Charles Dickens: retrato do escritor em daguerreótipo de 1867
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O bicentenário do nascimento do escritor inglês Charles Dickens, celebrado em fevereiro, não podia chegar em momento mais apropriado da história econômica. Ele foi o revelador, o carrasco e o poeta em prosa da pobreza extrema das cidades — uma pobreza que, como em nossos piores pesadelos, tememos que esteja de volta.
Como vivemos em tempos difíceis, vale a pena considerar o romance homônimo de Dickens, especialmente porque um de seus temas mais importantes é a economia política. Este livro, publicado há mais de um século, tem algo a dizer sobre nossa situação atual, para além da exclamação de Tom Gradgrind: “Por Deus! Não fale de banqueiros!“?
Frequentemente reprova-se Dickens pela falta de uma visão moral, política e filosófica que seja firme e unívoca. O autor move-se de forma abrupta entre o ferozmente reacionário e o brandamente liberal. Satiriza a filantropia desinteressada da senhora Jellyby (em A Casa Abandonada) com o mesmo entusiasmo e ferocidade com que critica o egoísmo do senhor Veneering (em Nosso Amigo em Comum). Sugere ao mesmo tempo que os homens de negócios são porcos desalmados (Bounderby em Tempos Difíceis), assim como caridosos e desinteressados (os irmãos Cheeryble em Nicholas Nickleby). Como diz Stephen Blackpool, o herói da classe trabalhadora em Tempos Difíceis: “É uma farsa”.
Em seu famoso ensaio sobre Dickens, George Orwell viu nesta desordem moral e filosófica não uma fraqueza, mas antes um ponto forte: uma demonstração de generosidade de espírito, uma postura aberta frente à complexidade irredutível da situação moral da humanidade, o resultado de ter imunidade frente ao que ele chamou “as pequenas ortodoxias malcheirosas em guerra constante por nossas almas”.
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Pedagogia dos fatos
Em Tempos Difíceis, os portadores das doutrinas são o senhor Gradgrind e o senhor Bounderby. O primeiro é um professor cuja filosofia pedagógica é exposta em uma das melhores formas de começar um romance já escritas:
“O que eu quero são fatos. Ensine a esses garotos e garotas nada mais do que fatos. Só se necessita de fatos na vida. Não plante nada mais e arranque as raízes de qualquer outra coisa. As mentes dos animais racionais só podem se formar a partir de fatos: nada além disso lhes será útil. Este é o princípio com que educo os meus próprios filhos e é o princípio com que educo essas crianças. Limite-se aos fatos, senhor!”
Até o final do romance, Gradgrind aprenderá que os fatos são insuficientes para modelar a conduta humana, algo que poderia concluir examinando um pouco a si mesmo, ou pensando sobre a natureza dos juízos morais e estéticos. No entanto, não se pode dizer que Gradgrind seja uma caricatura, uma personagem tão exagerada que nunca poderia ter existido: episódio após episódio, Tempos Difíceis traça um paralelo com a educação de John Stuart Mill, o filósofo e economista defensor do utilitarismo, tal como conta ele próprio em sua Autobiografia, publicada dezenove anos depois do romance. Mais ainda, “as mentes dos animais racionais” é uma frase que captura por completo o espírito de alguns textos cientificistas muito mais recentes acerca da condição humana.
Verdade abstrata
Em outro trecho, o personagem Josiah Bounderby de Coketown, o dono do moinho, diz ter crescido na pior:
“Minha mãe me deixou aos cuidados de minha avó, que, até onde vai minha memória, era a anciã mais má, a pior velha que já viveu. Se por algum motivo eu chegava a ter um par de sapatos, ela os tomava de mim e os vendia para comprar álcool… meu berço era uma velha caixa de ovos. Assim que fiquei grande o suficiente para fugir, eu o fiz, é claro. Depois me converti em um jovem vagabundo e, em vez de ter uma velha me maltratando e me deixando morrer de fome, pessoas de todas as idades me machucaram e me deixaram passar necessidade.”
Isso acaba por se mostrar falso: seus pais fizeram muitos sacrifícios por ele. No entanto, a mentira esconde uma posição reacionária frente às demandas dos trabalhadores, que pedem um salário mais alto; a mais leve regulamentação do trabalho infantil vai levar os empregadores à falência e obrigá-los a abandonar suas fábricas; a fumaça dos moinhos não pode ser diminuída e, na verdade, é boa para os pulmões; qualquer tipo de ação coletiva direta é o primeiro passo para uma revolução violenta; qualquer tipo de caridade estimula a pobreza.
Uma vez mais, a descrição não chega a ser caricatural. Durante a primeira Grande Fome Irlandesa [1845-1849], liberais como Charles Trevelyan — então parte da esquerda no espectro político — alegavam que, de qualquer forma, aliviar a fome era fomentar os mesmos hábitos e práticas, para não dizer a existência, da mesma população que eles acreditavam ser responsável pelo começo da fome. Uma verdade abstrata — assim viam sua ideologia — era mais importante do que qualquer consideração humanitária.
Em meio ao impacto da crise econômica atual, aumentam as estridências produzidas em campos opostos por pessoas que emitem diagnósticos e curas. A mesma página financeira de um jornal pode conter artigos que proponham soluções diametralmente opostas, cujo único elemento em comum é a certeza com a qual se apresentam. Cada uma tem um único princípio fundamental, seja “gradgrindiano” ou não: a suposta chave para a felicidade é a prosperidade, o crescimento econômico. Não obstante, agora, mais do que nunca, é necessário suprimir nossa tendência inerente a buscar resposta para todas as perguntas. Ler Dickens pode ajudar-nos a fazê-lo.
Tradução por Henrique Mendes
* Texto publicado originalmente na revista literária colombiana El Malpensante
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