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Filial do restaurante KFC em Uttar Pradesh; proliferação de redes de fast food têm estimulado o aumento do consumo de carne na Índia
“Somos não-vegs”. É assim que Vishal Jain descreve a si mesmo e seu irmão Ankit. “Não-veg”, abreviação de não-vegetariano, é uma contribuição da Índia para a sociologia e cultura da alimentação, um termo guarda-chuva que significa que somos consumidores de algum tipo de carne. Declarar que uma pessoa é não-veg é uma distinção necessária numa terra lendariamente vegetariana e conhecida pelo mais famoso praticante da dieta, Mahatma Gandhi.
A declaração de Vishal aponta para a diminuição da característica e do número daqueles que seguem uma dieta livre de carne no país. Os irmãos pertencem a uma comunidade religiosa estritamente vegetariana. Vishal, 28 anos, técnico de software em Hyderabad, diz que começou a comer carne com o advento do hambúrguer de frango, cortesia de uma rede de fast-food norte-americana. “Trabalhava até tarde e era uma comida conveniente. Mas também era saborosa, diferente de tudo que já tinha comido.”
Num país onde a comida e os hábitos alimentares são dirigidos por regras complexas baseadas na religião, casta e região, velhos costumes têm aberto espaço para novas práticas. Os paladares mudaram e o que era considerado inferior por alguns carnívoros no passado é a moda gastronômica de hoje. K Dasgupta, um comunicador de Déli, relembra as mudanças no perfil e na sociologia dos comedores de carne. “Lá em casa, por exemplo, até meados dos anos 1990 uma semana típica tinha três a quatro dias de peixe e carneiro aos domingos. Mal comíamos frango, que era considerado comida de pessoas inferiores.”
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Também havia a questão da disponibilidade. “Quando criança, às vezes levava sanduíches com frios para a escola e naqueles dias eu era quase uma estrela”, conta Dasgupta sobre os anos 1980. “Perto de onde vivíamos, no distrito oeste de Déli, havia um lugar que vendia salame e presunto, uma raridade naqueles dias. Na verdade, alguns dos meus parentes visitavam minha casa só para comerem os embutidos.”
O aumento do poder aquisitivo nas cidades mudou esse cenário. Os kebabs tornaram-se onipresentes e em cada mercadinho há um ou até dois vendedores de momo, um pastelzinho indiano, e lojas que vendem frios. Para os que podem pagar, a carne está disponível e em uma ampla variedade de opções: crua, pronta para cozinhar, congelada, nas barracas de rua, no delivery, ou nos restaurantes.
“Há apenas uma classe comendo carne na Índia”, declara a nutricionista Veena Shatrugna. “E são os mais ricos. Eu diria que o nosso consumo de carne per capita é patético.” Segundo ela, a maior parte dos indianos, por volta de 80%, é não-vegetariana e deveria estar comendo muito mais carne para atender à ingestão de calorias e proteínas necessárias em sua dieta para combater a desnutrição.
Na tabela de consumo de carne mundial compilada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2007, a Índia ficou em último dentre 177 países. O consumo anual de carne por pessoa era de 3,2 kg, num período em que os norte-americanos comiam 125 kg por cabeça e a média mundial era de 38,7 kg. Agora, o consumo per capita da Índia é de 5,5 kg contra a média mundial de 43,1 kg. Só o consumo de frango per capita dos Estados Unidos fica em 50,1 kg.
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Açougueiro em Calcutá; pesquisa nacional revelou que 80% dos indianos não são vegetarianos
A questão do número de vegetarianos no país levanta um polêmico debate, também carregado com questões de casta e preconceitos religiosos. A dúvida é se mais indianos estão comendo carne agora que podem pagar por ela ou se o número de vegetarianos está diminuindo rapidamente. Qual é o número real de vegetarianos no país? O estudo mais abrangente sobre o tema até hoje é o chamado People of India, ou Povo da Índia, realizado pela Pesquisa Antropológica da Índia (Anthropological Survey of India, ASI) e completado em 1993. A investigação, que durou oito anos, abordou cada rito, costume e hábito alimentar de cada comunidade do país.
Ao final da pesquisa, o exército de pesquisadores da ASI descobriu que de 4.635 comunidades estudadas, quase 88% eram carnívoras. E devoram todos os tipos de carne. Diversos grupos nos Montes Víndias comem ratos do campo. Os que vivem pelas margens do rio Cauvery deleitam-se com filhotes de crocodilos, civetas e chacais. Em muitas regiões, pessoas vegetarianas disseram comer peixe e carne.
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A definição de vegetarianismo na Índia tende a ser fluida. Uma explicação é que os indianos são orgulhosos de seus hábitos alimentares e de sua cultura, e o que consomem se torna um símbolo de status. Comer carne é menosprezado pelas castas superiores e, não surpreendentemente, a ASI descobriu que quase 5% das pessoas de todas as castas oficiais se tornaram vegetarianas para evitar a discriminação.
“A Índia está cheia de carnívoros no armário, pois somos uma nação de hipócritas”, diz o escritor de culinária e pesquisador Pushpesh Pant. “Todos os tabus e as restrições religiosas sobre comida deixam de ser aplicados quando as pessoas saem de casa.”
A pesquisa Estado da União de 2006, conduzida pelo Centro para o Estudo de Sociedades em Desenvolvimento (Centre for the Study of Developing Societies, CSDS) reforça o relatório da ASI em que a grande maioria dos indianos é não-vegetariana. A pesquisa revelou que apenas 31% dos indianos são estritamente vegetarianos. Outros 9% da população são vegetarianos que comem ovo. De acordo com o diretor da CSDS Sanjay Kumar, “os números não foram uma grande surpresa. A Índia vegetariana é uma ideia generalizada”.
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Vacas descansam na rua em Ahmedabad, no oeste do país; tradição religiosa influencia trato dos animais na Índia
O vegetarianismo, de acordo com o estudo, se perpetua na Índia mais em função de práticas culturais herdadas do que de escolhas individuais, apesar disso parecer ter mudado nos últimos oito anos desde a pesquisa do CSDS. O que aparece claramente é que “a maioria dos hindus é não-vegetariana”. Por outro lado, 8% dos cristãos entrevistados eram vegetarianos.
Os dados reunidos pela Organização Nacional de Pesquisa por Amostragem (NSSO) do governo mostraram um crescimento claro no consumo de carne nos últimos anos. A última pesquisa sobre o consumo das famílias, feita entre 2011 e 2012 e publicada em julho de 2014, mostra que tanto a Índia rural quanto a urbana estão gastando mais com leite, carne e ovos, e o consumo destes itens cresce muito mais rápido do que o de cereais. Produtos de origem animal também contribuíram em 33% na inflação dos alimentos nos últimos cinco anos, um número que deve aumentar no futuro.
Não surpreende que 37% do crescimento da produção agrícola entre 2005 e 2011 vieram de produtos animais, afirma uma análise do Credit Suisse, sendo que a expansão mais rápida nessa categoria foi a avícola. O consumo de frango aumentou num ritmo fenomenal na Índia, que é considerada o quarto mercado que mais cresce no mundo.
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Uma explicação para o entusiasmo com frango na Índia pode ser encontrada no relatório Perspectiva Agrícola, recém-lançado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em conjunto com a FAO. De acordo com o relatório, “consumidores de renda mais baixa tendem a entrar no mercado de carne através do frango e, em menor escala, do porco, levando a um consumo maior de acordo com o aumento nos salários.”
Pushpesh Pant tem outra explicação por trás do voo dos frangos para os pratos: “É uma carne neutra para as religiões mais praticadas no país, ao contrário das carnes bovina e suína, e os jovens de hoje em dia gostam de ter carne sempre que comem fora.” À medida que a vida profissional muda e melhores rendimentos permitem que as pessoas experimentem diferentes alimentos, o mito da Índia vegetariana está finalmente desmoronando. Os jovens, em particular, são uma força vital na definição das mudanças. Redes globais de fast-food, que têm proliferado no país desde os anos 1990, e o surgimento de lojas que vendem carne ajudaram a converter milhões de jovens como Vishal.
A demografia é central na mudança de paladar em direção à carne. Pessoas na faixa etária de 18 a 35 anos são responsáveis por mais de um terço entre a população de 1,2 bilhão de pessoas na Índia, e são elas que dominam os gastos na economia de consumo. A chave para a transição entre gerações na mudança da cultura alimentar é a explosão de redes de fast-food em todo o país, cuja maioria vende itens com carne como ingrediente principal. Estes restaurantes têm registrado o maior crescimento nos últimos cinco anos, com expansão a um ritmo médio anual de cerca de 27%.
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Sanduíche de frango em filial do McDonalds na Índia
Amita Baviskar, professora de sociologia no Instituto de Crescimento Econômico, localizado em Déli, tem estudado a propagação de alimentos industriais e processados em dietas indianas e descobriu que “uma celebração da gratificação consumista” substituiu o discurso anterior de austeridade. A tendência voltada para o consumo de carne é uma das grandes mudanças, diz ela.
Em todo o mundo, as pessoas comem carne ou aumentam o consumo em paralelo com a expansão da prosperidade. Colin Sage, geógrafo alimentar da Universidade de Cork, na Irlanda, escreve que as últimas cinco décadas têm testemunhado “uma 'carnificação' da dieta humana, espalhando-se de sociedades definidas há muito tempo pelo alto consumo até economias de mercado emergentes da Ásia e América Latina, que vêm passando por uma 'transição nutricional'. Comer grandes quantidades de carne tornou-se um sinal de riqueza, modernidade e um 'direito' de escolha do consumidor”.
Globalmente, o consumo de carne tem aumentado. A FAO relata que a produção avançou para um novo pico de 308,5 milhões de toneladas em 2013 por causa do poder de compra, da urbanização e da mudança de dieta. Mas, curiosamente, é a Índia, com seus níveis de consumo, que chama a atenção. O país passou a ser o centro das discussões sobre o tema em 2013, quando alcançou o Brasil no ranking dos maiores exportadores de carne bovina. Mas uma série de relatórios tem expressado preocupação com relação à mudança no padrão de consumo de carne dentro da China e da Índia vegetariana.
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A fundação alemã Heinrich Boll Stiftung divulgou seu Atlas da Carne no início de 2014. O relatório, organizado em conjunto com a Friends of the Earth Europe, apontou que, ao mesmo tempo em que o consumo nos maiores mercados da Europa e dos EUA crescia lentamente, ou até mesmo estagnava, havia um avanço enorme em outros lugares. “As economias em expansão na Ásia e em outros lugares responderão por cerca de 80% do crescimento do setor de carnes em 2022. A maior expansão será na China e na Índia por causa da enorme demanda vinda das novas classes médias.”
Da mesma forma, a Perspectiva Agrícola da OCDE prevê que os países em desenvolvimento serão responsáveis por 83% da carne adicional consumida em 2023, com mais do que a metade disso vindo de mercados asiáticos. “Na Ásia, o consumo total de carne deve aumentar 26%, impulsionado pelo forte crescimento de renda e pela expansão da população”, que está cada vez mais urbana.
No entanto, a Índia ainda não foi levada à agricultura industrial de carne, exceto no caso do frango. Autoridades do departamento de produção animal do Ministério da Agricultura e do Ministério do Comércio enfatizam que a qualidade da carne produzida na Índia está em alta demanda porque o gado é criado em condições naturais. Por enquanto, pelo menos, o país pode não ter de se preocupar com as consequências ambientais potencialmente prejudiciais da produção industrial de carne.
E, por enquanto, a Índia ainda é o centro do mundo vegetariano, com o maior número de vegetarianos em sua população. Mas, se as tendências atuais sobre o consumo de carne se acelerarem, a imagem de uma Índia vegetariana vai desaparecer em breve. O mito já foi quebrado.
Tradução: Jéssica Grant
Matéria original publicada na revista indiana Down to Earth, que se dedica a questões ambientais, de saúde e comportamento.