Processo eleitoral: parte da população tenta se organizar para pautar o debate em torno de mudanças políticas
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Passadas as eleições municipais de 2012, partidos e analistas políticos começam a especular sobre as perspectivas que os resultados abrem para o próximo pleito, em 2014. O momento de se discutir uma reforma política parece propício, ainda mais se for levado em conta o desejo de renovação. Entre as 85 maiores cidades, aquelas com mais de 200 mil eleitores, a oposição venceu em 50 municípios, representando um aumento de 56% em relação a 2008. Dos oito prefeitos de capitais que disputaram a reeleição agora, quatro saíram vencedores. Em 2008, o mesmo aconteceu com 19 dos 20 prefeitos de capitais que tentaram a reeleição.
Entretanto, a renovação de nomes não implica necessariamente mudança nas práticas políticas. E aí entra em cena a discussão sobre uma transformação ampla, encabeçada pelo relatório do deputado Henrique Fontana (PT-RS), relator da Comissão Especial da Reforma Política. A proposta que tem mais visibilidade é o financiamento público exclusivo de campanhas. O sistema prevê a criação de um Fundo de Financiamento das Campanhas Eleitorais, que distribuirá recursos aos candidatos conforme cada cargo em disputa, em cada estado ou município. Depois, “os recursos são distribuídos entre os partidos, de acordo com o número de votos obtidos nas eleições anteriores, uma parte de forma igualitária, e outra de acordo com a votação recebida nas respectivas circunscrições”, diz Fontana.
“Para se eleger um deputado federal em São Paulo, dificilmente se consegue com menos de R$ 7 milhões. Isso deixa a pessoa completamente vulnerável ao setor mais financeirizado da economia e do poder brasileiro”, acredita o filósofo Vladimir Safatle. O objetivo da proposta é que as eleições se tornem não somente uma disputa menos desequilibrada, mas também que possa ser fiscalizada com maior rigor e de forma mais prática o uso do chamado “caixa 2”, as doações ilegais feitas por empresas a partidos e candidatos.
Para o professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Jairo Nicolau, o novo sistema não seria capaz de tornar menos desigual o embate eleitoral. “O grande problema não é o desequilíbrio das campanhas, até porque no Brasil o horário eleitoral é bastante generoso com as pequenas legendas”, analisa. “Nosso problema não é os partidos não terem recursos, mas o fato de os recursos virem basicamente de empresas, não havendo transparência nessa doação feita aos candidatos.”
Para Nicolau, a corrupção eleitoral também não sofreria grandes abalos com a proposta. “Qual a garantia de que não vai existir corrupção eleitoral, de que o candidato, ao receber 100 mil reais, diga que gastou 50 mil com panfletos, 25 mil com outra coisa e embolse a diferença? Quem vai fiscalizar as gráficas, os fornecedores?”, questiona.
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Sistemas eleitorais
Durante os trabalhos da Comissão Especial da Reforma Política, discutiu-se a adoção de outros sistemas eleitorais, como o distrital puro — no qual a circunscrição é o Estado ou partes do seu território —, combinado com o sistema proporcional de lista fechada; e o distrital misto, com metade das vagas preenchidas pela votação em nomes e metade pelo sistema proporcional de lista fechada. Mas a proposta que consta no relatório é a do sistema proporcional de lista flexível, adotado por países como Bélgica, Dinamarca, Holanda e Suécia, entre outros. Neste sistema, os partidos apresentam uma lista hierarquizada de candidatos às eleições proporcionais, e o eleitor tem a possibilidade de referendar o ordenamento dos nomes votando na legenda partidária ou pode optar pelo voto em um candidato de sua preferência. No segundo caso, o eleitor poderia fazer com que seu candidato subisse posições na lista, facilitando sua eleição, por isso o mecanismo é tido como “flexível”.
Mudaria também o cálculo do quociente eleitoral, que tem sido alvo de severas críticas por não ser um mecanismo de pleno conhecimento do eleitor comum, aumentando ainda mais a distância entre representante e representado. As coligações nas eleições proporcionais tornam ainda mais confuso o cálculo, e muitas vezes o eleitor ajuda a eleger candidatos que têm propostas quase diametralmente opostas às daquele em quem ele votou.
A proposta de reforma política é que seja adotado o sistema das maiores médias (Fórmula d’Hondt) para a distribuição de cadeiras, método utilizado em países como Portugal, e que evitaria a cláusula de barreira para os partidos que não atingirem o quociente eleitoral. Já em relação às coligações, cria-se a figura das federações partidárias, nas quais dois ou mais partidos se unem como uma única agremiação, mas cujos fins vão além dos objetivos eleitorais.
Mobilização necessária
No entanto, para se alterar a relação que os cidadãos têm com a vida política, é preciso ir além das mudanças puramente eleitorais. “Uma reforma política digna deste nome deve entender que democracia não significa simplesmente a constituição de coeficientes eleitorais em momentos de eleição, mas significa uma abertura cada vez maior para a participação popular. Nada foi feito de maneira significativa e substancial para que a política deixe de ser uma política de bastidores e passe a ser uma política de grande mobilização”, aponta Safatle. “O segundo ponto é escapar do presidencialismo de coalizão, um dos piores males da política brasileira. Em todos os níveis, municipal, estadual e federal, é praticamente impossível para um partido só ter a maioria no Legislativo.”
Ainda que o tema da reforma política tenha voltado à agenda do Congresso, quais são as chances reais de haver mudanças num período próximo? “Não há consenso entre os partidos e elas virão por meio de um mecanismo processual, é necessário destacar alguns pontos da reforma e tentar investir neles”, crê Aldo Fornazieri, diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política.
Contudo, assim como ocorreu no trajeto para a implementação da Lei da Ficha Limpa, parte da sociedade civil tenta se organizar para pautar esse debate em torno de uma mudança mais profunda, articulando-se em torno da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político. Ela organizou um roteiro e definiu propostas estruturadas em cinco grandes eixos: fortalecimento da democracia direta e da participativa, aperfeiçoamento da democracia representativa, democratização da comunicação e transparência do poder Judiciário. “A única questão do relatório do deputado Henrique Fontana que vai além da reforma eleitoral é o que ele propõe a respeito da coleta de assinaturas para iniciativa popular via internet”, aponta José Moroni, um dos representantes da Plataforma.
De acordo com o professor de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Juarez Guimarães, um obstáculo ao processo de formação republicana no Brasil é o “domínio privatista e oligopolista da mídia que desconecta os processos de formação da cultura cidadã e da opinião pública”. O cientista político explica: “Tratam-se de fenômenos mutuamente configurados: grave redução do pluralismo político e cultural; supervocalização de alguns interesses privados e subvocalização de vastos setores sociais; deformação sistemática da objetividade da notícia e, inclusive, de uma legitimação da calúnia como instrumento de ação política; e partidarização indevida ou não revelada de canais e de meios de comunicação que deveriam ser públicos.”
Colaborou Felipe Rousselet
* Texto publicado originalmente na revista Fórum
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