Kristina Alexanderson / Flickr CC
Amamos a internet, mas sabemos lidar com os dilemas éticos que ela nos coloca?
O download de conteúdo da internet atenta contra os direitos autorais? É ilegal ou imoral fazer isso? Estamos violando nossa própria intimidade ao postar fotos pessoais em nosso perfil do Facebook? O que acontece com os dados que fornecemos ao nos registrarmos como usuários em uma loja online? Como evitar um ciberataque a nossas contas bancárias? É ético que um governo vigie e colete dados sobre seus cidadãos?
Estas são algumas perguntas que poderíamos nos fazer como cidadãos e usuários de internet. “Devido ao contexto digital em que vivemos hoje, estas questões podem ser abordadas a partir da infoética, porém as perguntas continuam tendo a mesma profundidade que na filosofia tradicional. O que é o ser humano? O que significa moralmente ser um bom cidadão ou uma boa sociedade?”, comenta Luciano Floridi, filósofo e pesquisador do Instituto de Internet da Universidade de Oxford.
Se as revoluções tecnológicas anteriores – como a invenção da imprensa – traduziram-se em importantes mudanças sociais – “alfabetização universal”, liberdade de acesso à informação, liberdade de expressão –, a Sociedade da Informação surgida a partir da inovação informática e a internet representam um giro ético em torno de questões como “o que entendemos por privacidade ou direito à propriedade, identidade pessoal e como queremos nos apresentar ao restante do mundo – especialmente através das redes sociais, quem tem acesso a qual informação. Ou novos conceitos para analisar como o ato de hackear, a brecha digital”, para que a ética da informação busca dar sentido.
Floridi é considerado uma referência mundial nessa disciplina – a infoética ou ética da informação – que conflui o que há alguns anos se considerava ética informática e a filosofia da informação. Uma aproximação filosófica que corresponde à nova realidade resultante da confluência da Sociedade da Informação e da democratização da tecnologia, batizada pelo especialista como “onlife” [corruptela de “online” e “life”, “vida” em inglês], segundo sua publicação “The Onlife Manifesto: Being Human on the Hyperconnected Era” (em tradução livre, “O manifesto onlife: o ser humano na era hiperconectada”). Neste novo espaço, “a fronteira entre o online e o offline foi eliminada”, acredita o pesquisador.
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“99% da tecnologia de hoje se baseia na informação: nós a compartilhamos a partir dos nossos celulares, nas redes sociais, há agências e empresas que recolhem essa informação a partir de satélites… Por isso já não podemos falar apenas de uma ética com relação aos computadores, mas sim relacionada à grande quantidade de informação que nos rodeia”, explica Floridi.
“O que fazemos a partir desta corrente filosófica é adaptar a linguagem, identificar as questões que afetam neste momento a sociedade, ajudando a compreender como mudaram os problemas clássicos que motivam perguntas éticas ao longo da história. Como, por exemplo, pensar na infoesfera é uma coisa que não tínhamos feito até agora, ou mesmo nos preocuparmos em pensar o que significa possuir algo em contraposição a ter direito de uso sobre alguma coisa”, diz o pesquisador.
Em nosso uso diário da tecnologia, nos deparamos com inúmeras situações que nos fazem (ou deveriam fazer) refletir sobre suas implicações éticas. “Os exemplos mais comuns são o da coleta de dados – todos já ouvimos falar da NSA e de Snowden – porém isto está presente também em algo simples como a informação que damos quando temos um cartão de fidelidade em uma loja ou supermercado, ou as bases de dados a que todos os bancos têm acesso.”
A partir da infoética, a busca de soluções se assemelha à medicina. “Em uma primeira fase, é feito um diagnóstico: é preciso analisar o que vai mal, quais são os problemas novos ou reapresentados pela chegada da tecnologia e as particularidades do contexto digital. A segunda fase é a do tratamento ou terapia: como podemos resolver o problema, que valores queremos ver implementados, que tipo de sociedade queremos construir, como diminuímos os problemas com outras práticas para que eles não voltem a aparecer, que tipo de educação queremos para que nossos cidadãos sejam capazes de abordar estes e outros problemas no futuro.”
Ou seja, procura-se desenvolver um marco teórico que leve soluções a problemas e melhore a vida das pessoas. “É assim desde o dia número um da filosofia.” Porém, passar do marco teórico para a transformação da sociedade exige um tempo. “É absurdo se perguntar o que a filosofia vai fazer por mim amanhã. Há uma série de passos lógicos e cronológicos para serem tomados.”
“Funciona como a engrenagem de um relógio: uma roda movimenta a outra. Assim a filosofia afeta e modifica a cultura, e a cultura, por sua vez, implica mudanças legislativas e nas expectativas e no comportamento das pessoas, e isso se traduz num cenário coletivo e individual diferente”, argumenta Floridi.
Em seu livro “A quarta revolução: como a infoesfera está remodelando a realidade humana” (em tradução livre), Floridi apresenta uma sociedade muito real, a nossa, entendida como um ecossistema global da sociedade da informação onde se produzem as interações entre seres vivos, que leva o nome de infoesfera.
Um espaço que “cada vez habitamos mais” e onde se produz essa realidade onlife, onde “o espaço online e o offline confluem em tão diversas formas que já é anacrônico e perdeu o sentido continuar tentando separá-los em nossas vidas. No livro, há uma comparação com quando alguém pergunta se quando o rio chega ao mar a água nessa região é doce ou salgada: ela é as duas coisas. É nesse espaço onde convergem o online e o offline que nós passamos as nossas vidas. Quem continuar insistindo em se fazer essa pergunta é porque não está entendendo o que está acontecendo. E se não entende o problema, não pode encontrar uma solução”.
Em seus textos e em especial no livro “A quarta revolução”, o pesquisador descreve um novo entorno digital na infoesfera que “está mudando a forma como entendemos a realidade e como nós mesmos nos percebemos, o que também está modificando nossas expectativas e a maneira em que interagimos entre nós”.
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Jean-Pierre Dalbéra / Flickr CC
Crianças navegam na internet em biblioteca pública em Berlim
Nos últimos anos, estamos experimentando um conflito de adaptação do que se entende por direitos e valores humanos, como, por exemplo, a privacidade ou a transparência na informação digital, e sua interpretação no entorno online. “Quando falamos de privacidade, confluem duas questões: o que é possível e o que é permitido. É possível monitorar a vida de uma pessoa 24 horas por dia, porém isso não significa que seja legal ou ético”, diz.
Outros casos abordados pelo pesquisador são os downloads gratuitos na internet. “Não podemos pensar que se as pessoas continuam fazendo download de conteúdo, de certa forma ilegalmente, é porque a humanidade se converteu de repente em imoral ou criminosa. Vivemos em uma cultura na qual quase tudo na internet é gratuito. Não defendo uma cultura da pirataria e download livre para todos, porém foi produzida uma mudança de mentalidade, e é difícil hoje imaginar visitar uma página da Wikipedia, fazer uma busca no Google, assistir a um vídeo no YouTube e se deparar com um conteúdo sob copyright. É como passear por uma calçada e chegar a um ponto em que tenho que pagar para continuar caminhando.”
Para Floridi, está claro que a sociedade está mostrando os primeiros sinais de transformação, e isso foi feito de baixo para cima. É o que poderia ser chamado de uma micropolítica surgida do entorno digital e das redes sociais, que estão redimensionando o marco político e legislativo atual. Um dos casos mais notórios dos últimos anos é Bruxelas versus Facebook, que está sendo debatido no Tribunal de Justiça da União Europeia.
Segundo o pesquisador, este exemplo destaca os diferentes papeis dos agentes sociais e políticos: nós cidadãos temos direito de dizer aos governantes que coisas eles precisam mudar, e os políticos no governo têm o poder de mudar. “Esta é a direção para onde se move a e-Democracia no século 21 e é um exemplo maravilhoso que prova o que acontece quando muita gente se une para mandar uma mensagem aos governantes.”
Outro exemplo deste tipo de iniciativa cidadã diz respeito ao Direito ao Esquecimento no Google, que foi levado ao mesmo tribunal europeu graças ao espanhol Mario Consteja, e que coloca em xeque o direito individual dos usuários diante do novo modelo de liberdade de informação na internet. Neste sentido, Floridi – que é membro do conselho de assessoria do Google para o Direito ao Esquecimento – considera que “o impacto no que diz respeito à informação em si é praticamente insignificante”.
O Google elimina milhões de URLs semanalmente por infração da lei norte-americana sobre direitos autorais, o Digital Millennium Copyright Act (DMCA), pelo qual “o impacto é mais em termos da construção de uma nova cultura do que nos casos particulares. Uma cultura na qual esperamos ter um controle maior da nossa informação como indivíduos; e que é uma mudança extremamente significativa sobre o que se considera correto fazer e o que se consegue quando um grupo de pessoas está habilitado a decidir o que se pode ou o que não se pode encontrar na internet”.
“Eu gostaria de ver mais controle por parte da sociedade no que diz respeito aos meios de comunicação e aos governos, no lugar desse laissez-faire do livre mercado onde qualquer um pode fazer o que der na telha sempre que estiver dentro da lei”, comenta Floridi. “Este é um bom momento para a filosofia ajudar a sociedade, em conjunto com legisladores, meios de comunicação e tecnologia, para fazer um mundo melhor”, conclui.
Tradução: Mari-Jô Zilveti
Matéria original publicada no site do jornal espanhol El Diario.