Richard Misrach
“Micro Orchestra” (2014), Guillermo Galindo
Imagens da fronteira entre os EUA e o México geralmente são desoladoras – uma cerca alta, talvez um pouco de lixo, um guarda ou dois e uma enorme área vazia em qualquer um dos lados. Mas os 3 mil quilômetros de terra e sua barreira multimilionária estão longe de não ter vida.
O fotógrafo Richard Misrach passou os últimos cinco anos fotografando tudo que encontrou na área da fronteira. Coisas deixadas para trás por imigrantes de passagem, como mochilas, calçados, livros, bolas de futebol, carteiras – tudo encontrado em meio à terra árida, sem qualquer identidade. As pessoas que abandonaram estes objetos por lá há muito se foram e ninguém sabe o que aconteceu com elas.
Misrach se juntou ao compositor mexicano Guillermo Galindo para este projeto – que irá culminar numa enorme mostra interativa em 2016 – que está construindo instrumentos musicais funcionais a partir do material encontrado. De cara, uma mochila ou um tênis podem parecer algo completamente banal, mas, juntos, os dois artistas estão tentando dialogar com a humanidade por trás das estatísticas para fazer com que as pessoas percebam que cada calçado perdido na fronteira pertencia a uma pessoa que se perdeu.
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Olá Richard. O que te atrai à fronteira mexicana?
Richard: Eu tenho fotografado desertos norte-americanos há quase 40 anos, e sempre os encarei como um enorme palco. Testes nucleares acontecem em nossos desertos. Estou ciente das questões relacionadas à fronteira há anos, mas sempre foi um assunto tão conhecido que nem me preocupava em abordá-lo. Mas, nesta última década, a crescente militarização da fronteira chamou minha atenção. É uma mudança de paradigmas. Até agora, fotografei quase 3 mil quilômetros da fronteira, do Oceano Pacífico ao Golfo do México, e isso pra mim é um indicador de uma grande mudança nos EUA quanto à nossa soberania nacional. Está tudo ali na paisagem. Eu não sou um jornalista – observo o plano geral e como ele dialoga conosco.
Ao juntar-se com Guillermo Galindo, você cria outra camada de interpretação. Estes objetos encontrados por você são tão efêmeros – lixo em geral, um único sapato – mas parecem poder ganhar uma nova identidade ao renascerem.
Richard: Sim, se você acompanhar o traçado da fronteira irá encontrar “lixo humano” – mochilas, garrafas de água, tênis – mas só é lixo antes de você começar a abri-los e observá-los. Por exemplo, certa vez encontrei uma mochila com cuecas tipo boxer amarelas estampadas com personagens de desenhos animados, perservativos, um grande frasco de colônia, creme dental, uma escova de dentes e uma camiseta de surfista, então percebi que aquele era o retrato de um jovem. Outra mochila que encontrei, talvez a uns 800 km de distância, tinha um batom anexado a um espelho e uma bolsinha com cerca de 70 pesos. Era de uma garotinha. Se você abre esse lixo, de repente você se depara com as pessoas. É algo muito forte.
Então sim, eu trago uma abordagem visual para esses objetos, mas Guillermo tenta encontrar a vida de cada item que lhe apresento. Nos últimos três anos temos trabalhado juntos, e eu lhe levo os objetos já que ele tem alguns problemas com a fronteira. Como sou um cara branco e de olhos azuis, posso ir até lá trabalhar. Se Guillermo vai, as coisas podem ficar bastante desagradáveis.
Richard Misrach
“A Muralha” nas montanhas Jacumba, na Califórnia (2009)
Então você nunca se mete em encrenca?
Richard: Tem sido interessante. Faço isso há tanto tempo que já me acostumei, mas sou um cara branco velho com uma baita câmera e um tripé. Tenho uma presença formal e nada ameaçadora. As pessoas me revistam e eu passo por seus sensores, mas estou em território público, então tudo bem eu estar lá. Assim que me revistam ficam bem amigáveis – alguns até começam a me mostrar suas fotos em seus iPhones. Logo que ficam à vontade comigo ali meio que tomam conta de mim e me sinto bastante seguro porque eles estão lá esperando e observando o tempo todo. Seria bem diferente para alguém não-branco.
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Em algum momento você acha a extensão e isolamento da paisagem claustrofóbicos?
Richard: Não. Quanto mais distante, melhor. Rola algo existencial aí. Quando estou lá no meio do deserto sozinho, sinto como se fosse algo meio primitivo. Mas também tenho fotografado os muros que atravessam as cidades e áreas mais densamente povoadas. A fronteira toda varia de locais em que o rio cobre tudo, como o Rio Grande, no Texas, e paisagens mais densas e urbanas, como em Nogales, Arizona, onde a fronteira corta a cidade ao meio. É a coisa mais bizarra e surreal do mundo – famílias e amigos foram separados uns dos outros. Existe uma Nogales norte-americana e outra mexicana.
Você não pensa que cada peça encontrada espalhada pela fronteira é uma tragédia?
Richard: Bom, a última boa nova que recebemos é de que são 52 mil crianças desacompanhadas vindas da América Central, atravessando o deserto para chegar aos EUA apenas para serem encarceradas. No fim de 2014 estive no deserto fotografando alguns lugares onde as pessoas colocam água e comida para os imigrantes.
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Richard Misrach
Muro, Bota e uma edição do livro “Doutor Jivago” em Tijuana (2013)
Isso porque eles podem chegar a estes locais afastados e morrerem?
Richard: Sim, passei três ou quatros horas em determinado lugar e meus sapatos e mãos ficaram cheios de espinhos de cactos. É brutal e complicadíssimo de se retirar – tive até que jogar meus sapatos fora em certo ponto. Mas estas pessoas, crianças, viajam pelo terreno à noite. Certa vez encontrei um tênis infantil, para uma criança de quatro anos e duas bíblias rabiscadas com corações a giz – são crianças muito novas mesmo. Crianças caminhando ao longo de extensões absurdas em um local perigoso. As mulheres acabam sendo estupradas o tempo inteiro. As pessoas chegam aqui, desesperadas, em busca de oportunidade de uma nova vida. É uma tragédia. São 52 mil tragédias gigantescas.
Guillermo, estou vendo aqui a imagem de um instrumento que usa roupas encontradas no deserto semelhante a uma efígie. É bem forte.
Guillermo Galindo: Esta, em especial é uma réplica das efígies encontradas na fronteira. É um instrumento esquisito.
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Este instrumento, assim como os outros criados por você a partir dos objetos, pode mesmo ser tocado?
Guillermo: Sim, mas cada instrumento exige muito treino e prática. Até mesmo eu ainda estou aprendendo a tocá-los. Cada um tem uma afinação especial – afinados a si mesmos, e não a algum padrão ocidental.
Richard Misrach
Efigie (2014), Guillermo Galindo
Qual é a mensagem? Uma conexão maior com a ideia de que, por trás de cada estatística, de cada pedaço de “lixo”, está uma pessoa como a gente?
Guillermo: Sim. Precisamos entender que estes objetos – coisas que usamos em nossas vidas cotidianas – pertenceram a pessoas que estavam sofrendo. Estas pessoas tentam atravessar a fronteira, precisam tomar água, precisam de calçados. São como qualquer outra pessoa. Para muitos, porém, essas tragédias são só números. Os instrumentos revelam a humanidade da tragédia.
Os instrumentos exigem manipulação humana, então acabam se tornando um condutor entre duas pessoas. Uma conexão tangível entre as pessoas que foram as donas daqueles objetos e quem está tocando o instrumento.
Guillermo: É isso. Considero estes objetos sagrados. Eles são muito especiais e tem de ser tratados cuidadosamente.
Richard: Guillermo está reconceituando estes objetos, que de outra maneira meio que perderam seu significado, ou lhes foram impostos significados diferentes pelo conceito da tragédia. Reutilizá-los e lançá-los faz você prestar atenção.
Richard Misrach
Zapatello (2014), um dos instrumentos criados por Galindo a partir dos objetos encontrados por Misrach
Richard, você sai por aí e coleta essas coisas sozinho?
Richard: Sim, tenho que estar no clima pra fazer isso. Acordo por volta das quatro da manhã e vou recolhendo tudo até a noite. Minha esposa diz que vivo de gravetos e besouros – não gosto de perder tempo indo a algum lugar para comer e vivo a base de misturas de nozes e frutas secas. Ela fica aterrorizada pela forma que me alimento quando saio, mas eu entro num clima ali e tenho que prestar atenção o tempo inteiro à luz. Funciona melhor quando estou sozinho.
Onde você dorme?
Richard: Durante os primeiros 35 anos, dormi na traseira do meu Volkswagen Camper. Tive cinco carros desse ao longo de 40 anos, mas nos últimos tempos, por conta da minha coluna, vou a hotéis, preciso dormir numa cama de verdade.
Por fim, qual o objeto mais tocante que você encontrou até agora?
Guillermo: A primeira vez que fui a Laredo, Texas, encontrei uma mochila infantil com a estampa de um personagem de desenho animado que era um dos favoritos do meu filho. Me afetou bastante pensar que um garoto com a mesma idade que meu filho está por aí pelo mundo com sua mochila.
Richard: Comigo é algo bem diferente. Guillermo está criando algo incrível para algo que encontrei há pouco – uma cópia em espanhol de Doutor Jivago, encontrado bem ao lado da muralha da fronteira. Dentro do livro existia uma passagem de ônibus de um estudante universitário. Era uma belíssima edição em couro de um livro que – mesmo tratando da Rússia e da Guerra Fria – leva um significado e tanto para o que acontece na fronteira hoje. Pensar que a pessoa que estava carregando o livro tenha perdido-o em um momento passageiro me tocou bastante.
Tradução: Thiago “Índio” Silva
Entrevista original publicada no site da Vice Brasil.