Marcos Santos / Jornal da USP
Reajuste de 13,8% para as tarifas de água e esgoto da Sabesp, mais do que o dobro dos 6,4% aplicados no ano passado, está em consulta pública até o dia 15 deste mês
Boletim da falta d’água em SP, 31/03 a 06/04/15*:
– No debate promovido pela Folha semana passada entre o professor Antonio Carlos Zuffo, a ambientalista Marussia Whately e o presidente da Sabesp Jerson Kelman, há um momento particularmente revelador de como a crise que estamos vivendo não é apenas uma crise hídrica (escassez de água) ou de abastecimento (escassez de competência). A crise é também de confiança; é uma crise institucional. Mais para o fim do debate, Kelman responde sobre o recente caso de contaminação da água na zona sul de São Paulo. Ele admite que houve sim um problema (um “acidente lamentável”) e afirma que ele já foi resolvido. Mas Kelman vai além: segundo o presidente da Sabesp, “ninguém ficou doente” em decorrência da contaminação.
– Não consegui continuar ouvindo o debate a partir deste ponto – o ponto em que fui informada de que “ninguém ficou doente”, dias após Folha (http://goo.gl/h6orwy) e Record (http://bit.ly/1BF6LXo) terem mostrado pessoas que adoeceram ao entrar em contato com a água contaminada. Semana vai, semana vem e não cesso de me espantar com o negacionismo abissal das nossas autoridades.
(- Breve retrospectiva da crise segundo as fontes oficiais: não falta água, não há racionamento e ninguém ficou doente.)
– Que argumento usar com aqueles que compartilham o vídeo-boato da “Cantareira cheia” (evidentemente não vou dar o link)? Afinal, o vídeo parte do pressuposto de que “o governo está enganando o povo”. A profunda desconfiança da população com relação às informações oficiais não surge por geração espontânea: ela é fruto, dentre outros fatores, de uma estratégia de comunicação de órgãos governamentais e da própria Sabesp. A falta de transparência vai minando a confiança das pessoas nas instituições. Ao faltar com a transparência e com a verdade, a Sabesp acentua a crise que deveria combater.
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– Outro ponto tratado no debate foi a questão dos moradores de rua. Foi um dos momentos mais desesperadores da noite, pois Kelman, de início, diz que imagina que tais pessoas obtenham água por meio de caridade – no que é interrompido por alguém na plateia, que esclarece que falta água nos equipamentos de assistência social que atendem a essas pessoas. Kelman diz então que não há qualquer discriminação contra os moradores de rua, e emenda com o conhecido argumento de que pode faltar água em alguns pontos mais elevados da cidade devido à redução de pressão… Só que boa parte dos tais equipamentos estão localizados no CENTRO de São Paulo, ou seja, é um argumento para se esconder debaixo da mesa de tanta vergonha alheia.
– Kelman parece ignorar também que a falta de água nesses locais, além de se tratar de um problema humanitário (o que já seria grave o suficiente), é também um problema de saúde pública (http://goo.gl/XUSfzn). Mas sigamos. Kelman conclui que a Sabesp busca evitar o rodízio justamente para que os 20 milhões de habitantes da RMSP não tenham o mesmo problema que esses 20 mil moradores de rua têm.
– Bom, vamos ver se entendi o argumento: na situação atual, uma minoria da população – 20 mil moradores de rua, ou os 200 (http://goo.gl/T4eWOL) (http://goo.gl/8n8oCK) ou 400 mil (http://goo.gl/oOu4On) habitantes da RMSP, segundo a própria Sabesp – têm um “sofrimento mais intenso”, enquanto o resto da população não sofre restrição praticamente nenhuma.
[- Aliás, o boletim é meu então vou #SubirNoCaixote: tenho pavor do termo “sofrimento” neste contexto – ele me remete à promessa religiosa de que os sofredores deste mundo serão recompensados no Reino dos Céus. E se substituirmos a expressão “sofrimento mais intenso” por “perda mais acentuada de direitos”? Porque é disso que se trata: não é que alguns “sofrem mais” (como medir esse sofrimento?) – algumas pessoas têm seus direitos mais solapados do que outras.]
– Nas palavras de Kelman: “Tem 20 mil pessoas na rua? Tem 20 milhões de pessoas em São Paulo. Quer dizer, a escala (…) dos que não estão passando por problema é muito maior do que os que estão passando.” Bem, aí não posso deixar de questionar: será que é realmente assim? Mesmo se considerarmos que os 20 mil “passando por problema” na verdade são 200 mil (o “1%” da população) – enquanto a Sabesp não explicar como chegou a esses tais 1% de Grandes Sofredores, esse é um índice completamente vazio.
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– Sobre a estratégia da redução de pressão, Marussia fez uma observação absolutamente pertinente que tentarei parafrasear aqui. Para lidar com uma situação de crise como esta, é necessário um plano de contingência que vá muito além da Sabesp. Como garantir água desde já para quem está sem – pois, como admitiu o próprio presidente da Sabesp, já estamos em regime de restrição? Eis o que não é considerado nesse critério técnico de redução da pressão: institui-se que é preciso reduzir a pressão em X canos, e por acaso há um equipamento de atendimento a pessoas vulneráveis naquela malha. Como resolver isso? Como garantir o abastecimento das pessoas atendidas por esse equipamento? Com caminhão-pipa? Quem irá monitorar e atestar a qualidade da água desse caminhão-pipa? Esse é o tipo de ação que vai muito além da competência da Sabesp – o tipo de ação que simplesmente não vem sendo tomada.
– O grande dilema ético que a crise nos coloca, a meu ver, é: quem vai arcar com o ônus da escassez de água? Queremos, como sociedade, arcar com esse ônus de maneira razoavelmente igualitária? Para início de conversa, é gritante a diferença de abastecimento entre bairros centrais e periféricos (o governo dispôs-se a gastar mais com energia para que não falte água na região da Paulista, por exemplo –http://goo.gl/mqC5yp), e entre grandes consumidores e consumidores residenciais. Para dar um passo além nesta discussão, terei que fazer um ligeiro desvio de rota: garotos, eu vou pra Califórnia.
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– A crise hídrica na Califórnia ganhou bastante espaço na imprensa brasileira esta semana, já que o governador impôs uma redução de 25% no consumo de água em todo o estado (http://goo.gl/3dvhst). Elencarei aqui alguns dados sobre o estado americano com um único objetivo: fazer com que a situação acolá nos ajude a refletir sobre a situação daqui.
– Em primeiro lugar, na Califórnia a agricultura é responsável pelo consumo de 80% da água do estado (http://goo.gl/CfyDkkhttp://goo.gl/SrY9DL), o que gerou críticas (http://goo.gl/IISUo4). Não conheço a realidade californiana para saber se esta decisão do governo é adequada, mas uma coisa é preciso notar: na Califórnia, planta-se comida – por exemplo, 90% do tomate, 74% da alface e 95% do brócolis consumido nos EUA vêm de lá (http://goo.gl/CfyDkk). No estado de São Paulo, os dados que encontrei dizem que o consumo de água estava distribuído da seguinte forma em 2004: 32,4% urbano, 30,4% industrial e 37,3% irrigação (http://bit.ly/1B34R6g), e o principal produto agrícola cultivado em SP é a cana de açúcar para a indústria, segundo dados de 2013 do IEA (http://goo.gl/K77gnt). (Por outro lado, esta matéria recente da Folha – http://goo.gl/8Ygt5I – afirma, citando a ANA, que indústria e irrigação são responsáveis respectivamente por 37% e 22% da água consumida no estado – e há quem diga que não temos problemas de acesso a informações e dados relevantes…)
– Em suma: na agricultura paulista, predomina o agronegócio para exportação. Ocorre que apenas 26% do território do estado (http://goo.gl/8Ygt5I) paga pelo consumo de água bruta (isto é, água captada diretamente dos rios, que não foi tratada por nenhuma concessionária). Boa parte do agronegócio simplesmente não paga pela água que consome – o que vai contra o que está previsto em lei.
– Os grandes agricultores não são clientes da Sabesp, mas essa situação atinge a empresa indiretamente, já que seu acionista controlador (o governo do estado) desperdiça a oportunidade de arrecadar fundos que lhe seriam devidos pelo agronegócio. Enquanto o governo abre mão dessa cobrança, a Sabesp pretende aumentar a tarifa de água para consumidores residenciais em quase 14% (http://goo.gl/fPjMss). Trata-se de um socialismo às avessas: o prejuízo é dividido entre os consumidores residenciais (http://goo.gl/bBSVaR), mas o lucro continua sendo privado (http://goo.gl/iZJBnf). Enquanto isso, a Sabesp decide cortar os investimentos em esgoto (http://goo.gl/MKsBRx).
– Aí está, portanto, mais um dos paradoxos da crise: quem paga o ônus da escassez de água, literalmente, são os consumidores residenciais, mas não os usuários de água bruta. Aliás, esta é uma das propostas do professor Zuffo para sairmos da crise: aumento da cobrança pelo uso da água bruta, em vez do aumento da tarifa.
– Com relação ao aumento da tarifa, vale lembrar que ela está em consulta pública – todos podem mandar sua opinião a respeito para o e-mail consultapublica@arsesp.sp.gov.br (http://goo.gl/ZqCX59).
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– O mês de março foi excepcionalmente chuvoso para o Cantareira, mas de novembro a março as chuvas ainda ficaram ligeiramente abaixo da média histórica (http://goo.gl/mnP2rU). Isso é condizente com as previsões de Zuffo, para quem a média das precipitações será mais baixa pelos próximos 30 anos. É o que prevê também um meteorologista da empresa Somar (http://goo.gl/NeXHGG).
– Um acordo entre Sabesp, AGU, MPF e MP-SP (ufa) suspendeu a ação “que cobra uma série de medidas para combater a falta de água no Sistema Cantareira” (http://goo.gl/6uJz58). Se entendi bem, trata-se da ação que obrigava ANA, DAEE e Sabesp a fazer com que o Cantareira chegasse pelo menos a 10% de volume útil até o final de abril (http://goo.gl/wHpPGr). Sobre essa meta, cito o presidente da ANA: “Nós sempre defendemos manter 10% do volume útil do reservatório. Como isso nunca foi feito e a Sabesp retirou sempre o que precisava, essas metas de segurança hídrica nunca foram observadas, tanto é que, agora, às vésperas de abril, o Governo diz que é impossível ter 10%. Claro que é impossível. Como essas medidas não foram tomadas no passado cada vez fica mais difícil atingir essa meta.” (http://goo.gl/4aeSrc)
– Em vez de atingir essa meta, o acordo obriga a Sabesp a apresentar um “planejamento para enfrentar a crise hídrica” (!!!) até o final de abril. Só é uma pena que o plano será entregue (se for) em abril de 2015 e não de 2014.
– ANA e DAEE reduziram a retirada máxima de água do Cantareira para o mês de abril (http://goo.gl/ZXAovt) (http://goo.gl/0m8Npr). Mais uma vez: pena que essa determinação só tenha sido dada no final de abril de 2015 e não no de 2014 (suspiros). Agora, reduzir as captações é o que se pode (deve) fazer, já que a quantidade de água nas represas é muito limitada. O problema dessas reduções, como vimos, é eminentemente ético: elas não atingem à população de forma equitativa. Não sei por que me surpreendo: no país com uma das piores distribuições de renda do mundo (http://goo.gl/xjX0Ji), não era mesmo de se esperar que tivéssemos uma distribuição hídrica equitativa em situação de escassez.
(- Pausa para recuperar o fôlego depois deste momento da mais absoluta desilusão.)
– Kelman diz que tem racionamento sim senhor (http://goo.gl/pdqqZL). No dia seguinte, Alckmin diz que não tem racionamento coisa nenhuma (http://goo.gl/3EKRp4). Suponho que ambos já estejam treinando para a festa junina (olha a cobraaaaa…. é mentiraaaa….)
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Seção Grandes Obras do Governo Paulista™
– Semana passada, o secretário de Recursos Hídricos perguntou à população paulista o que era preferível: seguir “o rito ambiental” ou trazer água para a população (http://goo.gl/mKYXFq), enquanto eu me perguntava com quantos desrespeitos a “ritos ambientais” se faz uma crise hídrica (http://goo.gl/myQlHf). Eis aqui o que pode ser um deles: o MP-SP investiga se houve falhas em licenças ambientais relacionadas a um túnel do Rodoanel que desabou (http://goo.gl/vJeFHF).
– A população alega que mais de 100 nascentes (!!!) foram soterradas durante a construção do Rodoanel, que custou R$ 6,8 bilhões. A Secretaria de Transportes alega que 1) não há soterramentos 2) há “efeitos temporários sobre as águas” e 3) tais águas não pertencem ao Sistema Cantareira. Com relação a 1 e 2: “Na área do túnel destruído, a BBC Brasil encontrou cursos d’água cercados por morros aterrados por tratores, sem controle de assoreamento. Um vazamento em frente aos destroços espalhava a água drenada de dentro de um morro para o meio do canteiro de obras ─ surpresa também para os técnicos que acompanhavam a visita.” A Dersa, responsável pela obra, insiste que esses efeitos são apenas temporários. OK, vamos acompanhar. Com relação ao argumento “não faz parte do Cantareira”, faço minhas as palavras do geólogo Antônio Oliveira, citado na reportagem: “Hoje em dia cada gota d'água conta, não? Se é recomendado que fechemos a torneira para escovar os dentes, seria bom que estes pequenos recursos fossem privilegiados ao invés de sofrer com os impactos de uma obra como esta”.
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Seção Cadê a Manchete Que Devia Estar Aqui?
– Uma obra da Sabesp no Guarujá está sendo investigada a partir de informações obtidas na operação Lava-Jato (http://goo.gl/VoXvni). Sim, a Sabesp. Sim, a Lava-Jato. Em comum com a Petrobras, a Sabesp tem o doleiro Alberto Youssef – a PF apreendeu em sua casa uma planilha contendo informações sobre 747 obras (http://goo.gl/ZnJESr), incluindo esta no Guarujá. A planilha foi apreendida em dezembro, e o juiz Sergio Moro qualificou-a de “perturbadora”, pois indica que o esquema de corrupção vai muito além da Petrobras (http://goo.gl/v1FCHD). O contrato da Sabesp que consta da planilha foi citado pela Folha em janeiro (http://goo.gl/ZnJESr) e agora pelo El País, em matéria muito mais completa (http://goo.gl/k9zzb6) – e é basicamente isso.
– Então deixa ver se eu entendi. Quer dizer que a empresa diretamente implicada na gravíssima crise hídrica e de abastecimento que assola o estado de SP está sendo investigada pelo Ministério Público por um contrato envolvendo o mesmo doleiro do maior caso de corrupção (noves fora Zelotes) sob investigação no Brasil, e isto praticamente não ganha destaque na imprensa? É, acho que entendi direitinho sim.
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Seção Más Notícias (desculpa, gente)
– Caiu a liminar que impedia construções no Parque dos Búfalos (http://goo.gl/18q20z). Sobre isso, limito-me a citar a nota dos ativistas (http://goo.gl/qetDDn): “O Movimento em Defesa do Parque dos Búfalos não é contra a construção de casas populares (inclusive lutamos para que mais unidades sejam criadas), mas construir em área de manancial, ao lado da Represa Billings, já super loteada e populosa, é CRIME AMBIENTAL e contra a Lei da Billings. (…) Segundo levantamento feito por nós, do Movimento, há seis terrenos ociosos, ou seja, sem cumprir função social na Cidade Ademar, que devem até 25 anos de IPTU. Esses terrenos poderiam ser desapropriados pela prefeitura para construir casas populares.”
– Guarulhos decretou estado de emergência por causa da dengue (http://goo.gl/OBkqFH). Talvez se um Comitê de Crise (http://goo.gl/Oh4MTH) tivesse sido instituído já no ano passado, pudessem ter sido tomadas medidas coordenadas de controle e prevenção, já que o aumento no número de casos era previsto (http://goo.gl/dvj8Ug). Mas, como disse Maru no debate da Folha, o comitê foi criado apenas este ano – e se reuniu apenas uma vez.
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Seção Boas Notícias (ufa)
– Na verdade é uma boa notícia só, mas tá valendo: o governo do estado criou um programa de incentivos de R$8,7 milhões para a implantação de sistemas de captação de água de chuva e reúso em equipamentos públicos de municípios nas regiões dos sistemas Alto Tietê, PCJ e Paraíba do Sul (http://goo.gl/0jIdgE).
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Seção “Eu quero mandar um beijo pra minha mãe, pro meu pai e pra…”
– … hoje, eu quero mandar um beijo pro Greenpeace: http://goo.gl/DYUdBl
AGENDA
Exposição de Street Art sobre a crise hídrica na Galeria A7MA, até 07/04 (http://goo.gl/pswi09).
Reunião aberta de planejamento da 2a Assembleia Estadual da Água, 10/04 no Sinsprev (http://goo.gl/wgF3Do).
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E esse foi o boletim de 31/03 a 06/04/15. Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais.
*Este e todos os boletins passados estão disponíveis no boletimdafaltadagua.tumblr.com