O número de pessoas preocupadas em se preparar para o mundo pós-colapso é cada vez maior nos EUA
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Aprender a cultivar feijão, couve-flor e nabo, fazer pão (ou bolinhos de urtiga), criar galinhas ou fazer geleias, conservar pacotes de sementes, curar-se com aloe vera, tricotar uma camisola, fazer um motor a óleo diesel funcionar com óleo de cozinha, recuperar a água da chuva e de poço, tornar sua casa autônoma em termos de energia etc. Tudo isso pode parecer inocente ou mesmo divertido. Para os preppers — ou seguidores do prepping (preparação) —, no entanto, isso não se trata de um simples hobby, mas de um treinamento para um futuro provável.
Essa “subcultura de norte-americanos que se preparam para o colapso da civilização” desenha uma vasta constelação de preocupações. Ela combina a ideia de “se preparar”, geralmente aplicada a emergências como furacões ou terremotos, com o conjunto das crises, locais ou sistêmicas.
Essas pessoas estão se tornando cada vez mais numerosas — pelo menos 3 milhões —, trabalhando em planos detalhados para sobreviver ao “fim do mundo como o conhecemos”.
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Temas
Figuras emblemáticas surgiram a partir de blogs, livros de grande tiragem ou programas de rádio. Assim, o papa dos preppers, James Wesley Rawles, um ex-oficial de inteligência e cristão conservador, vende centenas de milhares de cópias de suas obras. Ele se cerca de mistério ao não revelar o rancho secreto onde instalou sua família para sobreviver ao momento fatídico.
Prever o fim do mundo é um passo clássico de seitas e igrejas. Mas, diferentemente dos milenaristas, os preppers não esperam um desastre específico em uma determinada data. Tudo pode acontecer, a qualquer hora: meteorito gigante ou planeta em choque com a Terra, erupção vulcânica, combinação de desastres ecológicos, pandemia, guerra nuclear entre o Ocidente e a China, hiperinflação, colapso do sistema bancário mundial, distúrbios revolucionários, lei marcial.
Ao contrário dos hippies e dos sobrevivencialistas dos anos 1990, os preppers não professam particularmente a rejeição de um estilo de vida ou a desconfiança em relação a um governo suspeito de traição em favor das elites da chamada nova ordem mundial. Eles se consideram simples cidadãos que buscam reunir informações úteis. Observa-se, entre as contribuições para blogs preppers, a recorrência de dois temas que vão muito além: a fuga para o isolamento e a desconfiança armada em relação aos “não preparados”, que se tornam suspeitos porque poderiam se transformar em saqueadores.
Medo do outro
“Como preparar seu recolhimento durante o colapso geral?”, pergunta-se Joel Skousen, ex-piloto de caça convertido em cientista político e especialista em “relocalização estratégica”. E, quando for a hora de deixar as grandes cidades — especialmente as mais perigosas, infestadas de “zumbis desempregados” —, o que colocar em sua bug out bag (bolsa para a grande pane)? Como se manter seis meses em uma “residência autônoma durável” ou mesmo em um tubo de concreto colocado no fundo do jardim? Um casal orgulha-se de manter víveres para 50 anos e 25 mil munições. Outro interlocutor explica como alimenta mil tilápias em sua piscina.
Para a vida “pós-apocalipse”, dizem em tom sério, “talvez precisemos nos tornarcaçadores-coletores”.De qualquer forma, deve-se manter o conhecimento necessário para “reconstruir a civilização” (tecer, curar, reciclar, ter água pura, soldar etc.), de acordo com o modelo dos futuros exploradores do espaço.
O segundo tema favorito dos preppers pode ser deduzido disso: o medo do outro. Eles oferecem mapas das “atividades terroristas suspeitas” no mundo e nos Estados Unidos, bem como métodos para criar rapidamente seu condomínio bunker e ali organizar torres de vigília armadas, esperando a irrupção das hordas de miseráveis que não tardarão a tentar violar seu santuário.
Escoteiro
Mas o delírio de alguns não deve obscurecer o fato de que a maioria permanece como consumidora tão compulsiva quanto aqueles que esvaziam os supermercados na véspera das festas. Ao comprarem armas para se prevenir de invasões, produtos de “primeira necessidade” ou medicamentos (os três “Bs”: bullets, beans, band-aids — munição, feijão, band-aids), esses clientes desesperados substituem um produto por outro.
É claro que o bom prepper vai se virar como o escoteiro “sempre alerta” de outrora: ele saberá fazer um candeeiro com uma batata, uma toalha com um tecido, uma colher com papelão, acender fogo sem fósforos etc. Mas isso ainda apela para o serviço remunerado de professores, e aí se trata de um trabalho “de consumidor”: faça você mesmo seu sabão, mas com ingredientes do comércio — borato, carbonato de sódio, ralador de queijo, tudo vendido numa loja nas proximidades.
À espera do desastre e do socorro, essas pessoas evitam pensar no que nos acontece agora. Percebe-se nos preppers constatações sobre a ganância financeira, mas sua representação individualista da autonomia e seu reflexo de fuga oferecem poucas perspectivas de ação socializada e política fora dos quadros atuais do sistema.
O prepper não supõe que a civilização possa corrigir sua trajetória. Mergulhado na ideologia neodarwiniana da luta de todos contra todos, ele não poderia imaginar que uma simples redistribuição da riqueza seria mais eficaz do que o deslocamento estratégico para evitar os horrores da depressão. Em suma, ele se recusa a se preparar para… a continuação do mundo após o capitalismo.
* Texto originalmente publicado no periódico Le Monde Diplomatique Brasil
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