A conversa começou às 10h30 em ponto de uma terça-feira de março, dia 24, conforme combinado anteriormente. Carlos Eugênio chegou antes, como é de sua formação, e tocou a campainha, no horário. Subiu as escadas e dirigiu-se à sala de reunião.
A primeira parte da conversa não foi gravada. Seu objetivo era entender como a ALN sabia tanto sobre os empresários que financiaram o golpe militar de 1964 e que ajudariam, com a mobilização de recursos, instituições e projetos, a construir o regime que não teve um fim muito claro: teria ele acabado em 1985, com a eleição de Tancredo Neves? Ou 1988, com a promulgação da Constituição? Ou 1989, com a primeira eleição presidencial direta? Ou, ainda, em 1992, com a destituição de Fernando Collor de Mello?
Em uma aprofundada pesquisa que vem sendo realizada desde 2013, ficou evidente para nós que os alvos empresariais dos guerrilheiros da ALN, com uma frequência enorme, eram as empresas que mais colaboraram com o golpe e, principalmente, a brutal repressão contra os opositores — o caso mais conhecido é o da execução do empresário dinamarquês Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz. Foi Carlos Eugênio, o alfa da operação, o responsável pelo tiro que confirmou a morte do empresário a 15 de abril de 1971, na esquina da rua Professor Azevedo Amaral com a alameda Casa Branca.
Ou seja, a ALN sabia. Sabia, a quente, com precisão, quem eram os empresários que mais colaboravam com o regime, os que estavam evolvidos até o pescoço com a ditadura. Decidimos entrevistar Carlos Eugênio para esclarecer alguns detalhes dessa pesquisa, que resultará em um livro.
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Carlos Eugênio Paz, codinome Clemente, comandante militar da ALN (Ação Libertadora Nacional)
Alguns pesquisadores do grupo haviam os lido os livros de Carlos Eugênio, Viagem à luta armada e Nas trilhas da ALN, em que ele narra suas memórias do período. São livros emocionantes, com frases secas bem escolhidas, claramente inspirados pelas narrativas de Jack London e Albert Camus, dois de seus autores preferidos. Mas alguns desses detalhes não estavam lá.
Finda essa primeira parte, fomos almoçar. A comida acabou, e continuamos na mesa, conversando sobre amenidades e conjuntura atual, até a hora em que Carlos Eugênio precisava de mais um cigarro. Voltamos para um outro espaço, e decidimos gravar. Mais algumas grandes histórias e percebemos que o som não estava funcionando. Acontece. Suspiramos, pedimos muitas desculpas ao entrevistado, arrumamos umas bolachas e um café e seguimos em frente — desta vez com o som testado e funcionando, retomando alguns pontos discutidos anteriormente.
Nessa entrevista, Carlos Eugênio tratou de temas e ações essenciais para entender a Ação Libertadora Nacional, uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro agrupada por Carlos Marighella em 1967, seu programa político e sua maneira de atuar.
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No primeiro vídeo da série inaugurada nesta terça-feira (28/04), Carlos Eugênio conta como descobriu que o Cabo Anselmo, um infiltrado pelo regime na Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR de Carlos Lamarca, era um traidor. No segundo, avalia que, do ponto de vista institucional, a grande vitória da luta armada contra o regime de exceção foi a campanha, promovida pela ALN, em defesa do voto nulo nas eleições de 1970. Na última parte, Carlos Eugênio conta como viveu no exílio em Paris, estudou violão e retornou ao Brasil, além de dar detalhes de suas relações familiares — com o pai, um ex-integralista, e a mãe, que ele, inclusive, “recrutou” para a ALN.
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Descobrindo o traidor
José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, teve uma participação ativa nos protestos dos sargentos da marinha em 1964, pouco antes do golpe. Há forte suspeita de que o líder, depois do golpe, “fugiu” pra Cuba e retornou ao Brasil em 1970. Preso por Sergio Paranhos Fleury, do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, ele alega ter mudado de lado passando a atuar como agente infiltrado.
“Eu fazia contato com a VP [Vanguarda Popular Revolucionária, grupo do qual a principal liderança militar foi o capitão Carlos Lamarca] na época com o Moisés, o [José] Raimundo [da Costa], o sargento Moisés, grande companheiro. A gente se tornou, inclusive, amigos. E Moisés um dia me disse: olha, o cabo voltou. Hoje em dia a gente sabe que nem cabo ele foi”, conta Carlos Eugênio Paz.. José Raimundo da Costa viria a “cair”, ou seja, a ser preso pelos agentes da ditadura e levado ao DOI-Codi, onde seria morto, em 1971, justamente devido à infiltração do Cabo Anselmo.
“A gente tinha notícias do cabo Anselmo em Cuba. De repente, saber que ele estava aqui… “. Os contatos avançaram, e Anselmo insistia em conhecer o “Clemente”. “Mas eu falei, ué, mas por quê? Daí um dia eles disseram: o cabo quer marcar um ponto. E eu disse seriamente: por que o cabo quer marcar um ponto comigo?” A explicação é que o cabo queria saber como Clemente, “um cara que já estava sobrevivendo a muito tempo”, se organizava para se manter atuante na luta armada na clandestinidade, “como você faz pra não cair”.
Um dia, ao conduzir o companheiro Paulo de Tarso Celestino, conhecido como “Meu Avô” na guerrilha, para um ponto com o Anselmo, Clemente ficou dando voltas na região do Brooklin Novo, zona sul de São Paulo. “Enquanto eu dava voltas na região [antes de pegar Meu Avô novamente], senti que a região estava vigiada. Quando ele entrou, eu falei, pega aí a matraca que eu estou sentindo uma área muito carregada, tá minada”.
Pouco à frente, a suspeita se confirma: “Quando eu olhei assim, tinha à nossa direita um Opala com o [delegado do Dops, Sérgio Paranhos] Fleury dirigindo. Com um cara ao lado direito que eu não vi a cara e um cara no banco de trás que eu vi menos ainda a cara. Mas era o Fleury.” “Eu sempre pensei que fosse pra esconder o Anselmo.”
A ALN recebeu informações da cadeia de que Anselmo teria sido preso, junto com outro militante, o que não se confirmou do lado de fora.
Esses dois episódios fizeram Clemente dizer aos companheiros: “Vocês não estão enxergando, esse homem está colaborando. Está bom, vamos marcar o ponto. Agora eu quero”, lembra, na entrevista. “Montei o esquema. Coloquei alguns companheiros legais para andar na área e eles me disseram: esquema nós não vimos ser montado. Daí falei: está bom, vou entrar no ponto.”
O encontro ocorreu na Vila Mariana, no fim do mês de junho de 1971 — “dia 29 ou 30″. Mas Carlos Eugênio não confiava no interlocutor. “E realmente o camarada só sabia me fazer perguntas: 'Como você monta aparelhos?'; 'Ah, eu tenho um casal de velhinhos que aluga umas casas para mim, e eu sou o sobrinho deles, às vezes eu compro uma casa, ponho outro casal, é sempre assim que eu monto, me apoiando nas pessoas'. Tudo mentira, eu menti descaradamente.”
Na volta ao carro, a desconfiança cresceu: “Eu entrei no carro e falei: Iuri, faz uma meia volta, vamos atrás desse cara, vamos ver aonde ele vai.” Rapidamente, a suspeita foi confirmada: “Aí desvendamos o Cabo Anselo. Por quê? Quando chegamos na ruazinha em que ele tinha entrado, tinha uma Kombi parada, dois fuscas, o delegado Fleury, um monte de tiras e o Anselmo conversando com isso tudo.”
“O Fleury olha pra gente e corre pra entrar no carro. A gente se manda.” Começa uma cena de perseguição pelas ruas da Vila Mariana, descritas em detalhes, como se tivessem ocorrido ontem. “Quando fomos chegando, os caras atrás.”
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Prevendo que seriam cercados, Carlos Eugênio diz a Iuri que não havia alternativa a não ser fazer meia volta e enfrenta os repressores. “Quando estava quase chegando no fim da Jorge Tibiriçá, ele dá um balão, eu pego uma Lugger 9 mm, e nisso a Kombi se atravessa na rua, para barrar nossa passagem, os dois fuscas vão pro lado e os caras vão para o matagal, para ficarem atirando na gente. Não ficou um vidro em pé nesse carro.”
Uma bala passa tão perto da orelha de Iuri e a esquenta, mesmo sem tocar. Clemente pega sua 9 milímetros, e Iuri começa a forçar a passagem, como bate e voltas, no pequeno espaço entra a Kombi e um carro estacionado, até conseguir liberar. “Eu gastei uns quatro ou cinco pentes de Lugger, depois eu soube que eu acertei, quer dizer, eu errei um tiro no Fleury. Se eu só acertei o nariz, eu errei.”
Iuri consegue, afinal, romper a barreira e escapar do cerco. Assim que podem, os quatro guerrilheiros descem do veículo baleado e pegam um outro carro. Esse carro seria, em seguida, abandonado na Aclimação, na rua Pires da Mota.
* Colaboraram Vitor Sion, Felipe Amorim, Rodolfo Machado, Laisa Beatris e MHG. Edição do vídeo de Dodô Calixto.