Um milhão de empregos a menos na zona do euro: “uma catástrofe humana, social e econômica”
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“O quadro é catastrófico”, lamenta o ergólogo francês Pierre Trinquet, estudioso das relações de trabalho, perguntado sobre a situação do desemprego na Europa, após anos da política de austeridade imposta como combate à crise. De passagem no Brasil, o sociólogo afirma continuar chocado com o fato de que todas as decisões laborais na Europa ainda são tomadas por pessoas que nada sabem sobre trabalho. São “leitores de colunas”, apenas. Treinados somente para “confiar em números e tabelas de contabilidade”, diz ele.
Os rumos da crise de desemprego europeia assumem para ele traços ainda mais angustiantes quanto Trinquet explica como funciona a abordagem acadêmica da ergologia, campo de estudo ao qual é dedicado e do qual é pioneiro — participa das atividades do Instituto de Ergologia da Université de Provence desde a sua criação, há 30 anos. “É um método pluridisciplinar” que tem por objetivo perceber, compreender e transformar positivamente as relações de trabalho. Longe de ficar preso à retórica da academia, a ergologia propõe um olhar empírico construído essencialmente na prática. “A participação dos trabalhadores é fundamental para entender o trabalho”, diz Trinquet, ele próprio um ex-funcionário do setor de construção civil.
Na entrevista abaixo, concedida ao jornal Extra Classe, Pierre Trinquet explica melhor o que é a ergologia — e como sua aplicação fez com que a montadora Renault jogasse no lixo uma porção de máquinas projetadas para o trabalho de alguns operários. Perguntado sobre o cenário brasileiro e as políticas de distribuição de renda, o pensador francês primeiro se esquiva e diz que não seria lá muito ergológico da sua parte comentar. “Seria colonialista.” Mas logo em seguida cede: “Crise econômica no Brasil? Mas agora são vocês que nos emprestam dinheiro”.
Com um ambiente de austeridade na economia europeia e francesa, como está a questão do desemprego na França e na Europa?
Pierre Trinquet: O quadro é catastrófico. Este é um problema mais político do que científico. Fico chocado que hoje todas as decisões sobre o trabalho, condições de trabalho, salários e fechamento de fábricas são tomadas por pessoas que confiam e se baseiam apenas em números e tabelas de contabilidade. São leitores de colunas. Essas decisões baseadas somente em números têm um impacto muito grande sobre empresas, sobre pessoas, regiões inteiras e são tomadas por pessoas que nada sabem sobre o trabalho. Todas as mazelas do mundo do trabalho decorrem deste fato.
Um milhão de empregos foram eliminados na zona do euro em 2012, como isso impacta em seu país e que alternativas o senhor vê para esse problema?
Trinquet: O impacto é catastrófico do ponto de vista humano, social e econômico. Pessoas estão se suicidando. Em meu último livro, falo muito dos danos causados no mundo do trabalho. Muitas vezes se considera que os danos nesta área se dão apenas em termos de acidente de trabalho e doenças, pois são os aspectos dos quais se tem estatísticas estabelecidas. O que é um conforto, pois existem números para explicar uma situação. Mas existe todo um contexto maior, que não aparece nas estatísticas, de dramas sociais. Existe um cenário que é muito maior de pessoas jogadas na rua, de suicídios, de famílias destruídas, aumento do crime. Na cidade onde moro, Marselha [segunda maior cidade da França], em alguns bairros o desemprego é tão alto que os jovens só tem uma alternativa, que é entrar para o mundo do crime, do tráfico de drogas, entre outras coisas. Eles sabem que vindos desses bairros eles, além de serem marcados, nunca vão conseguir empregos, aliás nem há empregos naquelas localidades, o que gera desemprego e delinquência. Trata-se de uma catástrofe humana, social e econômica, porque todas essas mazelas demoram muito a resolver.
E as políticas públicas para tentar resolver essa situação de desemprego?
Trinquet: Eu trabalho com uma pesquisadora que investiga as situações de saúde no trabalho e que acabou de recusar a Legião de Honra, que é uma importante comenda, porque ela não queria receber esta condecoração de um governo que permite matar os assalariados e acabar com os empregos. Eu estou de acordo com ela, pois o que ocorre na França é que os homens políticos e o governo permitem acontecer este processo de destruição do trabalho. Fecham os olhos por diversos motivos e deixam este processo acontecer. O que aconteceu com a direita no meu país, quando estava no poder, está acontecendo com a esquerda também.
Quando fala de “leitores de colunas” refere-se a quem especificamente, gestores ou legisladores?
Trinquet: Em primeiro lugar, refiro-me aos acionistas e gestores — que governam no lugar dos que foram eleitos para nos governar. Porém, o que ocorre é que os políticos na maioria das vezes favorecem este ponto de vista por motivos pouco honestos. Não falo do Brasil, porque conheço pouco, mas refiro-me à França. A abordagem dessas pessoas é completamente equivocada, pois lhes falta conteúdo sobre o trabalho. Daí decorre o valor da ergologia como método para compreender o trabalho e apresentar o conteúdo de forma a qualificar as decisões sabendo o que estão fazendo. Ives Schwarz (pioneiro da ergologia), fala de decisões feitas com calculadora. Só que a calculadora nada sabe sobre pessoas ou trabalho.
Muitos especialistas defendem a flexibilização das leis trabalhistas, o senhor, como ex-sindicalista, vê de que maneira as teorias liberais para criação de novos postos de trabalho com menos direitos para os trabalhadores?
Trinquet: O que se observa desde 1789 e de outras conquistas de direitos é que houve um maior compartilhamento das riquezas, e que cada vez mais com uma diversidade de pretextos a gente perde direitos, vantagens e benefícios sociais. Com a ideia de modernizar o trabalho, precarizaram-no mais ainda. São fórmulas sempre apresentadas de maneira muito positiva, mas com resultados negativos para os trabalhadores. Existe a regra de ouro que limita o déficit do estado a 3%. Isso restringe muito a margem de manobra de um governo. E o que se vê hoje neste contexto de limitação e precarização do trabalho é que o PIB aumenta, mas para o benefício de poucos. O jornal francês Le Monde publicou recentemente uma matéria que mostrava a multiplicação dos milionários na França e o aumento dos benefícios deles. Enquanto isso, o país vive numa crise. E o que nos pedem é para confiar nessas pessoas e nos bancos para resolverem os problemas econômicos, quando foram eles que colocaram o país nessa situação. Agora, esta é uma resposta de sindicalista e não de ergólogo.
Em que consiste a Ergologia?
Trinquet: Antes de mais nada, a Ergologia não é uma ciência em si, mas um método, uma abordagem fundamentalmente pluridisciplinar. Um método que tem por objetivo entender melhor a atividade humana, para melhorá-la. Uma coisa fundamental que estabelecemos dentro da Ergologia é que não é possível entender o trabalho sem a participação dos trabalhadores, quaisquer que sejam, em todos os níveis. Os operários têm um saber de experiência que na Ergologia é chamado de saber investido. E esse saber, construído na prática, de maneira empírica, é tão importante quanto o saber cientíco das diferentes disciplinas sobre o trabalho, como Psicologia, Filosofia, Ergonomia etc.
O senhor poderia nos dar um exemplo deste conhecer?
Trinquet: Um exemplo que nos vem dos nomes mais importantes da Ergonomia francesa e do mundo, Alain Wisner, que foi médico do trabalho nas fábricas de automóveis Renault. Ele tinha por objetivo reduzir o cansaço dos operários e melhorar as condições de trabalho. Em determinado momento, a empresa estava implementando muitas máquinas para automatizar a produção. Um desses robôs tinha a função específica de unir duas peças de metal e dar acabamento com um material que se assemelha a uma massa que cumpre o papel de uma junta (como as massas usadas para fixar vidros nas janelas), que depois são lixadas e emparelhadas para que a emenda não apareça. Antes disso, essa operação era feita por operários e era um trabalho simples e repetitivo. Os engenheiros desenvolveram a máquina a partir da observação deste trabalho. Tudo certo, ótimo funcionamento, mas no final de um ano da nova linha de produção, muitos carros eram recusados porque essa parte não ficava bem feita. Foi então que Wisner deu a ideia aos engenheiros de chamar os trabalhadores que faziam esta operação antes de serem substituídos pelos robôs. Obviamente os engenheiros, do alto de seus diplomas, não queriam ouvir o que os operários “não qualificados”, do ponto de vista deles, tinham a dizer ou que lhes dissessem o que deveriam fazer. Mas como não encontravam a origem do problema, acabaram aceitando chamar os operários. Um deles observou a máquina em funcionamento e considerou que ela, de certa forma, trabalhava bem melhor do que eles, pois nunca ficava doente. Mas, por outro lado, dependendo da qualidade da cola, da umidade do ar, temperatura e outras variantes, os trabalhadores modificavam o gesto e a pressão utilizada na mão para aplicar a massa. Ou seja, esses operários faziam o que os ergólogos chamam de gesto adaptado. Um robô não sabe fazer isso. Como resultado, a Renault chamou os operários de volta e jogaram aquelas máquinas no lixo. O princípio deste saber investido é que o trabalhador sabe por experiência o que e como deve fazer para resolver determinado problema. Onde o operário aprendeu? Quem falou? Não é sabido. Esse saber não está escrito em lugar algum, ele está gravado na cabeça e nos músculos da pessoa que faz — e que descobriu fazendo.
De que forma os saberes investidos dos trabalhadores, depois de assimilados pela ciência, podem resultar em benefício daqueles que o produziram?
Trinquet: A Ergologia é uma abordagem científica. Ela não é política nem sindicalista. Tenta entender cientificamente o trabalho e, para fazer isso, analisa os lados que ficam obscuros do seu objeto de estudo. O objetivo disso, de entender o trabalho em sua complexidade, é realmente melhorar o trabalho. A Ergologia parte do princípio de que o trabalho é uma necessidade fundamental do homem e esta atividade humana deve ocorrer em boas condições. Tendo boas condições proporcionará uma boa saúde física e mental e com isso uma vida melhor em seu contexto social. Uma primeira coisa para se aproveitar esses conhecimentos foi a criação de métodos de análise do trabalho. Uma das ferramentas são os grupos de encontro do trabalho. Trata-se de um espaço onde se pode confrontar os saberes acadêmicos com os saberes de experiência, permitindo que eles dialoguem. A primeira condição para o funcionamento desses grupos é que as pessoas que participam devem ter a necessidade de resolver um problema específico. Se isso não ocorrer, elas brigam e cada um firma sua posição ao final. Se houver necessidade real de resolver, um vai escutar o outro e assim perceber uma nova perspectiva para complementar a sua. Esses são grupos de pesquisa e não espaços de debate. O objetivo é sempre resolver um problema. Se este objetivo não estiver claramente definido, não dará resultado.
O senhor tem acompanhado a política econômica brasileira e distribuição de renda. Como essas iniciativas são vistas lá fora?
Trinquet: Não me sinto autorizado a dar minha opinião como francês sobre o contexto brasileiro. Isso não seria ergológico. Seria colonialista da minha parte.
Mas a ideia é que o senhor apenas compare as opções para enfrentar a crise econômica global dos últimos anos, cujas soluções brasileiras são diametralmente opostas às europeias? Não seria uma opinião, mas uma impressão apenas.
Trinquet: Mas no Brasil não há crise econômica [risos]. Agora são vocês que nos emprestam dinheiro. [mais risos]
* Entrevista publicada originalmente no jornal Extra Classe
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