Áreas visitadas pela equipe de pesquisadores da UFAM e da Unesp pertencem a fazendas no sul do Amazonas
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“Essa é uma terra maravilhosa. Tudo que você planta nela dá. E dá muito. Como que essa terra boa veio parar aqui, no meio de outra terra? Isso é um mistério da natureza”, diz Zé Alegre, apontando para o chão. Esse cearense vive há quatro anos numa pequena fazenda no sul do Amazonas e, numa manhã de maio passado, guiava por suas terras uma equipe de pesquisadores da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e da Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
O agrônomo José Marques Jr., da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp de Jaboticabal, mostrou ao grupo uma bela espiga de milho que cresceu nas terras de Zé Alegre. Junto com o colega Milton Campos, do Instituto de Educação, Agricultura e Ambiente da Ufam, que funciona na cidade de Humaitá (AM), Marques Jr. visitava diversas localidades na região dos municípios de Humaitá e Manicoré, no sul do Amazonas. O objetivo da viagem era observar in loco sítios das tais “terras maravilhosas”, capazes, entre outras coisas, de produzir espigas tão perfeitas.
Estes solos misteriosos podem ser encontrados também por toda a região amazônica, de Rondônia ao Pará. Na literatura científica, costumam ser chamados de “terra preta arqueológica” ou “terra preta de índio”. Entre os agricultores, é conhecida apenas como terra preta. Eles a identificam pela cor escura, pela alta fertilidade e pelos fragmentos de cerâmica que costumam ser encontrados, soterrados ou espalhados sobre a superfície.
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Origem
A análise da terra preta feita nos laboratórios da Unesp revelou a presença de grande quantidade de minerais como cálcio, magnésio e fósforo, bem como de matéria orgânica. Também chama a atenção a estabilidade dos nutrientes armazenados nesse solo. Na Amazônia, as altas temperaturas e a umidade costumam fazer a matéria orgânica e os nutrientes armazenados no solo terem vida curta. “Mas a terra preta pode seguir fornecendo nutrientes às plantas por mais de cinco séculos”, afirma Marques Jr.
Ao longo do século 20 estabeleceu-se um debate sobre as possíveis origens da terra preta indígena, travado, em sua maior parte, por pesquisadores estrangeiros. De um lado estavam os que defendiam uma origem natural, independente da ação humana. Do outro, os que enxergavam nelas o resultado de uma intervenção do ser humano na paisagem.
“Hoje em dia é praticamente consensual a visão de que a terra preta foi criada pelos povos indígenas que viviam na Amazônia antes do descobrimento”, afirma o arqueólogo Eduardo Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, que estuda a região desde os anos 1990, tendo escavado inúmeros sítios com terra preta.
Questionamento
Segundo Neves, o estágio atual deste debate gira em torno do grau de intencionalidade da ação humana. Há os que defendem que esses solos surgiram nos antigos campos de lavoura dos povos indígenas pré-colombianos, e que foram o resultado de uma intervenção planejada. É a chamada hipótese antropogênica.
Outro grupo crê que, antigamente, aldeias erguiam-se sobre essas áreas, e que o aparecimento da terra preta foi uma espécie de efeito colateral do estilo de vida adotado por aquelas sociedades. É a hipótese antrópica, defendida por Neves.
Isso reforça a ideia de que a formação da terra preta pode ter ocorrido a partir do material orgânico descartado pelos índios em seu dia a dia, como carcaças e ossos de animais, carvões e cinzas de fogueiras, vegetais não consumidos e até itens florestais como palha, folhas de palmeira etc.
Mas é justamente esse consenso entre os arqueólogos que está sendo questionado pelo agrônomo da Unesp. Os resultados obtidos por seu grupo têm permitido reexaminar a suposta origem natural da terra preta. Ao lado de Marques Jr. estão outros dois pesquisadores: Newton La Scala, também professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp em Jaboticabal, que estuda a emissão de CO2 em áreas de terra preta, e o americano Kurt Spokas, ligado ao departamento da agricultura dos Estados Unidos.
Carvão
Para o trio de pesquisadores, é possível que o carvão vegetal — formado a partir da queima da vegetação por incêndios naturais — seja o elemento-chave para a formação da terra preta. É o que defendem em um artigo científico ainda não publicado.
Nos últimos 18 milhões de anos, as variações climáticas fizeram com que a Amazônia passasse por muitas mudanças, explica Marques Jr. Em certos momentos, os raios foram mais frequentes. Em épocas mais secas, a floresta recuou, facilitando os incêndios. Ele acredita que a combinação desses fenômenos naturais — incêndios, secas, chuvas — pode ter formado o material de origem da terra preta. “Os índios tiveram a sensibilidade de descobrir esses lugares. Instalaram-se neles e também contribuíram para o enriquecimento da terra”, defende.
Consenso
Em um ponto, porém, os dois lados concordam: é possível aprender muito com esse solo para melhorar o desempenho da agricultura. Para Marques Jr. o desenvolvimento da pesquisa nesta área pode ajudar o Brasil a superar um de seus pontos sensíveis na área agrícola: a dependência externa que o país vive quando se trata de obter nutrientes para o solo.
Os países que quiserem se candidatar a celeiro do mundo devem dispor de área para expansão, tecnologia agrícola, recursos hídricos e luz solar em quantidade. É fácil entender por que os agrônomos brasileiros veem nosso país desempenhando esse papel. “Mas temos de solucionar o problema dos nutrientes”, ressalta Marques Jr.
Ele crê que a pesquisa na área poderá ensinar os agrônomos a encontrar uma maneira sustentável de enriquecer o solo, reduzindo o impacto ambiental do uso indiscriminado de fertilizantes. Também pode diminuir a pressão sobre os estoques de fósforo, que se encontram em avançado estado de exploração: a projeção é que durem apenas mais 100 anos.
Marques Jr. estima que o uso de solos com propriedades semelhantes às da terra preta possa ocasionar o sequestro de até 25% do carbono emitido para a atmosfera pela atividade agrícola. “Acho interessante que seja nos trópicos, com sua história de exploração colonial e de depredação ambiental, que esteja surgindo esta possibilidade. A terra preta guarda um segredo importantíssimo para as futuras gerações”.
* Texto originalmente publicado na Revista Unesp Ciência
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