez.
Um mundo de diferenças: algumas diferenças entre o imaginário do universo pornô e o que acontece no mundo real, segundo Cindy Gallop
Gozando (de verdade)
Mundo pornô – As mulheres gozam o tempo todo em posições em que o clitóris não está sendo tocado.
Mundo real – Tem que haver algum tipo de pressão rítmica sobre o clitóris para fazer uma mulher gozar. Pode ser com o osso púbico, a língua, os dedos ou qualquer outra coisa, mas tem que ser lá.
Questão de pele
Mundo pornô – A transa é pautada pelos ângulos da câmera. Isso quer dizer que, na maioria das vezes, as únicas partes dos corpos que se tocam são as genitálias.
Mundo real – Uma das coisas boas no sexo é o prazer da pele na pele. É ótimo transar com os corpos colados. O que não acontece muito nos filmes pornô porque atrapalha a câmera, que quer focar a penetração em close.
É das carecas que eles gostam mais?
Mundo pornô – As mulheres não têm nenhum pelo lá embaixo.
Mundo real – Algumas mulheres fazem depilação total. Outras preferem apenas aparar o excesso. Mas depilação precisa ser vista como opção, não regra.
Lá mesmo?
Mundo pornô – Todas as mulheres adoram sexo anal.
Mundo real – Muitas mulheres não gostam de sexo anal, outras amam. Homens, se perguntem como se sentiriam se alguém enfiasse um pinto em vocês. Pois bem… É ótimo quando todos os envolvidos gostam da ideia.
* Texto originalmente publicado na revista TPM
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