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Dois jovens chimpanzés machos trocam carinho no zoológico Walter, em Gossau, na Suíça
Assim que despertou de sua soneca, Eddie nos saudou alegremente, aproximando-se das grandes janelas de vidro para nos observar. Ele apontou o indicador para sua cuidadora, Margaret Rousser, que estava ao nosso lado, pôs as mãos na cabeça e, em seguida, sobre a boca, franziu os lábios e mandou beijos. Ele frequentemente faz este sinal, que significa “eu te amo”, para seus cuidadores no zoológico de Oakland, na Califórnia, onde o primata de 24 anos e seu irmão, Bernie, de 20, vivem junto de outros cinco chimpanzés.
No entanto, como ocorre com todos os seres vivos, persiste o desejo pela liberdade. Uma enorme rachadura nas janelas de vidro que os cercam é testemunha. Recentemente, um cuidador não percebeu uma grande rocha esquecida dentro da jaula e um dos chimpanzés deu a ela seu devido uso.
A quase cinco mil quilômetros de distância, na costa leste dos Estados Unidos, o advogado Steven M. Wise também arremessou uma rocha legal com a qual pretende derrubar essas jaulas, por assim dizer, garantindo que chimpanzés como Eddie e Bernie possam viver do lado de fora.
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Em dezembro de 2013, Wise, fundador e presidente da organização Nonhuman Rights Project (Projeto Direitos Não-humanos, NhRP, na sigla em inglês) e seus colegas abriram o primeiro processo da história dos EUA exigindo que quatro chimpanzés mantidos em cativeiro no estado de Nova York – Tommy, Kiko, Hercules e Leo – sejam reconhecidos como “pessoas”.
Os processos foram os primeiros de uma série que a NhRP lançou em defesa de espécies animais cujos elevados níveis de inteligência e consciência estão sendo comprovados por um crescente corpus de pesquisa científica. Além dos chimpanzés, a lista inclui gorilas, bonobos, orangotangos, elefantes, baleias e golfinhos.
Composta por uma equipe de advogados, consultores jurídicos e cientistas, liderados pela biopsicóloga Lori Marino, a NhRP visa alterar o status legal desses animais, transformando-os de meras “coisas”, sem direitos legais, em “pessoas”, que possuem, em última instância, direitos básicos à vida e à liberdade. O reconhecimento como pessoas, acredita Wise, protegeria os animais de serem criados domesticamente ou em zoológicos, circos e parques temáticos como o SeaWorld. O estatuto legal de pessoa também os protegeria de serem sujeitos a experimentos invasivos em laboratórios.
Diana Robinson / Flickr
Mamãe elefante e filhotes no parque nacional Amboseli, no Quênia
A personalidade jurídica não está necessariamente ligada à noção de humanidade. Pode se tratar de uma entidade de qualquer tipo – vivente ou não-vivente – que o sistema jurídico acredita ter interesses que devem ser protegidos. A lei indiana, por exemplo, reconhece a personalidade do Guru Granth Sahib, o livro sagrado sikh. Em 2012, o Rio Whanganui, na Nova Zelândia, foi reconhecido como pessoa jurídica após anos de reivindicação pelos maoris. Já nos EUA, corporações são consideradas pessoas jurídicas desde o início do século 19, quando a Suprema Corte julgou que elas deveriam ter os mesmos direitos dos seres humanos.
No cerne da questão está o dilema moral sobre como devemos tratar os animais não-humanos – pergunta que atormenta a humanidade há milhares de anos. Há pouca coerência na forma como lidamos com outras criaturas vivas. Algumas nós amamos e tratamos como membros da família. Algumas, reverenciamos; outras, tememos. Algumas são escravizadas como bestas de carga, ou usadas em experimentos invasivos, ou em espetáculos de entretenimento. E, é claro, bilhões delas nós matamos e comemos.
Nas últimas quatro décadas, foram realizados diversos estudos sobre o comportamento e a cognição de animais não-humanos, fornecendo novas informações sobre a subjetividade de várias espécies. Sabemos que muitos animais experimentam uma grande variedade de emoções – alegria, amor, tristeza, culpa, vergonha, desespero – e têm uma noção básica de justiça e do que chamamos “moralidade”; traços há muito tempo atribuídos unicamente aos seres humanos e que supostamente nos colocavam acima do restante do reino animal.
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Sabemos, por exemplo, que elefantes permanecem de luto mesmo muitos anos após a morte de um membro do grupo, parando nos lugares onde seus conhecidos morreram e acariciando delicadamente os ossos remanescentes com suas trombas. Golfinhos cuidam de membros feridos do grupo, e babuínos podem estabelecer amizades profundas com não-familiares e parecem se entristecer por muito tempo quando são separados de seus amigos. Descobrimos que camundongos podem rir e demonstrar preocupação quando outro camundongo sente dor, e que as vacas experimentam um momento “eureka!” quando solucionam um problema, como abrir uma porteira para conseguir comida.
Também sabemos que a empatia transcende as espécies. Uma busca rápida na Internet comprova: podemos encontrar um leopardo cuidando de um bebê babuíno, um golfinho adotado por uma família de baleias, um urso de zoológico salvando um corvo prestes a morrer afogado, um hipopótamo órfão se tornando amigo de uma tartaruga de 130 anos em um abrigo para animais. Essas cenas parecem provar a teoria de alguns pesquisadores, como o primatólogo holandês Frans de Waal, de que a ética humana tem como base processos evolucionários que promovem a cooperação. “É claro, [animais] também podem ser egoístas e malvados… mas, de modo geral, suas vidas sociais têm como base a compaixão e o comportamento cooperativo”, diz Marc Bekoff, professor de ecologia e biologia evolucionária na Universidade do Colorado.
“Eu sempre digo que a ciência está descobrindo aquilo que muita gente já sabia”, diz Bekoff, que também é cofundador do grupo Etologistas pelo Tratamento Ético dos Animais (a primatóloga Jane Goodall também é uma das fundadoras). Ele observa que, assim como entre seres humanos, a senciência animal tem um lado negro. Elefantes, primatas e muitos outros animais sofrem transtornos de ansiedade e humor quando lidam com adversidades. Animais em cativeiro se automutilam e sofrem com perda de apetite. E conforme demonstra o documentário norte-americano Blackfish (2013), que conta a história da baleia orca Tilikum, do SeaWorld, e dos treinadores mortos ou feridos por ela, às vezes animais em cativeiro simplesmente enlouquecem, o que pode resultar em consequências terríveis.
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Milan Boers / Flickr
Tilikum, a baleia orca responsável pela morte de três pessoas ao longo de seus anos em cativeiro, no Sea World, em Orlando, EUA
Todo ano, matamos mais de 56 bilhões de animais de criação, com 10 bilhões sendo mortos apenas nos EUA, de acordo com o Movimento pelos Direitos dos Animais de Criação. Este número não inclui peixes ou outras formas de vida marinha, já que a quantidade de animais pescados é tão grande que, normalmente, é medida em toneladas. O Serviço Sanitário de Inspecção de Animais e Plantas dos EUA relata que 20 milhões de animais são usados em pesquisas de laboratório no país anualmente. Nem todas as pesquisas estão relacionadas à saúde. Uma boa parte da indústria de cosméticos ainda testa produtos em animais. O número também não inclui as dezenas de milhares de ratos e camundongos usados em laboratórios.
Alguns países já criaram leis e regulamentos que reconhecem, em graus variados, a senciência e os direitos de alguns animais. A Suíça, onde os animais são mais bem protegidos do que em qualquer outro lugar do mundo, incluiu em sua constituição, no ano de 1992, a definição de animais como “seres”, e não “coisas”. Em 2002, a Alemanha emendou sua constituição, garantindo direitos aos animais e se tornando o primeiro país da União Europeia a fazê-lo. As Ilhas Baleares, uma província espanhola, foram o primeiro lugar do mundo a garantir direito à personalidade aos primatas, em 2007. Em 2008, o parlamento espanhol aprovou uma resolução que garantia aos primatas o direito à vida e à liberdade. O Tratado de Lisboa, da União Europeia, que se efetivou em 2009, reconhece que os animais são “seres sencientes” e exige que todas as políticas europeias relacionadas aos animais “levem em plena consideração” seu bem-estar. Em 2013, a Índia reconheceu os golfinhos como pessoas não-humanas, banindo seu uso em cativeiro para fins de entretenimento como uma violação moral de seu direito à vida e à liberdade. E finalmente, no fim de janeiro deste ano, a França emendou seu código civil para que animais passem a ser reconhecidos como “seres vivos dotados de sensibilidade”.
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No entanto, a ideia de conferir personalidade jurídica aos animais permanece controversa. Algumas pessoas estão preocupadas com a ideia de que a personalidade jurídica dos animais poderia resultar no fim da pecuária ou até mesmo da criação de animais domésticos.
Alguns pesquisadores apresentam um argumento mais convencional: a situação afetaria diretamente seu trabalho, que busca beneficiar seres humanos. A Associação Nacional de Pesquisa Biomédica dos EUA, por exemplo, se opõe a qualquer tentativa de conferir personalidade jurídica a animais. Ela diz que os chimpanzés são cruciais para a pesquisa de comportamento e para o desenvolvimento de vacinas contra doenças como a hepatite C. O presidente da associação, Frankie Trull, diz que atribuir direitos aos animais seria um “caos” para os pesquisadores.
Defensores da personalidade jurídica dos animais contra-argumentam dizendo que, embora seja verdade que pesquisas com animais tenham ajudado a salvar tanto vidas humanas quanto de animais no passado, não há motivo para que os laboratórios continuem a utilizá-los como modelos. “O uso de modelos animados por computadores, culturas celulares e também seres humanos produz uma experiência de aprendizado melhor. Precisamos apenas ter a coragem de alterar este paradigma”, diz Lori Marino, diretora científico da NhRP.
Há também alguma resistência entre defensores dos direitos dos animais com relação aos processos do NhRP. “Um dos pontos fracos da abordagem jurídica é que estamos nos focando muito nas estrelas da cognição, como os chimpanzés”, diz Paul Waldau, professor de antrozoologia e autor de vários livros sobre direitos dos animais e especismo. “É claro que eles merecem ser reconhecidos [como pessoas jurídicas], mas isto é revelador sobre quão especiais nós, humanos, nos sentimos”.
Wise diz estar começando com estes animais precisamente porque o volume de pesquisa a respeito da inteligência e de sua similaridade com os humanos pode fazer com que os juízes sejam menos resistentes a aceitar sua personalidade jurídica. “Estamos litigando em um campo no qual juízes, que são membros da sociedade, têm suas próprias opiniões, leem livros e revistas, assistem televisão”, diz.
Nora Kuby / Flickr
No cerne da questão está o dilema sobre como devemos tratar animais não-humanos: alguns nós amamos e tratamos como membros da família; outros, matamos e comemos
Wayne Pacelle, presidente da Humane Society of the United States (HSUS), organização de defesa do bem estar dos animais nos EUA, também não está convencido pela estratégia do NhRP. Ao longo da última década, a HSUS ajudou a aprovar nos EUA mais de mil leis estaduais e 25 estatutos federais que protegem os animais, incluindo o banimento de rinhas de galo e práticas agropecuárias cruéis. Pacelle diz que a organização conseguiu este feito “construindo a lei” por meio de campanhas de conscientização, lobby por reformas legislativas e trabalho em defesa de leis que já existem, em vez de “contar com a sentença de um juiz”.
Pacelle também acredita que o termo “direitos” tem uma grande carga filosófica. “Nós, na Humane Society, vemos a questão da seguinte maneira: tudo isto diz mais respeito aos seres humanos do que aos outros animais. Diz respeito à forma como nós nos comportamos, porque nós detemos o poder em nossa relação com outros animais”. A lei, diz ele, deveria se concentrar em monitorar o comportamento humano, não em conceder direitos aos animais.
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David Favre, professor de legislação sobre animais não-humanos da Universidade de Michigan e ex-colega de Wise no Fundo para Defesa Legal dos Animais, sugere que uma terceira estratégia legal poderia ser mais eficaz: designar animais como “propriedade viva”. Favre não compartilha do otimismo de Wise, atentando para o fato de que uma grande parcela da economia gira em torno da exploração dos animais. “É preciso haver uma etapa intermediária, na qual deslocaremos os animais não-humanos para outra categoria de propriedade”, diz ele. “E, nesta categoria, poderemos fazer a transição, levando cada vez mais em consideração a natureza e o interesse dos animais não-humanos e cada vez menos o fato de que são propriedade de alguém”.
Wise não se deixa afetar pelas críticas. “Quero conceder direitos aos animais e não vejo como isso poderia ser feito senão por meio da personalidade jurídica”, explica. “É a pedra basilar; sem isso, você é invisível para a lei”.
A natureza, em última instância, é indiferente a nossa visão de mundo antropocêntrica. Ela não desenha nenhuma linha que separe os seres humanos de outras formas de vida. O prazer, a dor ou o medo que um camundongo, uma foca ou um tigre sentem provavelmente não são menos intensos do que o prazer, a dor ou o medo que eu e você sentimos. Não precisamos que uma lei nos diga isso. Da mesma maneira, um animal não ter status legal como “pessoa” não significa que nós não temos responsabilidade moral para com ele. Dizer que não sabemos o que os demais animais querem ou de que eles precisam é uma maneira de se esquivar dessa responsabilidade. Sabemos, pelo menos, que eles querem viver suas vidas em paz e segurança. Sabemos que querem ser tratados com dignidade, ou simplesmente deixados em paz – assim como qualquer pessoa.
Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada no Earth Island Journal, que se dedica a temas relacionados ao meio ambiente.