Niterói. Manhã de segunda-feira. 27 de abril de 2015. Inês, aos 72 anos, enquanto dorme, exala todo o ar de seu corpo e silencia. Em sua existência, foi mestre em duas artes — a de calar e a de dizer.
Tânia Rêgo/ Agência Brasil
Inês Etienne Romeu durante audiência na Comissão da Verdade
O sequestro
Manhã de segunda-feira. 7 de dezembro de 1970. Rua Conde de Baependi, Laranjeiras, Rio de Janeiro. Giovanni Enrico Bucher, embaixador da Suíça no Brasil, sai em seu Buick, dirigido por um motorista e acompanhado por um agente da polícia federal encarregado de sua segurança. Faz o trajeto de sempre. Um Aero Willys bege se choca contra o veículo. Um Fusca turquesa dirigido por Inês Etienne Romeu, codinome Alda, dá marcha-a-ré e bloqueia o carro do diplomata, que tentava evadir. Um Fusca branco estaciona perto, simulando uma pane.
Carlos Lamarca, no comando da operação, dá dois tiros no policial. O embaixador é levado para um cativeiro. A ação, conduzida pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), é parte do plano de três sequestros, que deveriam ser realizados próximos ao aniversário de um ano de morte de Carlos Maringhella. Os outros representantes internacionais seriam o cônsul japonês Nobuo Okushi e o embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben. A tática já funcionara com o embaixador norte-americano no ano anterior. Os reféns, capazes de alertar a mídia internacional e romper o bloqueio, seriam trocados por 200 presos políticos.
A troca
Como resultado direto do sequestro do suíço, após 38 dias de negociações entre os guerrilheiros e a ditadura militar, setenta presos políticos são libertados dos porões da ditadura militar e conduzidos para asilo no Chile. Sábado. 16 de janeiro de 1971. O embaixador é solto no mais longo sequestro político do Brasil.
O espírito
São Paulo. Avenida Santo Amaro, entre os números quatro mil e quatro mil e duzentos. Manhã de quarta-feira. 5 de maio de 1971. Inês Etienne Romeu é presa pelos agentes do delegado Sérgio Paranhos Fleury. É levada para o DEOPS. Espancada. Pendurada no pau-de-arara. O primeiro impulso é silenciar. A dor é a mãe do grito. Inês grita, mas não fala. Na tortura, o maior inimigo do silêncio é a resistência, física e psicológica. Enquanto ainda sobrava uma réstia de força em seu espírito quebrantado, era preciso não trair. A causa… Seus companheiros… Precisa proteger seu endereço na Guanabara para não entregar alguém. O único modo de não trair é trair. Precisa falar antes que suas forças acabem. “Haverá um encontro com um guerrilheiro. Em Cascadura. No Rio.” Naquela mesma tarde, um carro leva Inês à capital fluminense para a tocaia. Fazem o reconhecimento do ponto pela noite. Ela dorme na cela de uma delegacia local.
O ônibus
Meio dia. 6 de maio de 1971. Inês é conduzida novamente pelos agentes e liberada próximo ao local indicado. Prefere calar-se. Na primeira oportunidade, atira-se sob as rodas de um ônibus. Dilacerada, semiconsciente, ainda vive. Valiosa demais para morrer. É levada ao Hospital da Vila Militar, onde recebe transfusão de sangue. É quase imediatamente transferida para o Hospital Carlos Chagas, registrada sob o nome de Maristela de Castro, e permanece somente o tempo necessário para os primeiros socorros. Rapidamente a transportam para o Hospital Central do Exército.
Poucas horas depois seu quarto é invadido por agentes incumbidos de interrogá-la. São impedidos pelo médico que a atendia. “Estamos em guerra”, grita, sem sucesso, um dos milicos. O doutor recusa, exigindo a permissão expressa do diretor do hospital. Ganha tempo.
Dois dias depois, Inês é vendada, jogada na traseira de uma caminhonete estacionada no pátio da instituição de saúde e levada às pressas a um paradeiro desconhecido. Já durante a viagem, começaram a interrogá-la. Sente ainda as dores do atropelamento e a frustração de ter fracassado e de permanecer viva, temendo que o pior ainda viesse. Inês estava certa.
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A casa da morte
Petrópolis. Sábado. 8 de maio de 1971. Rua Arthur Barbosa, 668. Casa de propriedade do empresário Mario Lodders. Isolada e praticamente sem vizinhos. Local de fino acabamento. Agora residência da presa política e desaparecida Inês Etienne Romeu. Incomunicável, ninguém, a não ser seus captores, sabe seu paradeiro. É depositada sobre uma cama de campanha, com as iniciais C.I.E. (Centro de Informações do Exército) gravadas nos lençóis. Recomeça o interrogatório. “Onde está o dinheiro da organização? Quais seus membros? Quem é Rachel? Onde ficou escondido Lamarca?”
A rotina de sua hospitalidade inclui espancamentos, choques elétricos e estupros. No inverno gélido da região serrana fluminense, dorme nua sobre o chão úmido de cimento. Tenta novamente o suicídio, mas é mantida viva pelos médicos da morte. Inês permanece em silêncio. Já é claramente uma causa perdida como fonte de informação. O então capitão Freddie Perdigão Pereira, codinome doutor Roberto, ordena que as torturas continuem mesmo assim. Inês apanha tanto a ponto de ficar irreconhecível. A morte seria lenta. Nunca deveria sair viva daquela casa em Petrópolis.
O “suicídio”
Há uma campanha internacional que denuncia a prisão clandestina da revolucionária. Segunda-feira. 9 de agosto de 1971. Inês já era dada como morta nos meios militares. Seus pais escrevem ao general Sylvio Frota, comandante do I Exército, para pedir que seu corpo seja entregue à família. Inês secreta e teimosamente vive. Diante da situação, os algozes a convencem de que o suicídio é a única saída honrosa. Ela pede um revólver. Mas nenhuma clemência é concedida. Não deve morrer na casa clandestina. O suicídio deve ser público, novamente atirando-se sob um veículo em lugar movimentado. Havia já um histórico. Tudo ficaria acobertado. Inês, quase sem reação, concorda.
Quarta-feira, 7 de julho de 1971. A presa é levada do local. Inês, naquele período de convivência com seus captores, aprendeu a gritar. Ao ser conduzida a um local público para “suicidar-se”, num gesto instintivo de sobrevivência, agarra-se às pernas de um dos agentes, enquanto chora e grita incansavelmente, chamando a atenção de quem passava. Ficou arriscado demais. Rapidamente é reconduzida a seu endereço em Petrópolis.
O castigo
O castigo pela desobediência vem severo. Choques elétricos. Pancadas. Telefones. Palmatórias. Banhos gelados na madrugada. É obrigada a limpar a cozinha nua e a submetem a repetidas humilhações e novos estupros. Algo já insondável impede que a matem.
19 ou 20 de julho de 1971. Doutor Pepe, outro codinome, conta-lhe terem chegado a um veredito. Inês deve aceitar o papel de agente infiltrada em sua própria organização de origem. Para garantir que não desobedeça, forjam uma delação contra a irmã e a obrigam a assinar. Ensaiam minuciosamente o que deveria fazer a seguir. É obrigada a realizar uma gravação em que confessa ser agente infiltrada a pagamento pelo governo e no qual afirma ter sido muito bem tratada. Por último, a filmam contando notas de dez cruzeiros e lendo seu “contrato de trabalho” com o regime. Seria traidora, de qualquer modo, no plano dos milicos.
Conspiram a derradeira vingança contra sua resistência inquebrantável. Tudo seria usado contra ela, caso não cooperasse. Inês concorda verbalmente, mas, em segredo, pensa, em sua última réstia de sanidade, que sair dali seria o único modo de quebrar a incomunicabilidade.
A “farsa”
Segunda-feira, 9 de agosto de 1971. Inês ouve conversas entre seus captores de que seria atropelada assim que saísse. Para não colaborar com a farsa de uma morte acidental, corta os pulsos. Enquanto perde muito sangue, decide lutar por sua vida e uma súbita esperança de que denunciaria seus captores um dia a faz gritar pelo carcereiro. “Sua comunista filha da puta, eu sabia que não podíamos confiar em você.” “Você quase destrói um trabalho de anos.”
A trama permanece. Decidem libertá-la com um nome falso. É advertida de que, caso se entregasse às autoridades, seria “suicidada” na prisão. Mais um erro dos milicos, talvez o único inconsciente. Na memória de Inês, está o número de telefone da casa que, por descuido, ouvira. Estão nomes de companheiros torturados e mortos na casa. Estão os codinomes de seus captores e torturadores, inclusive do médico responsável por ela. Ela os guarda consigo, em silêncio. Para ser solta, deve passar por mínima recuperação física e psicológica. Inês não entende a razão de sua liberdade.
A soltura
Noite de quarta-feira. 11 de agosto de 1971. Acreditando que seu plano seria infalível, os militares a jogam na porta da casa de sua irmã em Belo Horizonte. Inês está reduzida a 32 quilos. É hospitalizada na capital mineira.
Quinta-feira. 16 de setembro de 1971. Inês recebe uma inesperada visita no hospital. Doutor Pepe apresenta-se como Dr. Pedro Batista. Na presença da mãe e da irmã de sua ex-prisioneira, conversam casualidades. Ao sair, lhe diz que tudo o que combinaram permanece de pé. Era claro que Inês estava sendo vigiada.
O médico retorna no dia seguinte e lhe passa as instruções. Deve ir ao Rio e internar-se em um convento (que não fosse o das dominicanas), para se recuperar e onde semanalmente seria visitada por um deles. Deve atuar como agente do governo e, assim que restabelecida, entregar os remanescentes de sua organização aos militares. “Aí estariam quites e poderia fazer o que quisesse.” Se tentasse fugir ou qualquer outra coisa, os conteúdos gravados e assinados por ela seriam divulgados e sua irmã, presa. Estava ameaçada de morte onde estivesse.
A prisão
Durante o período de internação, registra tudo o que se lembra em documento. A família de Inês, numa manobra arriscada, com a ajuda de advogados, consegue oficializar sua prisão. Parece a única possibilidade de afastá-la do risco de morte e da vigilância da operação clandestina. Após recuperar-se, é transferida para o presídio Talavera Bruce, no Rio de Janeiro. É condenada à prisão perpétua, expediente legal autorizado pelo regime de exceção. Regime de muitas exceções.
Quarta-feira. 29 de agosto de 1979. Após oito longos anos de encarceramento, graças à Lei da Anistia, promulgada no dia anterior, Inês é finalmente libertada. Há quem afirme que foi a última presa política a ser solta no Brasil.
A voz
Fevereiro de 1981. Inês consegue localizar a Casa da Morte em Petrópolis. Encontra também seu ex-proprietário. É o momento de falar. Apoiada pela OAB, pela ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e pelas famílias dos desaparecidos, Inês denuncia a existência de um dos piores antros de torturas durante a ditadura, como sua única sobrevivente. Vai ao consultório do médico e ex-militar Amílcar Lobo, codinome doutor Carneiro, reconhecê-lo. Confronta-o. Às vezes, nossos crimes têm rosto. Como resultado, o registro profissional dele foi cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro.
A dor
Quarta-feira. 10 de setembro de 2003. Em seu apartamento na Rua Maria Antonia, em São Paulo, Inês é encontrada caída e ensanguentada. Aos 61 anos, assombrada pelos fantasmas da ditadura, tenta novamente o suicídio.
É levada à Santa Casa. Eu estava lá, com Vilma Peramezza, nossa grande amiga e que me apresentara Inês em ocasiões mais felizes. Durante longas horas espera-se por qualquer notícia. Diria finalmente a jornalista e também amiga de Inês Roseli Tardelli: Inês é viva!
A equipe médica disse que, se Inês tivesse o poder de escolher um ponto para apagar suas piores memórias, ela não poderia ter sido tão precisa. Restam-lhe as boas memórias de infância, num tempo em que os militares atuavam em defesa da pátria e eram apenas homens de uniforme. Inês fica sob os cuidados de sua família em Belo Horizonte. Vai recuperando-se aos poucos, com a ajuda de médicos e fisioterapeutas. Resiste.
A denúncia
Terça-feira, 25 de março de 2014. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Audiência pública da Comissão Nacional da Verdade sobre a Casa da Morte de Petrópolis. Inês, apesar de sua condição precária, identifica por fotos seis torturadores e carcereiros e nove militantes de esquerda assassinados naquele local, onde permaneceu por 96 longos dias. Os grupos que investigam o caso acreditam que mais de vinte pessoas foram torturadas e assassinadas naquela instalação clandestina mantida pelo Exército brasileiro. A História é essa ferida aberta. Alguns de seus fantasmas caminham entre nós. A memória, essa teimosa resistência, sobrevive. Inês é viva.