Este texto foi publicado na edição número sete da Revista Samuel, de janeiro e fevereiro de 2013. Quino morreu nesta quarta-feira (30/09), aos 88 anos. Releia, abaixo, a entrevista que o cartunista deu para o jornal Página/12 e que foi reproduzida pela revista:
—-
Antes de completar 80 anos, Quino confessa que ficou de muito mau humor. “Estava com um humor de merda”, resume o pai da Mafalda, sem ter medo das palavras de baixo calão. Quino é um homem encantador, que caminha com passos curtíssimos, quase deslizando sobre o chão, qual um Chaplin da velhice, e que fala muito “caralho”.
“Estive deprimido, meio com saco cheio de tudo. Mas agora que já completei os 80 tudo isso foi embora. Já não tenho problema nenhum com a idade”, esclarece ele diante do olhar atento de Miguel Rep, seu colega e amigo, praticamente um dos filhos que nunca teve, com quem agora compartilha algumas garrafas de cerveja. O lugar é a sala do apartamento que Quino e sua mulher, Alicia, possuem no centro de Buenos Aires. A hora é o final da tarde, depois de uma sessão de autógrafos na Feira do Livro Infantil portenha.
Nesses dias de celebração quase coletiva dos seus 80 anos, Quino lembra que seu primeiro aniversário foi comemorado logo depois da morte dos seus pais, quando morava com seu tio Joaquín Tejón, um desenhista publicitário que inspirou o pequeno Joaquín Lavado a se dedicar àquilo que o levou a ser chamado de Quino. “Foi minha tia quem festejou meu aniversário pela primeira vez”, conta o cartunista durante a conversa com Miguel Rep, relatada pelo jornalista Enrico Fantoni.
Rep: Quando foi isso?
Quino: Deve ter sido em 1948, depois da morte da minha mãe, primeiro, e do meu pai, depois. Só então me festejaram algum aniversário, mas não é também que tenham sido tantos os festejos…
Embora não encolha os ombros, os silêncios de Quino são como se o fizesse. Amável e de voz baixa, parece decidido a recordar nesta noite de cerveja e 80 anos.
Rep: Por que não os celebravam? Por algum motivo especial?
Quino: Acho que na Espanha é assim, porque temos um amigo espanhol que tampouco os festeja.
Minha mãe morreu quando a 2ª Guerra Mundial estava acabando. Como eu ia ao cinema sozinho desde os 8 anos, eu havia visto todos os noticiários da guerra. Por isso, quando me costuraram a faixa de luto na manga, me senti como um nazista em quem estivesse sendo costurado o bracelete com a suástica. Foi terrível!
Rep: Isso lhe formou a personalidade? Antes era uma criança mais alegre?
Quino: Claro que sim. Fui até que a minha mãe adoecesse de um câncer que a manteve na cama por dois anos. Quando fui ver Gritos e Sussurros, de Bergman, quase precisei ir embora do cinema. Não aguentava.
Rep: E como foi a relação com seu pai?
Quino: Meu pai falava muito pouco, mas quando abria a boca era muito engraçado. Um andaluz engraçado. Era muito de ir ao café e de jogar cartas, e numa tarde de café se irritou com um amigo. Não sei o que o outro estava dizendo, mas meu pai lhe respondeu: “Fica quieto, marmelo!”. A partir de então o outro ficou sendo o Marmelo. Ferrou com ele para sempre.
Ianques e marxistas
“Antiperonista.” Assim se define politicamente Quino na época do seu começo como humorista. Antiperonista, mas…? “Mas nada”, assegura, contundente.
Em seguida explica, sorridente: “Sou filho de republicanos espanhóis, anticlerical até a morte.” Conta que seu avô o chamava quando era pequeno. “Menino, vem cá”, dizia-lhe. “Você sabe o que é uma missa?” O menino Joaquín respondia que não, e o avô lhe explicava: “É uma congregação de ignorantes, adorando a bunda de um velhaco.”
Sua avó, além do mais, era comunista. “Vinha à minha casa vender bônus do partido.” E seus pais, esclarece, eram “socialistoides”. “Aconteciam umas discussões do caralho”, recorda com o olhar perdido, sem poder apagar o sorriso da boca. “Por isso é que sempre fui muito politizado.”
Quino: Eu sintonizava A Voz da América e escutava Bing Crosby. Nessa época você ligava o rádio e escutava de tudo: Rádio Pequim, os russos, o que quisesse. O éter estava limpíssimo.
Rep: Sua avó comunista lhe dizia algo quando o descobria escutando Bing Crosby?
Quino: Vinha com umas fotos de bombardeios norte-americanos sobre alguma cidade alemã, que havia ficado assim, cheia de escombros, ao rés do chão, e me acusava: “Olha, menino! Olha o que os seus fizeram!”.
Rep: Por que “os seus”?
Quino: Porque eu gostava não só de Bing Crosby e Frank Sinatra, mas também dos filmes norte-americanos, dos musicais, de Esther Williams. Todas essas coisas.
Rep: Já desenhava nessa época?
Quino: Comecei a desenhar como todas as crianças, aos 2 ou 3 anos. Mas aos 14 decidi que seria desenhista de humor.
Rep – Por que humor?
Quino – Porque me havia criado com meu tio Joaquín, e ele assinava várias revistas norte-americanas, porque era publicitário. À sua casa chegavam a Life, a Esquire, o Saturday Evening Post, onde havia uns desenhistas norte-americanos que faziam humor mudo, como Eldon Dedini. E quando aos 18 anos me caiu nas mãos a Paris Match e topei com Jean Bosc e Chaval, nem te conto. Eu me criei com esse tipo de humor. Divito me dizia: “O que isso tem a ver com o humor da Argentina? Não temos nada a ver com um deserto ou um elefante!”. Mas não me importava, o humor que eu gostava era o desse desenho do Chaval, em que o sujeito está olhando pela janelinha do avião e vê passar um bonde.
Decalcando Mafalda
Certa vez, Quino disse que seu primeiro sonho como desenhista foi ser assistente de Divito, o primeiro grande astro do desenho argentino. Antes de chegar a falar diretamente com Divito, quem o atendia na revista Rico Tipo era um desenhista chamado Rovira. Parece que as ideias agradaram, assegura Quino, porque em seguida passou a ser atendido pelo próprio Divito, que lhe pedia para que levasse seus desenhos a lápis. “Ele os corrigia para mim, eu os passava a tinta, e depois os publicavam.”
Rep: Quando o senhor percebeu que tinha encontrado seu estilo como desenhista?
Quino: Depois de ter umas aulas com Demetrio Urruchúa. Deve ter sido pouco depois do ano de 1965…
Rep: Muito depois de ter começado a Mafalda, então.
Quino: É que a Mafalda eu decalcava de um quadro para o outro, porque não me saía igual, e então eu sofria. Oski decalcava muitíssimo, ele me animou, tinha uma mesa de vidro inclinada, com a luz por baixo. Eu nunca tive uma mesa assim, por isso usava a janela…
Rep: A partir dessas aulas, o senhor sentiu que seu estilo se firmou?
Quino: É que eu passei por várias etapas. De narizes pontiagudos ou mais redondos. Uma vez, falando com Julián Delgado, lembro que ele me disse: “Cara, você está fazendo uns pés muito grandes”. Eu olhava e não via nada de esquisito, então achava que Julián estava louco. Mas o que acontece é que não havia nada de esquisito no desenho: ele me falava dos “pés escritos” [as legendas nos rodapés de fotos e ilustrações].
Humor bruto
A única vez que Quino garante não ter desenhado na sua vida foi quando fez o serviço militar. Só pintava a flâmula da equipe de polo dos oficiais da Artilharia Aérea de Montanha, lá na sua Mendoza natal. “Demorava muito, porque quanto mais eu pintasse, menos coisas teria que fazer”, recorda.
Rep: Além de anticlerical era antimilitar?
Quino: É que de menino eu vivia obcecado por ter de fazer o serviço militar. E tinha razão. É uma cagada. Poxa, o que acontece é que a pessoa sai do mundo da sua família e se mete lá com os meninos de outras províncias. Eu me lembro de que havia um garoto de Córdoba que não sabia o que era um garfo.
Rep: Pensei que o senhor fosse dizer que não conhecia o mar…
Quino: Eu só fui conhecer o mar aos 12 anos. Fui a Mar del Plata com meus tios. Uma tia de Joan Manuel Serrat tem a história mais bonita que eu já escutei sobre o mar. Era uma senhora de uns 50 anos, então a levaram ao litoral, e toda a família ficou atrás para ver o que ela dizia. Ficou olhando por muito tempo, até que se virou e disse à família: “Que ocorrência!” O mar, que ocorrência. É ótimo isso.
Rep: Claro, porque não lhe havia ocorrido… Para os consumidores de humor, seja por curiosidade ou por profissão, o humor mais engraçado é o humor bruto, porque é mais virgem.
Quino: Como o de Gila. Era o humor que os taxistas de Madri sabiam ter numa época. Uma vez, com Alicia, calhamos com um que dizia: “O que eu não entendo é isso do copo meio cheio e meio vazio. Se o vazio é o nada! Como vai estar meio vazio?”.
Rep: Como foi que lhe disseram há pouco tempo os médicos que o atenderam em Madri?
Quino: Ah, sim. Há alguns meses, em fevereiro, tive uma descompensação muito forte. Eu me sentia mal para caralho, então tirei a pressão e quando vi que tinha cinco de máxima liguei para um hospital. Pedi que me enviassem um médico, porque me sentia muito mal. “Vejamos, quanto o senhor tem de máxima?”, me perguntou o que me atendeu. “Cinco”, respondi. “Não pode ser!”, me disse. “Isso não é compatível com a vida!”
De chapéu posto
Quino não é Manolito. Nem Mafalda. Nem Libertad. Mas tem partes de todos os personagens da sua tira mais famosa. Até de Susanita, porque, como já contou mais de uma vez, é fanático por piadas. Para demonstrar que também tem algo de Miguelito, sempre recorda quando viviam numa pensão com Julián Delgado, e de repente lhe perguntou: “Quanto pesa uma árvore?”. “Por que você não vai à puta que te pariu?”, foi a indignada resposta do seu amigo, farto de semelhantes delírios.
Quino e Julián, amigos de alma, deixaram de se falar depois de uma disputa sobre os primeiros originais de Mafalda. “Seis meses depois de começar a publicar a tira no Primera Plana, um jornal de Bahía Blanca veio me pedi-la.
Então fui falar com Julián, que era o secretário de redação, e ele me disse que os originais eram da revista, não meus. Meu amigo de toda a vida me disse isso! Foi uma dor enorme. Então fui ao arquivo, perguntei ao estagiário se tinha meus originais, e ele me deu… E por isso esses cuzões o demitiram! Foi então que deixei o Primera Plana.”
Rep: Mafalda significou a tranquilidade do trabalho fixo?
Quino: Não, porque eu já tinha trabalho fixo antes, com as páginas de humor. Antes da Mafalda já publicava fazia uns 11 anos, então estava tranquilo com isso…
Rep: E continuou com essas páginas enquanto fazia Mafalda…
Quino: Sim, era uma loucura. Pergunte a Alicia, nunca sabíamos quando poderíamos sair de férias. Eu sempre vivi obcecado com a entrega. Até o sexo eu conheci muito tarde, por causa da puta obsessão de ser desenhista e publicar…
Rep: Antes você dependia que uma revista o aceitasse, e não era que estivesse a salvo. Toda semana você prestava um exame.
Quino: Com as primeiras páginas que publiquei, fiz bobagem. Desenhei um toureiro que havia matado um touro e estava com o chapéu posto. Um leitor mandou uma carta me tratando como um idiota: como eu não sabia que o toureiro dedica o touro a alguém antes de matá-lo, e lhe atira o chapéu? Isso me marcou. Por isso depois me transformei em um obsessivo da documentação.
Olhando para fora
Assim que pôde, Quino deixou as revistas de humor e passou a publicar suas piadas em revistas de atualidade. Algo que confessa ter escolhido porque — calcula — seu humor sempre teve pouco a ver com o que se estava fazendo na Argentina. “Faziam-se piadas sobre as sogras e o escritório, coisas que em Mendoza não havia. Bom, gente que trabalhava em escritórios sempre houve, mas eu não frequentava esse mundo.”
Rep: O senhor sempre disse ter medo de que alguma vez não lhe ocorresse nada…
Quino: É um terror que a gente sempre tem. O mais angustiante que me lembro foi uma vez que fomos de férias para o Uruguai, para La Paloma. Precisava mandar Mafalda para a Siete Días, e não me ocorria nada. Passei uma angústia espantosa naqueles dias lá.
Rep: Como solucionou isso?
Quino: Fiz uma tira da qual eu não gostava nada, que depois, olhando, você não nota se é melhor ou pior que as outras. Mas na ocasião a entreguei com muita vergonha. Porque às vezes a gente entrega com vergonha. E outras vezes a gente tem uma ideia com a qual se entusiasma, e está esperando que saia para ver o que os amigos lhe dizem, e ninguém lhe fala absolutamente nada.
Rep: Qual foi essa Mafalda que o senhor entregou com vergonha?
Quino: Uma em que o Manolito descobre que os ratos lhe estão comendo um queijo.
Os quadros escuros
Nem religião, nem política, nem sexo. Essa foi a censura que Quino sofreu desde o começo da sua carreira, a mesma de todos os seus colegas. Pelo menos nas revistas de humor. “Fiz uma página contra Franco na Tía Vicenta que me alegrei muito quando saiu”, recorda. “Eram cinco desenhos, da época em que o slogan de Franco era ‘Caudilho da Espanha pela graça de Deus’. E em um dos desenhos aparecia um homem olhando o cartaz na rua, e dizia: ‘Senhor, não lhe parece que, como graça, já está bom?’. Landrú o publicou para mim, mas isso era uma raridade.”
O problema com a censura, conta, era que não estava claro o que podia ou não ser feito. “No Brasil pelo menos havia censores”, conta. “Ziraldo me mostrou uma vez como lhe devolviam as piadas que ele enviava, com uma cruz vermelha em cima, proibindo-as. Mas aqui ninguém lhe dizia nada. Então a gente se autocensurava, porque, se você não vai ser publicado, vai desenhar para quê?”
Quando desenhava regularmente suas piadas, Quino podia chegar a carregar uma ideia durante anos. Guardava-a sabendo que servia, mas que não lhe havia encontrado o final. Muitas dessas ideias, afirma Quino, ficaram sem terminar.
Rep: O senhor não tem a fantasia de desenhá-las alguma vez?
Quino: Agora? É que, como estou enxergando tão mal, pensar nisso me pentelha muito. Não vejo bem o que desenho. Antes, para desenhar um olho, que é um pontinho de merda, eu apagava 10 mil vezes. Que coisa isso dos olhos, no desenho não é nada mais do que um pontinho, mas a gente nota quando funciona e quando não…
Rep: Desenha de memória?
Quino: Escrever de memória eu consigo, mas desenhar, não.
Rep: Então existe a possibilidade de que o senhor nunca mais possa desenhar?
Quino: Não sei. De quando em quando me ponho a desenhar, não quero deixar de fazê-lo. Mas fujo do assunto. Sou como um tenor que tem problemas nas cordas vocais. Ele se põe a cantar e escuta que está saindo feito um cu.
Rep: E a cabeça continua imaginando piadas?
Quino: Não, me autocensurei.
Rep: O sr. já não tem aquele caderno ao lado da cama, para anotar as ideias que lhe ocorrem enquanto sonha?
Quino: As ideias que sonhei sempre foram ruins, nunca me serviram para nada. O caderno era para anotar essas ideias sobre as quais a gente se põe a pensar antes de ir dormir, como acontece com todo mundo. Já não as anoto. Agora as guardo para mim.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto originalmente publicado no diário argentino Página/12