Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de São Paulo. Haviam me levado para algumas festas; primeiro um aperitivo, colorido e com pedaços de fruta dentro, depois uma carreira rápida de automóvel. Estive em jantares fascinantes. As mulheres, muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos ohlos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei semideitado numa poltrona de um apartamento chique, no centro da cidade. O dono era um rapaz que eu não conhecia e que possivelmente talvez ainda não saiba quem sou e o que fui lá fazer. Fui de mistura com outros, como penetra. Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé. Recebem também telefonemas de Lili, de Fifi e de Lelé. Conversei longamente com um rapaz, inteligente e vivo, que eu conhecera de caminhadas pela Lapa e discussões de madrugada, aqui no Rio de Janeiro. Está irreconhecível. Fez roupas novas (o feitio de cada, me garantiu, não custa menos de um conto e duzentos), adquiriu novos hábitos. Um dos hábitos: conversar sobre os feitos da noite anterior na pista do Jequiti.
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Capa da revista Sombra, leitura para moças de fino trato
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São Paulo sempre teve seu mundo de luxo, um mundo essencialmente grã-fino. É coisa que acontece com todas as cidades que enriquecem. A riqueza paulista, é sabido, vem de suas fábricas. Agora as fábricas estão trabalhando ainda mais, porque a guerra é exigente. Dia e noite, os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada.
O maior da América do Sul
Um dia desses um rapaz paulista, faminto e desempregado, resolveu se matar. Subiu até o último andar do edifício Martinelli — pularia lá de cima. Mas a altura era enorme e o rapaz vacilou. Lá embaixo, impaciente e aflita, a multidão esperava que o rapaz se decidisse. Mas o rapaz resolveu não se matar. Os jornais anunciaram, se o rapaz pulasse, aquele seria o mais sensacional suicídio da América do Sul. O edifício de onde o rapaz ia saltar é o maior da América do Sul. Mas não o será dentro em breve: ao seu lado já está crescendo outro, que será maior do que o maior da América do Sul.
Há coisas muito estranhas em São Paulo: os cafés não têm cadeiras nem mesinhas, dessas onde a gente costuma sentar e conversar. O trânsito das ruas é dirigido por guardas rigorosos, como nas outras cidades importantes. E nas salas do Automóvel Club homens muito ricos jogam razoáveis fortunas, em alegres jogos de carta. Um financista de São Paulo, dono de várias fábricas e várias empresas, é homem sensível e inteligente, muito culto, que adora livros e faz versos. Seu rosto é cor-de-rosa, como o rosto das crianças. Seus cabelos estão alvos, porque a vida cheia de trabalho do milionário os fez assim. Mas não existe ódio nem raiva na voz do financista: ele conversa sobre livros, lê suas traduções de poemas clássicos e sua voz é suave e absorvente, como uma esponja.
A flor
Mas os milionários são muitos. Raros são os milionários poetas em São Paulo, mas há muitos outros que não fazem versos. Uma noite, no Jequiti-Bar, conheci alguns deles: o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi. Era uma festa somente para milionários, e sobre todos aqueles nomes repousava a força paulista de hoje. Por detrás dos sobrenomes, há um mundo incrível: centenas de fábricas, milhares de chaminés, milhares de motores, milhares de operários. Era um grupo terrível, avassalador. Com um gesto de mão, qualquer um deles poderia me aniquilar, me tanger longe, lá na rua. Mas os milionários apenas sorriam. Sorriam e bailavam com as mulheres, todas muito belas. Alguns daqueles homens, os pais de quase todos eles, haviam chegado pobres ao Brasil. Mas São Paulo os estava esperando, e hoje eles são donos das fábricas, das indústrias e dos lucros paulistas.
É noite e São Paulo rico está resumido ali na pista do Jequiti-Bar. Durante o dia, as mulheres fizeram coisas inúteis: acordaram tarde, almoçaram em bloco, jogaram pife-pafe, compraram a revista Sombra, tomaram chá na Livraria Jaraguá, jantaram na Papote e falaram das amigas.
Os homens ganharam dinheiro. Alguns não fizeram muito esforço para isso: apenas assinaram alguns papéis. Outros estiveram nas fábricas, conversaram com o gerente, telefonaram para o Rio. À tarde foram ao Automóvel Club, um lugar triste como um cemitério. Perderam algum dinheiro em jogos inocentes; mas o que perderam nem chega a representar uma humilde fração dos lucros que conquistaram durante o dia.
O Jequiti é o mar noturno onde todos se encontram. Um mar de felicidade onde todas as possíveis tristezas e decepções se diluem e se inutilizam.
O sobrenome
Além do “quarto grupo” grã-fino, o grupo de Alfredo Mesquita e Roberto Moreira, existem outros três grupos, cada qual com suas características próprias. O primeiro grupo é formado pelos grã-finos de pedrigree, os tais paulistas de quatrocentos anos, e representa o pináculo do grã-finismo. São criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores heroicos e sem muitos escrúpulos que rasgaram as matas de São Paulo, vadearam os rios, descobriram as montanhas e fizeram as primeiras cidades. Morreram todos, estão enterrados na história, mas deixaram aos seus descendentes um presente régio: deixaram um cartão de visita, espécie de permanente com o qual um Prado, um Leme e um Alves Lima podem entrar em tudo sem pagar nada.
Podemos citar alguns nomes femininos, os mais requintados e sugestivos, que formam a geleia grã-fina paulista: as Alves Lima, sras. Nélia, Bebé, Vera e Stela, e as sras. Fifi Assunção, Iolanda Penteado, Carminha da Silva Teles, Marjorie da Silva Prado, Belinha Sodré, Alice Mendonça e muitas outras. Em qualquer festa de importância, podemos encontrar todas elas, um grupo à parte, impermeáveis como se estivessem enroladas em papel celofane.
Cintilantes de joias, as senhoras do segundo grupo, o grupo “reserva”, têm olhos derramados sobre a gente de pedigree. É o grupo das filhas dos italianos ricos, o grupo de d. Odete Matarazzo, d. Débora Zampari, d. Rose Frontini, d. Irene Crespi, d. Mimosa Pignatari, d. Helena Noquosi. O pai de d. Odete, por exemplo, veio ver o que havia por aqui, e por aqui havia muito.
D. Odete casou-se com um homem muito rico. O que é mais: tem um sobrenome, e os sobrenomes, quatro ou cinco deles, são donos de São Paulo. D. Odete tem atrás de si fábricas e exércitos de operários. É uma senhora muito poderosa.
Dinheiro
D. Fifi Assunção e d. Iolanda Penteado são muito mais paulistas do que d. Irene Crespi. São paulistas de quatrocentos anos. Vocês, que apenas são capixabas do princípio do século, não sabem o que significa, em São Paulo, ser um paulista de quatrocentos anos. É mais importante do que ter uma estátua em praça pública. O poeta Olegário Mariano tem uma estátua em praça pública e passa despercebido na rua do Ouvidor. Um paulista de quatrocentos anos jamais será confundido na multidão da rua Direita.
Apesar de tudo, é d. Irene Crespi que tem o dinheiro.
As qualidades genealógicas de d. Iolanda e de d. Marjorie não podem ver com bons olhos o passado um tanto rústico dos maridos da turma do segundo grupo. Mas o dinheiro está no segundo grupo, e o dinheiro tem voz eloquente e poderosa. O dinheiro é a grande arma do segundo grupo: a arma que dá qualidade ao trabalho dos esforçados italianos, que os credencia na sociedade, que lhes abre e às suas cintilantes esposas as inacessíveis portas dos solares de Piratininga. O dinheiro atrai o primeiro grupo, e os quatrocentos anos de qualquer Prado ou Leme se derretem nos milhões do conde Matarazzo como manteiga em cima de uma chapa quente.
O “estribo” e o “penacho”
Mas há o terceiro grupo, um grupo lamentável e melancólico. É uma gente que não vem lá de longe. Uma gente que nasceu por aí, de família recente, de médicos de Barretos ou comerciantes de Bauru. Uma gente que não tem dinheiro. Os homens vivem de seus pequenos ganchos e comissões. Alguns escrevem em jornais uma literatura precária. Mas a serpente do grã-finismo tomou conta de todos, dos homens e das mulheres. As mulheres sacrificam os maridos, fazem milagres no orçamento mensal — contanto que se tornem dignas do Roof ou do Jequiti. É o grupo do “estribo” e o grupo do “penacho”. Os homens se dependuram na vida mundana de São Paulo como se estivessem num bonde cheio. As mulheres usam terríveis penachos, porque acreditam ser essa a característica principal da grã-fina, como o dente de ouro é característico em todo turco.
E fazem coisas terríveis: quando, por exemplo, a turma do primeiro grupo telefona, princípio da noite, para o Jequiti, pedindo mesa, o gerente é infalível na resposta:
– Não é mais possível, cavalheiro. Todas as mesas de pista estão tomadas.
É que o grupo do “penacho” foi na frente e, com uma diligência típica, recrutou para seus prazeres o que havia de melhor na boate. Por isso, leitor amigo, nunca se iluda: se você quer conhecer a grã-finagem paulista e for uma noite ao Jequiti ou ao Roof, não se deixe levar pelos arrogantes e coloridos penachos, nem pelos envernizados cavalheiros das primeiras mesas. Eles não são os tais. Os tais estão atrás, possivelmente nos piores lugares.
O grupo do “estribo” se orgulha muito de suas relações com a gente chique. Diz sempre: “Ontem almocei com Sicrana. Hoje à tarde tomarei chá com Fifi. Lelé me telefonou. Oh!, diabo, esqueci de telefonar para Zuzu”. Vivem disso, boiando num falso mar de grandeza.
Jerry, o oráculo
Quando um ilustre casal paulista dá uma recepção em sua casa, já sabe para quem deve mandar os primeiros convites: para os maiorais do grã-finismo, os tais de quatrocentos anos, e para os dois cronistas sociais mais importantes de São Paulo: Jerry e Bilm.
O verdadeiro nome de Jerry é Cornélio Procópio. É um rapazinho risonho, larga fronte brilhante, com um bigode reto e fino. Usa ótima dentadura e ótimo sorriso. Diariamente, na Folha da Manhã, Jerry aparece através de sua literatura cor-de-rosa. Se Jerry, na noite passada, esteve numa festa elegante, descreve como foi a festa, fala dos vestidos que viu, aplica adjetivos próprios aos melhores encantos femininos e masculinos, pulveriza inocentes ironiazinhas sobre tudo aquilo que não lhe agradou ao olfato e à vista. Um grã-fino me disse:
— Para que uma festa não seja um fracasso, tem que contar com a presença de duas pessoas: do Jerry e da Stela Alves Lima.
Jerry tem algumas credenciais importantes: possui a tal história dos quatrocentos anos, e sua família, ainda hoje, é dona de alguns recursos. Sua conversa é macia, sem espinhos. Os problemas do mundo não chegam até ele, e se chegassem Cornélio saberia como enfrentá-los: faria um muxoxo e telefonaria para Fifi, Fifi sem problemas nem angústias. No mundo elegante de São Paulo, Jerry é mais importante do que d. Odete Matarazzo ou d. Irene Crespi. D. Odete tem fábrica, d. Irene tem dinheiro. Mas Jerry tem uma coluna diária na Folha da Manhã que é o oráculo da elegância paulista. A coluna de Jerry consagra ou põe abaixo qualquer pretensão grã-fina. Mas sua linguagem é sempre amena, porque um grã-fino nunca se compromete. O estilo de Jerry é como sua dentadura: uma coisa certa e limpa. Impossível é, porém, alguém saber se Jerry nasceu assim, com bons dentes, ou se o seu sorriso é realização de algum odontólogo caro. Aí embaixo vai uma amostra do estilo de Jerry. Trata-se de uma crônica que ele publicou há pouco no seu jornal sob o título de “Guarujá”. Diz assim:
O tempo não quis fazer um papelão. Não quis também que todos ficassem desapontados. A princípio relutou com ameaças bruscas de nuvens baixas e acinzentadas. Pingos grossos de chuva chegaram mesmo a cair. Depois, de repente, num abrir e fechar de olhos, um sol de ouro resolveu assumir a supremacia naquele céu sereno e azul cor de turquesa. E o Guarujá viveu seus momentos de grande animação. A praia encheu, o cassino ferveu. Um movimento intenso reinou naquele ambiente simpático, cheio de sol, de vivacidade, de alegria e de espontâneo entusiasmo.
Os casais Fábio da Silva Prado, Edgard Conceição, Alberto Bianchi, Evaldo Foz, Vítor Meireles, Francisco de Sousa Dantas, Vítor e Eduardo Simonsen, Remo Prada, Roberto Ferreira, Luís Campeio, os condes Sílvio Penteado e Raul Crespi…
Deslizava pela superfície azulada de um mar muito calmo e muito manso a silhueta alvíssima do Albacora, um iate bonito do casal Jorge da Silva Prado, que carregava amigos para as delícias calmas de longo cruzeiro.
Foi para que as tonalidades combinassem numa perfeita harmonia de cores que a sra. Horácio Lafer trazia um elegantíssimo slack em albeni branco, d. Marjorie da Silva Prado, em amarelo e azul pálido, a sra. Evaristo Almeida ainda de branco e vermelho-vivo…
A silhueta esguia dos coqueiros desgrenhados, ao longo das praias alvas, parecia inclinar-se à beira d’água para melhor ouvir o murmúrio suave das ondas esverdeadas que na areia vinham morrer…
Debaixo de amendoeiras frondosas, indiretamente iluminadas, em mesinhas de quatro, no ambiente simpático daquela casa normanda, o sr. e a sra. Francisco Ramos de Azevedo conversam com os amigos num finíssimo jantar que a um grupo grande de pessoas tiveram a amabilidade de oferecer.
Os casais Armando Penteado, Eurico Sodré, Mariano Procópio, Evaristo de Almeida, Jorge da Silva Prado…
O vinho corria louro e generoso como a alegria franca da reunião, como as chamas ainda mais louras daquelas pequeninas velas que iluminavam as mesas, como a amabilidade cativante de d. Zuleika, que, elegante num slack marrom e rubi, a todos distribuía atenções e incalculáveis gentilezas.
Bilm
Bilm, a outra cronista mundana, é muito diferente de Jerry. Seu verdadeiro nome é Irene de Bojano. Jerry escreve pela manhã, Bilm escreve à tarde, na edição vespertina da Folha. Bilm é muito mais seca do que Jerry. E também mais literata. Seu estilo, uma coleção de lugares-comuns regados a adjetivos próprios, prefere cuidar das coisas do espírito: versos, teatro, música. Constantemente Bilm cita poemas dos seus poetas prediletos, nacionais e estrangeiros. E suas preferências são muito instáveis. Bilm já gostou muito de Alberto de Oliveira. Hoje prefere Vinicius de Moraes.
Façamos uma demonstração prática: há uma festa em São Paulo, uma festa numa casa particular, música, champanha e comidas. É prato para Jerry. No outro dia, acontece qualquer coisa supergrã-fina no Theatro Municipal, como uma apresentação do grupo Cega-Rega ou concerto de um pianista célebre: é prato para Bilm. Tal distinção faz com que Jerry nunca entre em atrito com Bilm. Cornélio e Irene são bons amigos, com raios de ação delimitados. Jerry conhece todas as cores do batom. Bilm está perfeitamente a par de todas as prenderes de sucesso da Broadway.
Literatos da “finesse”
O grã-finismo também tem dos seus “intelectuais”, os seus literatos. Para qualquer grã-fino paulista, por exemplo, o maior escritor de São Paulo é o sr. René Thiollier. René Thiollier já é um cidadão bastante velho. Mas continua rico e elegante. Sua residência é muito famosa: chama-se Vila Fortunata e possui, entre outras surpresas, uma torre fina como um minarete. É lá em cima da torre, num pequeno gabinete, que Thiollier faz sua literatura, uma mistura de versos acomodados e ensaios históricos sem grandes ousadias. Um dos cargos de René: o de secretário perpétuo da Academia Paulista de Letras.
Literato grã-fino é Guilherme de Almeida. Atualmente, apesar de uma seção meio mundana que mantém na Folha da Manhã, Guilherme anda meio político com o grã-finismo paulista. É que ele cometeu o bruto erro de afirmar, numa reunião elegante, que estava se inclinando para o socialismo. Houve um espanto geral e Guilherme perdeu alguns por cento de seu cartaz. De qualquer maneira, suas crônicas diárias não são melhores nem piores do que as do Jerry. Às vezes são piores. Guilherme veste-se como um grã-fino do tempo em que Oswald de Andrade era grã-fino: polainas, pó-de-arroz no rosto e olhar vago.
Outro literato do grã-finismo é o nosso já conhecido Roberto Moreira, que fez, há vinte anos passados, uma conferência sobre Bilac. De lá para cá, em centenas de oportunidades mundanas, tem repetido a conferência para algumas gerações grã-finas de São Paulo. Ainda não tive oportunidade de ouvir uma palestra do dr. Roberto. Mas um amigo me garantiu que na mesma existe mais recitativo do que na Biblioteca do ar do Sr. César Ladeira.
A especialidade de Paulo Assunção, outro “intelectual” da haute gomme, são os brindes. Ninguém faz um brinde melhor do que ele, particularmente os brindes de aniversário. O grã-finismo paulista tem seu historiador oficial: é o “escritor” Yan de Almeida Prado. Um dos seus poetas preferidos é o constante jovem Oliveira Ribeiro Neto, cuja árvore genealógica, no entanto, nasce em comprometedor solo sergipano.
Outro literato da finesse: Eurico Sodré. Eurico é sonetista e diretor da Light. Em 1912 publicou seu primeiro e último livro de sonetos. Mas foi o bastante, pois que nessas coisas literárias o grã-finismo não é muito exigente.
Figura ímpar na elegância dourada de Piratininga é o dr. Roberto Simonsen, proprietário de algumas das mais robustas cifras nacionais. Nas horas vagas, o sr. Simonsen escreve livros, artigos e discursos sobre a “promissora situação financeira do Brasil”, da qual ele é um dos sustentáculos. O sr. Simonsen é também conhecido e admirado pelo seu amor ao vernáculo. Seus discursos e livros são primores de correção gramatical. É verdade que o milionário Simonsen, tão cheio de afazeres lucrativos, não tem tempo para perder com vírgulas e pronomes. Simonsen possui um gramático especial e particular, o sr. Marques da Cruz, que recebe mensalmente um ordenado convidativo apenas para pôr em alto estilo do seu patrão e espartilhar nas leis de Cândido de Figueiredo possíveis liberalidades linguísticas do financista.
Oswald de Andrade também já pertenceu à nata elegante de São Paulo. Mas foi expulso da finesse quando perdeu sua primeira fortuna. Depois disso, o finalmente romancista de Marco zero surgiu como dono de várias outras fortunas. Mas o grã-finismo não pode receber em seu seio um cavalheiro que vive assim em altos e baixos econômicos. O que caracteriza um grã-fino do primeiro e segundo grupos é a sua posição econômica absolutamente estável. Durante muito tempo, Oswald de Andrade fez uma bruta força para voltar ao seio da haute gomme. Mas foi impossível. Hoje sua posição é a de um cidadão amargurado e revoltado com os seus antigos colegas de vida mundana. O que não quer dizer que, de vez em quando e a pedido das circunstâncias, o inquieto humorista não corteje alguns dos poderosos sobrenomes paulistas.
Menotti del Picchia também pertenceu ao grã-finismo. Mas hoje os grã-finos não o suportam. Naturalmente, Menotti, que tanta coisa já fez contra tantos, deve ter feito também algo contra os grã-finos.
O grã-finismo paulista não perdoa a Semana de Arte Moderna, que lhe roubou alguns dos seus elementos mais brilhantes. Antes da Semana, a vida social de São Paulo era muito acomodada. A Semana, ideia do grã-fino Graça Aranha, trouxe os primeiros desentendimentos e os primeiros atritos. O único elemento da Semana que a haute gomme militante de São Paulo não perdeu foi Guilherme de Almeida. Mas a verdade é que Guilherme entrou na revolução modernista pensando que se tratava apenas de um outro chá das cinco. Recuou a tempo. O desenhista Belmonte conseguiu introduzir algumas cunhas na finesse. É quase sempre convidado para as festas e os chás. Dá-se perfeitamente bem com o pedigree e os sobrenomes. Suas charges, sempre bem-comportadas e geralmente a favor dos mais fortes, têm-no ajudado muito na sua carreira vitoriosa. Creio que Belmonte é o único caricaturista (?) no Brasil que conseguiu juntar dinheiro com sua arte.
O colar da princesa
Mas nem sempre a vida de um grã-fino é plácida e rósea. De vez em quando acontecem tormentas e pequenas tempestades. Recentemente, por exemplo, o grã-finismo paulista sofreu um bruto golpe. Foi o caso do colar da princesa. A história pode ser contada em rápidas palavras: quando d. Duarte Nuno veio fazer a América aqui no Brasil, e resolveu casar com a melancólica princesa brasileira d. Maria Francisca, com o objetivo de consolidar as questões monárquicas entre Portugal e Brasil, o grã-finismo paulista saudou o acontecimento com entusiasmo e alegria. Afinal de contas, teríamos em Petrópolis o momento mais alto da elegância nacional. Um príncipe de verdade, embora cabeçudo e meio falido, iria casar com uma princesa à moda da casa. Imediatamente uma lista começou a correr os meios da finesse de São Paulo: os grã-finos resolveram dar um rico presente aos nubentes, um precioso colar de diamantes, e a lista pedia donativos. Houve grã-finos bem estabelecidos na praça que não pestanejaram: com uma penada rápida assinaram dez e vinte contos. Outros assinaram apenas cinco. Outros ainda, um tanto encabulados, só puderam dar três. O colar foi comprado: parece que custou a razoável quantia de trezentos contos (foi antes dos cruzeiros).
Depois fizeram-se os preparativos para o casamento. Os grã-finos mandaram fazer casacas especiais, compraram novos pares de sapato de verniz ou polainas, e as mulheres gastaram fortunas em vestidos e enfeites. Um carro especial da Central, com lavatório completo, levaria a finesse até o Rio de Janeiro. Poucos dias antes do casamento miguelista, os grã-finos já estavam todos prontos. Esperavam apenas os convites individuais. Mas aí aconteceu a tragédia. Os convites chegaram um dia, mas não chegaram para todos. Chegaram apenas para os que haviam assinado a quantia mais grossa: a gente dos dez e vinte contos. Foi uma decepção geral! Senhoras sensíveis tiveram ruidosos ataques de choro. Uma senhora criou olheiras. Um rapaz, visivelmente abatido, retirou-se durante meses para uma fazenda do interior.
Antes do caso do colar, a monarquia gozava de real prestígio no seio da finesse paulista. Mas parece que d. Duarte não é bom político. Com a sua falta de atenção tão lusitana, o príncipe de testa olímpica bombardeou seu prestígio entre os elegantes de São Paulo. Os monarquistas formam hoje uma minoria insignificante. Quando esteve em São Paulo, d. Duarte foi tratado muito friamente. Em companhia do pintor Di Cavalcanti, o jovem nobre visitou vários lugares históricos: o Museu do Ipiranga e os andaimes da Sé. No museu aconteceu um detalhe pitoresco: é que os funcionários da casa tomaram o pintor Di Cavalcanti pelo príncipe, prodigalizando-lhe atenções e reverências. O príncipe, um tanto amuado, foi esquecido entre as relíquias históricas e os apetrechos indígenas. Nem chegou a visitar o Jaú.
E por falar no pintor Di Cavalcanti, definamo-lo como um dos casos mais esquisitos do grã-finismo paulista. O casal Di Cavalcanti, Di propriamente dito e a esplêndida pintora Noêmia, são queridíssimos nas rodas elegantes de São Paulo. O apartamento de Di, no centro da cidade, está sempre povoado da melhor fauna local. Di recebe telefonemas e convites para as melhores festas e as mais disputadas reuniões. Todo grã-fino e grã-fina paulistas anseiam ser pintados pela Noêmia. É a mesma coisa que almoçar na Pipote. É coqueluche, como eles dizem. No entanto, apesar de perfeitamente acomodados na finesse, os dois não perderam nenhuma de suas qualidades. Noêmia é uma das pessoas mais vivas que eu conheço. E Di, no fundo, é quem mais se diverte com aquilo tudo e de vez em quando consegue vender uma tela sua a algum grã-fino. Não se trata, portanto, de um diletante.
Verbas para o grã-finismo
Comento, com Fifi, a vida mundana de São Paulo, e ela me diz na sua vozinha:
— Está adorável! Nunca tivemos uma vida social tão intensa.
É que os motores das fábricas estão trabalhando muito. Já não há horas vagas nos domínios dos Matarazzo e dos Crespi. Os enormes portões da Mooca não se fecham: expulsam, de manhã cedo, uma turma de gente cansada e cinzenta, engolem mais gente que se cansará durante o dia. Os relatórios, sempre exatos, nos contam coisas muito importantes. Dizem, por exemplo, que os lucros de Matarazzo no ano passado foram de 700 milhões de cruzeiros. É muito dinheiro e com ele os Matarazzo podem fazer grandes e belas coisas. Algum dia (quem sabe?), Matarazzo fará um refeitório ventilado e claro para seus operários. Fará também uma maternidade para as mulheres dos operários, não uma maternidade elegante e cara, a melhor da América do Sul, como a que ele ergueu lá para os lados da avenida Nove de Julho; apenas uma maternidade sóbria, mas que seja de graça. O Cotonifício Rodolfo Crespi S.A. teve, em 1942, um lucro sobre o capital de mais de 56%. A Nitro Química, em 1942, teve um lucro de Cr$ 28.330.000,00 e alguns centavos. Em 1940 e 1941, os principais bancos reunidos somaram um lucro de Cr$ 123.263.456,00. E os bancos pertencem aos homens que são donos das fábricas e das indústrias. A fiação Tecelagem e Estamparia Jafet fez bons negócios em 1940, 1941 e 1942; a Jafet deu um balanço e seus donos foram presenteados com um esplêndido resultado: um lucro de Cr$ 16.297.000,00, 181% sobre o capital. A Pirelli S.A. ganhou, em 1942, perto de 22 milhões de cruzeiros, 72,5% sobre o capital. A S.A. Moinho Santista ganhou, no mesmo ano, perto de 39 milhões de cruzeiros, 53,5% sobre o capital.
Sobre números assim, tão eloquentes, é que repousa o esplendor da haute gomme paulista. O Brasil está vivendo uma era da fartura. Uma fartura que, na verdade, não chega para todos. Mas chega para Fifi, para Lelé e para Mimi, orquídeas raras. De noite, quando se acendem as luzes de São Paulo, a cidade fica ainda mais imponente. Os anúncios luminosos rasgam o céu: são anúncios das melhores e mais poderosas coisas da América do Sul. Há centenas de indústrias em São Paulo. Cada anúncio luminoso, um anúncio alegre. Cada indústria pede centenas de motores, cada motor pede dezenas de operários. Dia e noite os operários manejam os motores. Os motores fazem dinheiro. Os olhos e o sorriso de Jerry se derramaram satisfeitos sobre Fifi, como se Fifi fosse uma criação da sua coluna mundana na Folha da Manhã. Amanhã ele escreverá:
Na boiserie alta e clara, de carvalho natural, de sua sala de jantar, a sra. Stela Penteado Maurel sempre gostou de enfeitar rendas creme da sua toalha de mesa com o colorido quente de rosas cor de rubi. Cinco candelabros antigos de prata acariciavam a suavidade do ambiente estilizado com a luz fosca das suas chamas pequeninas. Cupidos brancos de Saxe ofereciam flores por entre os personagens medievais de uma tapeçaria de Aubusson, e os sorrisos amáveis de todos os convidados.
Todos estão muito elegantes e adoráveis. E Jerry já sabe o que dirá, amanhã, de cada um:
A sra. Maria Penteado de Camargo pensava em reabrir aquele salão moderno de d. Olívia, escondido entre as sombras e folhagens escuras. Guilherme de Almeida recordava a sua recente viagem a Ouro Preto; os srs. Lavanchy e Henry Gueyrand falavam da Suíça; o casal Jacques Pilon, de uma fazenda em Campinas… As sras. Maria Furtado Alves e Lima e Bebé Nogueira sorriam por entre as espirais azuladas de seus perfumadíssimos Luckies… A noite úmida de fora escoava-se serena, por entre as luzes mortiças dos salões franceses. Como seria bom se pudessem eternizar momentos assim…
É Jerry, seria muito bom. Seria adorável. Mas eu acredito não ser possível.
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