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O indiano viajante Puneet pedindo carona no Brasil: “Aprendi a ser mais útil na estrada do que durante os anos passados nas melhores escolas de engenharia do mundo
O vulto de Puneet surge, mochila às costas, a rasgar o verde da colina e o calor de agosto. O viajante é acolhido por um sonoro aplauso. A mesma recepção espera os 200 peregrinos que chegam ao Hitchgathering, encontro de “caroneiros” perto das montanhas Tatra, na Eslováquia. “Viajar assim ensina o que é realmente necessário para viver e ser feliz”, acredita Puneet.
Como muitos por lá, ele viaja sem gastar dinheiro em transporte ou alojamento. Desde 2008 os “caroneiros” europeus se reúnem todos os anos em um acampamento. Em 2014, uma semana antes da Copa do Mundo, aconteceu no Brasil o primeiro encontro do gênero na América do Sul. “Vamos nos encontrar em alguma praia entre São Paulo e Rio”, propunham no Facebook os organizadores do The Hitchhikers’ Worldcup Gathering.
“Sentimos que pertencemos a uma comunidade”, afirma Anja, que aproveita para se informar sobre o seu próximo destino, a Índia. “Aqui nos inspiramos pelas histórias e experiências dos outros e nos perguntamos sobre o ‘estilo de vida normal’: ir às compras, ter um emprego, um patrão, contas para pagar.” A jovem polaca senta-se perto do rio, depois de participar de uma oficina de malabarismo. “Na ‘vida normal’, os indivíduos são possessivos. Quando se vive dessa forma, não se está preso a nada. Sobrevivemos dos desperdícios da sociedade, aprendemos a partilhar e a cuidar.”
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Desapego
“Quando você viaja, está em constante mudança”, concorda Lara. “O que achava normal era simplesmente aquilo que a tua família e amigos faziam.” Lara chegou há uns meses da Argentina, onde durante cinco anos ensinou espanhol na Universidade de Buenos Aires. “A primeira preocupação era como arranjar dinheiro para viajar. Agora é como não utilizar dinheiro.” A ex-professora está na estrada faz 15 meses. “Adoro a incerteza. Nunca sei quando pegarei a próxima carona, para onde ela te levará, onde vou dormir. Você aprende a apreciar cada aqui e agora, a apreciar a beleza do mundo e a cuidar dele, política e ambientalmente.”
“Andar de carona é uma técnica de meditação”, filosofa Puneet. Na sua página no Facebook (“Puneet – The Colorful Hitchhiker”), ele partilha as aventuras de mais de 100 mil quilômetros pelo mundo, desde quando, há cinco anos, deixou o trabalho em laboratórios de inteligência artificial. “Viajo para me livrar de todas as minhas crenças. Elas nos dão um quadro de referências, uma segurança. E eu digo: atiremos tudo isso fora. Há uma imensa beleza e alegria em estar perdido.”
Cinco meses mais tarde, 3 mil quilômetros mais a oeste: em um telhado de Lisboa, reencontram-se vários participantes do Hitchgathering. Mikael, da Finlândia, e Simona, da Lituânia, alugaram um minúsculo apartamento. “Somos um casal viajante: estradas, aventuras e amigos por todo o mundo preenchem a nossa ‘rotina’”, anotam em seu blog, o Wanderlust.lt. Mikael é programador e, ao lado de Puneet e outros voluntários, une-se em uma maratona hacker para desenvolver ferramentas on-line destinadas a “nômades” como eles.
Habilidades
Na internet, os aventureiros concentram-se no BeWelcome.org, uma rede de troca de hospitalidade baseada em democracia e software livre. É uma alternativa ao Couchsurfing, hoje preocupado em ganhar dinheiro. “O Couchsurfing tornou-se uma empresa. Muitos não gostaram que alguém se pusesse a lucrar com a sua vontade de ajudar”, explica Mikael. “É importante criar formas de fugir da esfera do dinheiro, geridas realmente por quem utiliza os serviços.” Já o HitchWiki.org é uma espécie de bíblia on-line da carona: soma 3 mil artigos e um mapa colaborativo com milhares de lugares onde levantar o polegar. “Esses sites são um pouco como eu gostaria de ver o mundo, com confiança e ajuda mútua”, resume Mikael.
Pela janela do apartamento passa um enorme navio de cruzeiro. Ao contrário dos turistas, essa tribo nômade vive de forma simples, de tenda ou rede às costas, sem ter de consumir para se deslocar, alimentar ou divertir. Para o pouco dinheiro necessário, há quem trabalhe no caminho ou quem troque a sua arte por moedas nas ruas das cidades. “Sempre aprendemos novas habilidades e gostamos de retribuir a boa vontade dos outros”, diz Puneet. “Aprendi a ser mais útil na estrada do que durante os anos passados nas melhores escolas de engenharia do mundo.”
Simona é otimista: “Os seres humanos viram-se cada vez mais para uma economia de partilha, para alternativas. Com o desemprego, muitas se cansam da forma tradicional de vida. Muitos simplesmente deixam tudo e partem”. Puneet completa: “Precisamente porque temos esse tamanho desejo de nos libertarmos, é razão suficiente para acreditar que algo como a liberdade total existe”. Ele consulta o Hitchwiki, faz a mochila e despede-se de Lisboa. Amanhã parte de carona. Destino? “A estrada me dirá.”
Texto originalmente publicado no site da revista Carta Capital, periódico semanal de política, economia e cultura.