Para o Benjamin, no aniversário da abolição da escravatura
Meu moleque,
Hoje é dia treze de maio, aniversário da abolição da escravatura no Brasil. É dia do teu pai oferecer um café amargo, bem forte, ao tempo, para que nele bebam as santas almas benditas; pretos velhos encantados que protegem o nosso país e o nosso povo. Papai vai pedir para que eles te protejam também.
Tua bisavó, meu moleque, foi uma yalorixá importante, iniciada nas coisas do candomblé e da encantaria. Ela criou esse teu pai desde muito cedo. Fui civilizado pelo tambor, alumbrado pelas saias rodadas das yaôs, educado pela gentileza doce dos ijexás e pela formosura das mestras do encanto. Entre uma curimba e outra, tua bisa gostava de ouvir Luiz Gonzaga e lembrar de Pernambuco, de onde vem nossa família. Em todo treze de maio, a bisa pedia aos pretos velhos pelos seus filhos e netos.
Essa é a nossa raiz, Benjamin. É por isso que eu te ninei, nas tuas primeiras noites, com as cantigas de chegada da cabocla Mariana e da encantada Tóia Jarina, a flor de laranjeira mais formosa. “Na praia do Lençol / onde Jarina mora / fora de hora / criança chora”. Não é assim?
É por isso que te contarei um dia sobre o caboclo Japetequara, o bugre que se encantou em um tronco de sucupira. Quando a madeira flora, Japetequara solta seu brado na terra. É por isso que pretendo escrever um dia um livrinho sobre como vovó Cambinda e o Pai Joaquim protejem as crianças brasileiras. E te direi pra não ter medo de Exu, que é teu pai também e gosta de umas travessuras de menino, como certamente você gostará. E Mozart, o menino austríaco que fez as músicas bonitas que embalam teus bons sonhos de chegado ao mundo, é feito Exu também.
Nós estamos crescendo juntos, moleque, eu e você — cada um a seu modo. E você, quando estiver grande, pode ser o que quiser, gostar do que quiser, de quem quiser e como quiser. Erraremos os dois e acertaremos bastante. Se bobear, você resolve até não gostar de futebol e nem de samba, só pra sacanear teu pai. Faz parte.
O fato, meu camaradinha, é que penso o tempo todo, desde a madrugada do teu nascimento, no que dizia o bom e velho Kant sobre criar crianças. Ele sugeria que dessemos aos pequenos raízes e asas. As raizes, para que se saiba de onde vem. As asas, para se voar para onde quiser.
O que eu espero mesmo de você, por toda tua vida, é quase nada e ao mesmo tempo um tudo. Não espero que você seja um homem de negócios bem sucedido, faça fortuna, tenha sucesso profissional, ganhe fama ou coisa similar.
Quero apenas que em algum treze de maio você cumpra o rito de ofertar ao tempo um café amargo, bem forte, pedindo que os pretos velhos protejam os teus filhos. E que teus filhos aprendam contigo a oferecer um café ao tempo, para que as santas almas cuidem também dos teus netos.
Tempo, que traz na ponta das suas asas o mistério maior dos ancestrais, receberá de bom grado esses nossos mimos de continuação da vida.
Beijo do pai.
* Texto publicado originalmente no blog pessoal de Luiz Antonio Simas, o Histórias Brasileiras
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