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Cédulas da libra de Brixton, utilizada no bairro da região sul de Londres, no Reino Unido
Pessoas no mundo todo têm usado moedas alternativas – isto é, as que não são emitidas por Estados nacionais – para fortalecer suas comunidades diante da austeridade e da crise financeira. Outras moedas foram criadas para aqueles que não têm dinheiro tradicional suficiente, não possuem os meios para obtê-lo ou não querem pedir um empréstimo por questões de privacidade e segurança.
Sistemas monetários alternativos estão ajudando comunidades que possuem recursos físicos para a atividade econômica, mas não possuem dinheiro para facilitar a troca de bens e serviços. Além disso, o crescente uso de moedas alternativas, como atividade econômica competitiva e relativamente não-monitorada, pode pressionar governos e bancos a serem melhores administradores financeiros e a suprirem as necessidades básicas do público.
Conheça iniciativas de algumas comunidades em diferentes lugares do mundo que criaram suas próprias moedas e estão fomentando o comércio local e a geração de renda para as pessoas que as usam.
Libra de Brixton
“Quando as pessoas pensam em Brixton, muitas delas pensam em gangues, drogas e tumultos. Estamos tentando reverter essa percepção.” Palavra de Tom Shakhli, gerente-geral do projeto Brixton Pound, ou Libra de Brixton. O distrito na região sul de Londres é de fato um ambiente atípico para essa moeda. Como observa Tom, outras moedas alternativas estão obtendo sucesso em subúrbios britânicos cheios de “hippies”. Em contrapartida, a libra de Brixton, que existe há cinco anos, surgiu em uma das mais diversas e dinâmicas vizinhanças do país, o coração da Grã-Bretanha Negra, fortemente atingida pela recessão.
A libra de Brixton é uma “moeda complementar”: ela não tem como objetivo destituir a libra esterlina, a moeda oficial. Na verdade, o câmbio da libra de Brixton é de 1 para 1 com a libra esterlina. Não há emissor oficial. Os residentes podem trocar libras por libras de Brixton em várias lojas e locais públicos do bairro. Já que a organização Libra de Brixton não faz empréstimos, a Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido trata a moeda como um “esquema de vouchers”, e desta forma a equipe evita se envolver nas complicações legais que recaem sobre pequenos credores e outros prestadores de serviços financeiros.
Por que usá-la, então? Quando a libra de Brixton foi lançada, um economista acusou o projeto de “não obter nada significativo” e interferir com incentivos já existentes para a compra de bens de consumo baratos fora de Brixton. Todos sabem que a principal razão para o uso da libra de Brixton é exatamente o fortalecimento dos comerciantes e negócios locais, dos quais 40% já aceitam a nova moeda, diz Shakhli. Já que só é possível gastar libras de Brixton em Brixton, a moeda fica por ali mesmo, pelo menos até ser trocada, o que mantém a vitalidade dos mundialmente famosos mercados e negócios locais.
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Adesivo em porta de loja em Brixton avisa que moeda alternativa é bem-vinda
“Não queremos ver nosso bairro transformado pelas grandes redes comerciais”, é o que dizem, com orgulho, Shakhli e sua equipe de funcionários e voluntários. Isto é, eles não querem que as pessoas saiam do metrô e vejam os mesmos restaurantes fast-food e lojas de conveniência que estão em quase todos os demais bairros britânicos. Este é obviamente um sentimento compartilhado por muitos dos comerciantes locais. Na verdade, muitos deles oferecem descontos simplesmente pelo uso de B£ em vez de £. Em troco, ganham publicidade gratuita da organização Libra de Brixton, além de outros benefícios.
E as cédulas da Libra de Brixton são incríveis: com imagens de habitantes do bairro como a feminista negra Olive Morris, o jogador de basquete Luol Deng e David Bowie, esta é uma das moedas mais legais já vistas.
As cédulas contam também com medidas de segurança semelhantes às da libra esterlina, o que ajuda a prevenir a falsificação. Além disso, quando você troca libras esterlinas por libras de Brixton, as esterlinas vão para uma cooperativa de crédito local, que não apenas apresenta chances muito maiores de reverter o dinheiro em empréstimos para os comerciantes locais do que um banco comum, como também diminui as chances de sucesso de prestamistas predatórios e invasivos, que se tornam cada vez mais presentes em áreas de baixa renda de Londres.
Neste estágio, a libra de Brixton está funcionando em prol do fortalecimento da economia local. Shakhli disse que a moeda obteve sucesso porque é facilmente compreendida. O governo local também a apoia – de fato, alguns funcionários do governo recebem parte do seu salário em libras de Brixton eletrônicas, e alguns negócios pagam os impostos locais com elas.
O futuro da libra de Brixton pode ser mais complexo: eles planejam criar seus primeiros caixas eletrônicos em breve, aproximando-se portanto dos prestadores de serviços financeiros mais tradicionais. Mas, pelo menos até o momento, Shakhli pode dizer com segurança que a libra de Brixton está tanto ajudando a vizinhança quanto encorajando as pessoas a refletir sobre questões centrais da vida moderna: “O que é o dinheiro, afinal? De onde ele vem?”
Koru Kenya
As questões propostas por Shakhli há muito tempo preocupam Will Ruddick, um físico norte-americano que começou sua carreira estudando partículas de alta carga energética, mas hoje trabalha para a Koru Kenya, uma organização de desenvolvimento comunitário sediada em Mombasa, no Quênia.
Assim como a equipe da libra de Brixton, a Koru Kenya cria moedas que complementam a moeda oficial, e é hoje responsável por várias “moedas comunitárias” em diferentes locais do país. No entanto, os cenários não poderiam ser mais distintos. Brixton é uma grande vizinhança em uma gigantesca metrópole, mas nas vilas onde Ruddick e seus colegas quenianos trabalham as necessidades são mais básicas.
Desta forma, as moedas da Koru Kenya fazem algo que a libra esterlina não faz: elas criam crédito, livre de juros, onde ele não existe. Quando Ruddick chegou ao Quênia, há cinco anos, ele diz ter encontrado “um mundo cheio de desperdício e oportunidades”. Havia pessoas que podiam trabalhar, mas não estavam participando da economia local. Havia muitos bens de consumo, mas não podiam ser comprados ou vendidos. Tudo pela falta de pedaços específicos de papel e metal.
“Se eu tenho garfos e você tem colheres, mas não podemos fazer comércio simplesmente porque não temos dinheiro, eu considero isso uma forma de violação dos direitos humanos”, diz Ruddick.
Ele e seus colegas começaram a emitir a nova moeda, a Eco-Pesa, em três vilarejos de Kongowea, ao norte de Mombasa. Os comerciantes concordaram em negociar utilizando as cédulas, e membros da comunidade passaram a poder ganhar algum dinheiro extra participando de projetos de serviço mensais. Todo mês, as pessoas podiam trocar suas cédulas por xelins quenianos por meio da Campanha Mundo Verde, um grupo ambientalista e de combate a pobreza com sede nos Estados Unidos.
Em 2012, a equipe da Koru Kenya passou a emitir o Bangla-Pesa, em Bangladesh, uma das favelas mais pobres de Mombasa. Os residentes adotaram rapidamente a moeda, com muitos grupos de negócios concordando em se tornar emissores, distribuindo as cédulas a partir de centros comunitários, clínicas médicas e escolas. A rede cresceu com base na confiança: tudo o que você precisa para receber bangla-pesas, sem qualquer custo, são quatro fiadores que já participem da rede e assegurem sua integridade. Parte de sua concessão é depositada em um fundo comum da rede, que é utilizado para fins administrativos, marketing e programas comunitários, como o fornecimento de serviços de saúde para idosos.
Em maio de 2013, o bangla-pesa se tornou a moeda oficial na comunidade. Cerca de 200 negócios participantes, 75% deles pertencentes a mulheres, receberam concessões da moeda. A definição da organização de “negócio” é bastante abrangente: um professor, trabalhador do sexo, enfermeiro ou fazendeiro pode se qualificar. Esta inclusividade provocou bons resultados. Desde seu lançamento, Ruddick estima que as vendas totais no bairro de 8.000 habitantes aumentaram em 20%.
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Will Rudick / Divulgação
Cédulas de bangla-pesa para distribuição na favela de Bangladesh, em Mombasa (Quênia)
Governo e bancos não se opuseram ao sucesso da Koru Kenya, de modo geral, exceto em um único episódio. Em 29 de maio de 2013, Ruddick e alguns de seus associados foram acusados de manter proximidade com um movimento separatista e tiveram de se defender judicialmente, provando que o bangla-pesa não tinha como objetivo subverter o Estado ou destruir o xelim queniano. Eles foram liberados em alguns dias e as acusações foram retiradas.
De fato, a moeda comunitária é o que economistas pós-Keynesianos chamam de “estabilizador automático”. Quando as pessoas não conseguem obter xelins suficientes, usam o bangla-pesa, mas quando a economia nacional vai bem, inevitavelmente voltam a utilizar xelins. Ruddick acredita que, pelo menos no presente momento, as moedas da Koru Kenya continuarão a ser trocadas por xelins a uma taxa de conversão de 1 para 1.
“O dinheiro é aquilo que fazemos dele. Deveríamos estar nos perguntando: 'O que é valor, na verdade?'”, diz ele. As implicações desta nova perspectiva são enormes: “As pessoas não precisarão se endividar com o FMI ou com as instituições de microfinanças se puderem simplesmente criar sua própria moeda comunitária”.
Mazacoin
Na reserva indígena de Pine Ridge, na fronteira entre a Dakota do Sul e o Nebraska, nos EUA, uma pequena equipe de desenvolvedores tem tentado obter não apenas crescimento econômico, mas autodeterminação econômica, por meio da internet. É um plano criado a partir de uma situação desoladora: de acordo com o diretor de habitação dos Sioux Oglala Lakota, Jim Berg, cerca de 40 mil membros da tribo vivem na reserva e 80% deles estão desempregados, enquanto 49% vivem abaixo da linha da pobreza. Além disso, a tribo tem sentido o peso da austeridade, tendo de lidar com um corte orçamentário de milhões de dólares do governo federal dos EUA.
O Tratado do Forte Laramie de 1868, firmado entre tribos nativas e governo federal dos EUA, não diz nada sobre os direitos das tribos de manterem sua própria moeda. Os sioux oglala podem tentar, portanto, ir além de uma moeda complementar – como a de Brixton e de Mombasa –, criando uma moeda de soberania limitada, que eventualmente seria substituída pelo dólar.
É mais fácil falar do que fazer.
Jimmy Emerson / Flickr CC
Entrada da reserva indígena de Pine Ridge, onde Payu Harris pretende tornar a mazacoin a moeda oficial
Quando Payu Harris, que tem ascendência Cheyenne-Lakota, deu início à mazacoin, há cerca de um ano, ele disse à revista Forbes que a criptomoeda poderia se tornar o “novo búfalo”, a base de uma nova economia. Em poucas semanas a mazacoin se tornou onipresente na imprensa que cobre assuntos financeiros nos EUA.
Embora as intenções talvez fossem boas, a atenção midiática acabou sendo prejudicial à empreitada. A princípio, surgiram muitos investidores em moedas digitais interessados, para logo em seguida abandoná-la, quando souberam que a moeda não tinha todo o apoio dos governos tribais que alguns pensaram ter. Como resultado, alguns investidores em criptomoedas consideraram a mazacoin – e ainda consideram – uma fraude. Da perspectiva da equipe que está trabalhando na moeda, no entanto, as coisas esfriaram, mas eles estão se preparando para uma escalada mais lenta e menos precária.
Do ponto de vista operacional, a mazacoin funciona de maneira bastante diferente da libra de Brixton ou do bangla-pesa. Ela não tem o dólar norte-americano como base. Não há um emissor central. Em vez disso, a mazacoin tem como base o software que está por trás do bitcoin. Embora sejam usadas com diferentes propósitos, as moedas têm muitas semelhanças técnicas. De acordo com o site da moeda, “a mazacoin é um software que qualquer pessoa pode executar em um PC ou dispositivo Android, com regras para que os computadores se comuniquem”.
Uma criptomoeda digital não é tão fácil de ser entendida como um voucher de papel. Também por isso, muitas pessoas na reserva, incluindo representantes tribais, estão hesitantes em adotar a ideia. Além da confiança do público, Harris e sua equipe precisam do reconhecimento legal do governo tribal se a mazacoin de fato pretender tomar o posto de moeda soberana. No início de 2015, Harris escreveu no site do projeto que tem trabalhado com representantes tribais para conseguir o consenso, e que está sendo bem-sucedido.
Inovação contra a desigualdade
Cada uma à sua maneira, a Libra de Brixton, a Koru Kenya e a Mazacoin estão tentando atingir um objetivo comum: fortalecer as pessoas em um mundo de desigualdade monetária, de baixo para cima. Já que governos e bancos nem sempre são os melhores agentes do crescimento, da segurança ou da privacidade financeira de uma comunidade, as pessoas merecem a capacidade de fornecer algo melhor a elas mesmas. Inovações colaborativas em todo o mundo, especialmente em comunidades empobrecidas e de grupos minoritários, convidam a um otimismo cauteloso. A maior parte dos projetos de moedas alternativas não está indexada.
Elas têm um escopo limitado. Por não serem emitidas por governos, seu potencial é inerentemente reduzido. Talvez, em um mundo ideal, por meio da regulamentação ou do fornecimento direto, governos soberanos e seus agentes devessem garantir à população dinheiro o suficiente para que pudessem viver a despeito de predadores financeiros, apoiar suas próprias comunidades, participar do comércio e manter a dignidade básica.
Enquanto isso, no entanto, pessoas corajosas estão apontando novos caminhos e criando pressão de baixo para cima. Sempre haverá erros e infortúnios. Mas também há pessoas tentando criar um novo patrimônio e colocá-lo nas mãos de quem ainda não tem o suficiente.
Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada no site da revista norte-americana YES! Magazine.