Era uma vez um mito. O mito do Ouro de Moscou e da onipotência da KGB. Na América Latina, por mais de trinta anos, a sombra dos financiamentos e da presença soviética serviu de explicação para tudo: manifestações estudantis, greves operárias, ocupações de terra, inúmeras guerrilhas tentadas e malogradas. “Atentados contra a ordem estabelecida” — repetiam indignados generais e banqueiros, enquanto preparavam um novo golpe para salvar este ou aquele país da “ameaça comunista”. Este mito também desmoronou, junto a todo o resto, naquele dia frio e cinzento de fim de dezembro de 1991, quando, pela última vez, a bandeira vermelha foi arriada do Kremlin e lá voltou a esvoaçar a antiga águia imperial russa.
Passaram-se cinco anos. Pelas ruas de Moscou ainda circulam ônibus caindo aos pedaos e velhos Ladas cheios de ferrugem, mas também BMWs e Mercedes blindados, novos em folha, propriedades dos “novos russos”, os que enriqueceram com privatizações, drogas, política. Nas esquinas, barracas improvisadas onde cada um vende o que der: frutas, fitas pirateadas, vodca contrabandeada, si próprios.
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Che Guevara e Nicolai Leonov (de chapéu), em Moscou, em 1964
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Nunca tome táxi — avisou um amigo moscovita —, estão todos nas mãos da máfia: tendo sorte só vai ser roubado, mas pode ser pior. O metrô, por enquanto, ainda funciona, embora o ar condicionado esteja pifado faz tempo, e ninguém tenha se preocupado em consertá-lo.
Da estação mais próxima, são cinco minutos a pé até um moderno edifício de tijolos aparentes, próximo à praça Puchkin, no coração da capital russa. O mito, quando abre a porta, tem rosto e aspecto enxutos. Não aparenta os seus 68 anos, tem cabelos loiros que ainda teimam em não encanecer. Abre caminho pela casa, um apartamento bem cuidado de uns 80 metros quadrados, até uma pequena sala de estar. Sofá, poltronas, uma estante repleta de livros, pequenas lembranças de viagens pelo mundo. Em um canto, único luxo à vista, um grande aparelho de televisão japonês. “Usted desea un café?”, pergunta, num espanhol impecável, o general Nicolai Sierguéivitch Leonov. “Os tempos são duros, mas nós russos ainda somos bons anfitriões”, sorri.
Kólia, como o chamam seus amigos, é o homem que por anos dirigiu a seção latino-americana da KGB. As etapas seguintes de sua carreira foram a chefia do Departamento de Análise e a do Primeiro Diretório Central, encarregado de todas as operações de intelligence no hemisfério ocidental, Estados Unidos inclusive. Leonov — de fato um dos dirigentes mais importantes da espionagem soviética das últimas décadas — assinou a sua carta de demissão da KGB em 22 de agosto de 1991. Naquele mesmo dia ele completava 63 anos, e fracassava a tentativa de golpe dos comunistas “linha dura” contra Gorbachev e sua perestroika. “A farsa tinha acabado para sempre”, diz agora o general aposentado. “Estava claro que a perestroika não era um método de reconstrução do país, que os comunistas não eram comunistas e os chamados democratas, em absoluto, não eram democratas”.
Foram 33 anos de operações secretas. Como quase sempre acontece, a longa jornada de Leonov no mundo da espionagem começou por acaso. Filho de camponeses, foi criado num pequeno povoado agrícola, Almazovo, 300 quilômetros ao sul de Moscou, até que, quando ele tinha dez anos, a sua família se mudou para a capital. Tempos de guerra, fome, e frio. Em 1947, conseguiu entrar no Instituto de Relações Internacionais, uma das mais prestigiosas universidades do país, onde se formou a maioria dos diplomatas soviéticos. Como especialização, Leonov escolheu espanhol. “Fui muito influenciado pela épica da guerra civil na Espanha”, conta. “Além disso, o espanhol é um idioma maravilhoso: como escreveu o poeta Lomonosov, a língua com que é possível falar com deus”.
Não guarda boas lembranças daqueles anos, Leonov. “Era um período horrível, de culto à personalidade de Stalin, de dogmatismo, de contínua caça às bruxas. Sabemos agora que pelo menos 800 mil pessoas foram fuziladas durante os anos de Stalin”, lembra. Devido a uma pequena desavença política, Leonov não foi admitido aos cursos de pós-graduação, e começou a trabalhar numa editora, onde era encarregado de checar as traduções em espanhol de textos russos. “Um emprego aborrecido, sem perspectiva alguma”, conta. Quando a editora teve que apontar os nomes de alguns tradutores a ser enviados ao exterior para aperfeiçoar seus conhecimentos, Leonov foi um dos escolhidos. Destinação, México. Uma viagem que mudaria sua vida para sempre.
Kólia deixou a União Soviética em abril de 1953, um mês depois da morte de Stalin. O ditador georgiano tinha medo de avião, e por isso a praxe era que todos os funcionários estatais viajassem por terra. De trem, Leonov foi de Moscou até Gênova, no norte da Itália, onde embarcou no Andrea Gritti, um transatlântico direto à América Latina com mais de duzentos emigrantes italianos a bordo. Entre os passageiros, havia também três jovens latino-americanos. Um deles era um cubano magrela, chamado Raúl Castro, o irmão menor de Fidel. “Nos tornamos amigos”, conta Leonov. “Ensinei-lhe a jogar xadrez, e passamos horas conversando.” Raúl desembarcou do navio em Cuba; poucas semanas depois foi preso pela polícia, por seu papel na preparação do ataque ao quartel Moncada, em Santiago de Cuba, em 26 de julho de 1953.
Na Universidade da Cidade do México, Leonov cursou espanhol e filosofia por dois anos; concluídos os estudos, começou a trabalhar na embaixada. Num dia de verão de 1956, numa rua central da capital mexicana, encontrou casualmente seu amigo cubano, Raúl. Os dois se abraçaram e, nos dias seguintes, Leonov foi apresentado aos outros integrantes do grupo, entre os quais Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, que estavam preparando a expedição do Granma, o barco que levou algumas dezenas de guerrilheiros a Cuba, dando início ao vitorioso levante contra a ditadura de Batista.
Leonov, nos anos seguintes, também tornou-se amigo de Fidel, a ponto de ser o tutor de seu filho mais velho quando este foi estudar na Universidade de Moscou. Mas a lembrança mais forte é a de Che Guevara. “Era um homem que abria a sua alma desde o primeiro momento”, lembra o general, tomando um gole de café e abrindo um sorriso. “Eu fui visitar o Raúl, que estava com febre. Ao lado dele estava o Che, que era médico, mas o que fazia era contar piadas, anedotas, histórias”… Simpatia à primeira vista. E admiração. “Raúl e Che falavam da política como um caminho que pode levar à morte ou à imortalidade, com total despreocupação para com a própria sorte. Era a primeira vez na minha vida que encontrava alguém que acreditava tão profundamente no sentido do que estava fazendo”, lembra.
Leonov deu a Guevara o seu cartão da embaixada soviética, e tornaram a se encontrar várias vezes. “Ele me pedia livros emprestados, principalmente ensaios e romances sobre a Grande Guerra Patriótica [o nome pelo qual ficou conhecida a Segunda Guerra Mundial para os povos da União Soviética]”, recorda. “Não contei nada sobre esses encontros ao embaixador, achava que fosse um assunto pessoal. O problema foi que, algum tempo depois, todo o grupo foi preso por conspiração e, entre os papéis de Guevara, a polícia encontrou o meu cartão. Os jornais mexicanos começaram a escrever que eu era um espião, um conspirador. E o embaixador mandou-me de volta para Moscou às pressas, escrevendo no meu dossiê que eu não tinha aptidão alguma para o trabalho diplomático, que eu mantinha contato com elementos ‘suspeitos’… De fato, naquela época nem o governo soviético nem a KGB sabiam nada da guerrilha cubana.”
O general Nicolai Leonov em seu apartamento durante entrevista à revista Atenção!
Leonov voltou para seu antigo emprego na editora. Enquanto isso, em Cuba, os guerrilheiros estavam se aproximando da capital. E na primavera de 1958, alguém lembrou de Leonov. “Um funcionário veio falar comigo, propondo que eu trabalhasse para a KGB. Fiquei a noite toda acordado, refletindo. Eram os anos de Kruchev, no país as coisas estavam melhorando, a URSS estava na dianteira da corrida espacial. Para mim, o sentimento de ser parte integrante daquele processo era muito forte, e a KGB não era mais a dos tempos de Stalin”, explica. “Na manhã seguinte fui à Lubyanka, a sede central, e assinei os papéis.”
Desde então a sua carreira sempre esteve, de uma forma ou de outra, ligada à América Latina. Devido à amizade com Raúl Castro e ao domínio do espanhol, no início de 1960 Leonov foi escolhido para acompanhar a Cuba a primeira delegação soviética de alto nível, encabeçada por Anastas Mikoyan, o terceiro homem mais importante na hierarquia do Partido Comunista soviético. “Os nossos dirigentes convenceram-se de que a revolução cubana era de verdade, e logo em seguida no Ministério das Relações Exteriores e na KGB formou-se, pela primeira vez, uma seção latino-americana.”
Quando Che Guevara foi à União Soviética e à Coreia do Norte, em novembro do mesmo ano, pediu que o seu tradutor fosse Leonov. “Na época, ele se ocupava principalmente de questões econômicas e comerciais, queria vender açúcar, ganhar o mercado russo e o de outros países socialistas. O Che tinha certeza de que o exemplo de nosso país serviria positivamente para Cuba”, lembra com afeto.
No verão de 1961, o então tenente da KGB Leonov voltou ao México. Seu cargo inicial de cobertura foi de terceiro secretário da embaixada. Devido à sua proximidade com os Estados Unidos, a Cidade do México foi, durante décadas, o centro principal de espionagem da América Latina. Para Kólia foram sete anos de trabalho, acumulando experiência e contatos. Até os mais inusitados. “Certo dia, no outono de 1963, veio à embaixada um jovem norte-americano. Tremia todo, tinha o rosto pálido, suava. Disse que vivera por vários anos na União Soviética e queria voltar para lá, porque queriam matá-lo: estava evidentemente desequilibrado. O rapaz se chamava Lee Oswald”, conta Leonov. “Quando, algumas semanas depois, o presidente Kennedy foi assassinado em Dallas e Oswald foi acusado de ser o responsável, tive certeza de que ele fora usado como bode expiatório: eu sou um bom atirador, e sei que uma pessoa em suas condições nunca poderia ter acertado um tiro tão difícil”.
No final de 1968, Leonov voltou para Moscou, como chefe da seção latino-americana da KGB. Aos 40 anos, Kólia já era um importante dirigente da espionagem soviética, e começou a viajar, utilizando a cobertura de enviado especial da agência de notícias Novosti. “A primeira missão foi no Peru — onde, naquela época, nem embaixada tínhamos — para entrar em contato com os militares de esquerda do governo de Velasco Alvarado”, conta. No Brasil também havia generais que mantinham contatos com a KGB, Nicolai Siérgueivitch? “Sim, claro, antes e depois do golpe de 1964. Mas nada de nomes, naturalmente: este era o acordo então, e assim tem que ser ainda hoje”. É da velha escola, o general Leonov. “Jamais revelarei algum segredo. Muitos integrantes da nossa antiga rede de informação continuam em seus lugares, muitas de nossas técnicas nunca foram desvendadas”, explica. “Lutei contra os americanos e a CIA durante toda a minha vida, certamente não vai ser agora que vou ajudá-los”.
Admirado e protegido pelo novo chefe da KGB, Iúri Andropov, que no começo da década de 1980 chegaria a ser o sucessor de Leonid Brejniev à frente do Kremlin, Leonov queimou mais etapas. Em 1971, Kólia deixou a seção latino-americana e começou a trabalhar na Divisão de Análise, da qual foi nomeado diretor dois anos mais tarde, quando, a KGB barrou o pedido de ajuda econômica que o governo chileno havia apresentado à União Soviética.
“O governo de Unidad Popular pediu trinta milhões de dólares e uma certa quantia de armas. Após longas discussões com Andropov, decidimos dar parecer negativo”, revela Leonov. “Foi duro tomar esta decisão. Mas, de um ponto de vista racional, estávamos certos. Naquele momento, para nós da Inteligência, já estava mais do que claro que o governo de Salvador Allende iria cair. Teriam sido necessários pelo menos 500 milhões de dólares, e os russos não podiam dar tanto dinheiro. Então, decidimos enviar só um carregamento de armas. Quando o golpe aconteceu, o carregamento estava a caminho. Foi descarregado no Peru, e vendido àquele governo”.
A KGB praticamente cessou suas atividades no Chile. “Nós perdemos o interesse no país”, conta o general. Uma postura, esta, que se estendia a praticamente todos os países latino-americanos sob o punho de ferro da ditadura. “Não considerávamos os governos militares em si como inimigos”, explica. “No Brasil, por exemplo, tínhamos uma rede ampla, com agentes em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, mas para nós o país era unicamente um campo geográfico no qual trabalhávamos contra os Estados Unidos, tentando descobrir seus segredos políticos e tecnológicos.”
Nicolai Siérgueivitch está dizendo que a KGB não se metia nas questões internas dos países latino-americanos, que nunca ajudou os movimentos guerrilheiros? É difícil acreditar nisso… O general Leonov serve mais um cafezinho, enquanto parece escolher as palavras. “Aos grupos guerrilheiros brasileiros nunca demos um centavo sequer: se alguém os ajudou, certamente não fomos nós. Como outros líderes comunistas, Luís Carlos Prestes pôde ficar em Moscou, trocar ideias, educar aqui seus filhos. E, mais ou menos, foi só isso”, responde com um sorriso amargo no rosto. “A questão principal é que os dirigentes soviéticos sempre consideraram a América Latina uma região de terceiro escalão: a mais distante, a menos conhecida, a menos viável para se realizar algo de grandioso. Até durante o governo Kruchev, a última fase expansiva da política exterior soviética, todas as viagens ficaram limitadas às zonas asiáticas e africanas: ele nunca foi à América Latina. Foi o mesmo com Brejniev; e Gorbachev, por fim, só foi a Cuba, em 1989, para anunciar a Castro a diminuição da ajuda soviética à ilha”, explica Leonov. “Toda a atividade na América Latina limitava-se à ajuda econômica entregue aos partidos comunistas e de esquerda, aos partidos ‘irmãos’, como então se dizia”. O mítico Ouro de Moscou.
As cifras já não são secretas. De acordo com os documentos da KGB, que se tornaram públicos após o fim da União Soviética, o montante da “ajuda internacionalista” era, no conjunto, próximo aos 20 milhões de dólares, repartidos entre uns cinquenta partidos comunistas. “Para a América Latina eram somas que oscilavam entre 20, 30 ou até 60 mil dólares ao ano. A quantia nunca ultrapassava os 100 mil dólares, quando aparecia alguma emergência”, revela Leonov. “Os comunistas, infelizmente, falavam muito de solidariedade, mas na prática… O que mais recebia dinheiro, um ou dois milhões de dólares ao ano, era o Partido Comunista dos EUA, o menor do hemisfério, com talvez metade de seus filiados composta por membros do FBI.” No Brasil, segundo as revelações do chefe da rede local da KGB na década de 1980, o coronel Vladimir Noikov, a última entrega de dinheiro ao PCB foi em 1989, por ocasião da candidatura de Roberto Freire à Presidência da República.
A escolha soviética de não se empenhar muito na América Latina acentuou-se, segundo Leonov, com a chegada de Brejniev ao poder, em 1964. “Os líderes soviéticos não viam com bons olhos o apoio que Cuba oferecia aos movimentos guerrilheiros latino-americanos, não aprovavam as operações de Che Guevara. Em 1967, nossa embaixada em Havana recomendou ao governo e à direção do Comitê Central a suspensão da ajuda militar a Cuba. Chegou-se ao ponto de deixar de enviar para lá algumas peças fundamentais, como por exemplo pneus para aviões de combate. Nossa borracha não era de grande qualidade, os pneus só aguentavam 30 ou 40 aterrissagens, e como resultado, os MIGs cubanos tiveram que ficar em terra por várias semanas.”
Che Guevara morreu em 1967, encabeçando uma fracassada expedição guerrilheira na Bolívia. Mas as relações entre Moscou e Havana só voltaram realmente a melhorar depois da entrada dos tanques soviéticos na Tchecoslováquia, em 1968: o Partido Comunista Cubano foi um dos poucos que, no mundo todo, apoiaram o esmagamento da Primavera de Praga. “Mas Fidel Castro sempre foi, e espero que continue sendo, uma personalidade absolutamente independente”, faz questão de remarcar Leonov. De fato, até o fim da década de 1980, Cuba continuou auxiliando vários movimentos guerrilheiros, especialmente na América Central. “Os cubanos planejavam e executavam suas próprias operações, não estavam às ordens da KGB. Nós apenas fornecemos a eles o know-how necessário, como por exemplo a preparação de passaportes falsos e a montagem de redes de inteligência”, diz Leonov.
As atividades da KGB na América Latina mantiveram um perfil baixo até o fim. “Quando aconteceu o caso cubano, a União Soviética deu-se conta da enorme envergadura da ajuda que até um país relativamente pequeno precisa. Imagine o que teria acontecido se, em lugar de Cuba, se tratasse do Brasil ou da Argentina: teria sido simplesmente impossível mantê-los.” Por outro lado, um papel mais atuante da KGB na região provavelmente não teria tido grandes consequências. “Os serviços de inteligência podem até dar golpes de Estado, isso ajuda a dar um certo impulso ao movimento, na direção em que as coisas já estão se movendo, não mais do que isso”, avisa Leonov. “O desenvolvimento dos países realiza-se através de seus fatores políticos básicos. Estes não podem ser mudados artificialmente, enviando um núcleo revolucionário. O caso do Che Guevara é muito eloquente: ele lutou heroicamente e, no entanto, esta faísca não produziu nada, nem na Bolívia ou em qualquer outro lugar.”
Em julho de 1979, os guerrilheiros sandinistas tomaram Manágua: a segunda e última revolução vitoriosa da história latino-americana. “Naquele período havia levantes guerrilheiros em toda a América Central; em outras circunstâncias, aquela região teria se tornado o fulcro da nossa política exterior. Mas os tempos haviam mudado: a União Soviética já havia sido arrastada, bastante a contragosto, a intervir em Angola e no Afeganistão, a situação na Polônia estava se precipitando…”, lembra Leonov. “Eu cheguei à Nicarágua três meses depois. O movimento sandinista havia se formado e desenvolvido sem nossa participação. Então, minha tarefa era a de recolher informações de primeira mão para traçar nossa política em relação ao país e à região. Ainda assim, só pude ficar por 15 dias: não havia dinheiro suficiente nem para custear uma permanência mais longa.” O general Leonov tem belas lembranças daqueles dias em Manágua. “As revoluções tornam as pessoas mais bonitas, gentis, generosas. Todos têm fé que dali para a frente as coisas vão dar certo, que a injustiça acabou para sempre, que o povo será independente e feliz”, sorri o general. “Mas a economia da Nicarágua fora arruinada pela guerra civil, e os Estados Unidos impuseram logo um embargo. A única esperança da revolução teria sido receber ajuda do bloco socialista, mas as tetas da grande vaca soviética já não tinham mais leite. Realmente, ajudamos muito pouco a Nicarágua: um pouco de petróleo, alguns carregamentos de armas. Mas nada de helicópteros, por exemplo, que era o que os sandinistas precisavam de verdade para combater os contras.”
Depois, veio o resto. A crise cada vez mais grave, os efêmeros governos de Andropov e Chernenko, a eleição de Mikhail Gorbatchev para secretário-geral do PCUS em 1985, a perestroika, o fim da União Soviética. Um declínio que Leonov foi acompanhando passo a passo. “Em 1983 fui nomeado chefe das operações da KGB no hemisfério ocidental”, conta. “Trabalhávamos bem, nós da KGB, sempre fornecemos informações de primeira ao nosso governo. E na guerra subterrânea contra a CIA, posso dizer que tivemos perdas menores do que eles. Mas isso tudo não serviu, devido à mediocridade dos nossos líderes.”
O que sobrou para Kólia, daquela vida, são muitas recordações e amigos latino-americanos. Gabriel Garcia Márquez é um deles. A primeira vez que o escritor colombiano foi a Moscou, levava no bolso um bilhete para Leonov assinado por Raúl Castro: “Tratalo como si fuera yo.” Além disso, só lhe restou o apartamento, onde vive com sua segunda mulher, e uma aposentadoria que não chega a cinquenta dólares por mês. Leonov ainda dá aulas no Instituto de Relações Internacionais, às vezes recebe algum estudante. “Sabe uma coisa que realmente me deixa triste?”, diz. “Aqui na Rússia, os jovens não fazem ideia de quem era Che Guevara”. Passa muito tempo escrevendo, o general. Um velho hábito: quando ainda trabalhava na KGB, publicou vários ensaios sobre assuntos latino-americanos, alguns deles traduzidos no exterior, com temas que vão da história da Argentina no século XIX à biografia do líder nacionalista panamenho Omar Torrijos. Seu último livro, de 1995, é Os anos duros, uma fascinante autobiografia que se lê como um romance. Mas em trezentas páginas, fiel a seus princípios, Leonov não fornece informações que poderiam causar embaraço aos companheiros de outrora.
Por isso, não é Leonov quem revela a história de uma das grandes operações organizadas por ele, e que Atenção! tem agora condições de reconstruir: a entrega clandestina das armas utilizadas pelos guerrilheiros de El Salvador na primeira ofensiva da FMLN (Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional), em janeiro de 1981.
Leonov tinha contas a acertar com os militares centro-americanos desde que, em setembro de 1970, todos os integrantes do bureau político do Partido Comunista da Guatemala foram presos durante uma reunião. Vários deles eram amigos pessoais de Kólia, que tentou organizar uma operação para resgatá-los. Mas não deu tempo: foram todos mortos depois de serem torturados por três dias com um maçarico. Dez anos depois, no começo de 1980, quando ficou claro que a guerra civil estava prestes a explodir em El Salvador, Leonov fez o que pôde para ajudar a guerrilha. “Kólia era cético sobre as possibilidades de vitória: costumava dizer que, depois da Nicarágua, uma segunda revolução seria bem mais difícil”, revela agora um velho amigo que, como Leonov, trabalhou por anos na América Latina. “Mas ele também estava convencido de que os salvadorenhos seriam um osso duro de roer para os EUA”.
Naquela época, a FMLN só dispunha de uma centena de fuzis: antes de mais nada, os guerrilheiros precisavam de armas. A Nicarágua não podia ajudar; a jovem revolução tinha poucos recursos e metralhadoras com números de série reconhecíveis: corria-se o risco de provocar uma intervenção norte-americana. Já Cuba estava disposta a fornecer armas, mas só depois das eleições nos EUA, em novembro, para não prejudicar as chances do candidato democrata Jimmy Carter. Mais uma vez, a União Soviética não tinha intenção de atender os pedidos de ajuda dos guerrilheiros. Mas no Vietnã havia montes de armas, abandonadas pelos norte-americanos durante a guerra que terminara em 1975. E Leonov, que, como chefe da Divisão de Análise tinha acesso direto a Brejniev, conseguiu convencer o velho líder a autorizar o transporte das armas capturadas até El Salvador. Um navio soviético foi enviado ao Vietnã, onde carregou mais de dez mil fuzis metralhadores M16, e zarpou rumo à Cuba. A operação foi concluída em dezembro de 1980; poucos dias depois, a FMLN tomou a ofensiva. A guerra civil só terminou onze anos mais tarde, em janeiro de 1992.
“Se as armas tivessem chegado seis meses antes, a guerrilha poderia ter tomado o poder”, ponderou certa vez um comandante da FMLN. É verdade, Nicolai Sierguéivitch? O general evita responder diretamente. “O meu ponto de vista era simples”, diz. “Se os EUA intervinham no Afeganistão, fornecendo armamentos de ultima geração aos mujaidins que lutavam contra o exercito soviético, porque nós não deveríamos ajudar os guerrilheiros salvadorenhos? Mas eu fracassei em todas as tentativas para conseguir armas modernas para a FMLN, principalmente os mísseis terra-ar SAM 7, que teriam sido muito valiosos para eles: os meus pedidos nunca foram atendidos pelo Comitê Central.”
No bule não há mais café. Uma última pergunta, general Leonov. Valeu a pena?
Desta vez, o velho espião não hesita. “Sim, valeu a pena tentar. E se surgir outra geração e outros tratarem de buscar um caminho melhor, e se tiverem mais êxito do que nós, eu creio que os mortos serão vingados e seus esforços justificados”, responde com a segurança de quem deve ter se repetido isso inúmeras vezes. “Pensar que o capitalismo seja o ápice do desenvolvimento da humanidade é uma torpeza intelectual. Temos que continuar buscando a forma de viver de maneira mais livre e mais fraterna, abrindo um caminho para o desenvolvimento das capacidades intelectuais e morais das pessoas. Quanto a nós, fizemos, sim, uma tentativa séria e grande de construir uma sociedade justa.”
É noite, agora, em Moscou. Começou a nevar. Na esquina do metrô, uma velha pede esmola para comprar uma garrafa de vodca.
* Texto publicado originalmente na revista Atenção!, que circulou no Brasil de 1995 a 1997
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