Não temos uma democracia plena no Brasil. E sim algumas ilhas. Cada vez menores e mais escassas na medida em que se diminui a renda e se avança para as periferias – da cidade e do campo. Moradores de favelas, indígenas e camponeses experimentam menos os sabores de um regime que se propõe a respeitar direitos, oferecer alguma estabilidade, menos medo de que sejamos alvos de arbitrariedades.
Mesmo esse arremedo está em risco, neste março lúgubre de 2016. E muita gente não percebeu que defender algumas ilhas de legalidade não significa compactuar com quem usufrui dessas ilhas; e sim evitar que o processo seja ainda mais corrosivo. Que, no mínimo, esse arquipélago encolha, ou mesmo que seja solenemente eliminado, conforme as conveniências das elites que permitiram esses espaços de respiro.
A invasão de um encontro em um sindicato no ABC, na sexta-feira, salta como caso mais emblemático dessa ameaça. Quem tem memória e alguma noção do que significa uma verdadeira democracia sabe que vários sinais vermelhos foram ignorados. Mas há quem minimize. Muitas vezes com o argumento de que nas manifestações de 2013 ou, diariamente, nas favelas e grotões, muitos outros limites foram aniquilados.
Estão certos e estão errados. Estão certos porque, de fato, a juventude pobre e negra ou manifestantes indígenas ou vítimas dos megaprojetos de infraestrutura já sentiram na pele essas agressões – pois vivem fora dessas ilhas democráticas, ou em seus limites ambíguos. E estão errados porque defender as ilhas de quem usufruiu das benesses do sistema significa, por tabela, defender também os direitos dos excluídos.
Não se trata, portanto, de defender Lula, Dilma ou o PT porque se seja lulista, dilmista ou petista. E sim de impedir que destruam os frágeis pontos de contato com valores que celebramos em 1985. Significa defender respeito a eleições, ao voto, contra uma instantaneidade das decisões políticas que pouco tem a ver com esses valores. Significa perceber que não haverá alternância – e sim uma avalanche. Destruições.
Basta de golpismo
Um dos principais jornais do país, o Estadão, apresenta hoje em sua primeira página a síntese do avanço golpista. Título do editorial de primeira página: “Chegou a hora de dizer: basta!” É o mesmo imperativo do Correio da Manhã, em 1964, no dia em que militares e civis apeavam João Goulart do poder. E não porque Jango queria a revolução. Mas porque queria reformas de base, reforma agrária – reformas.
Como em golpes anteriores, o fantasma da “corrupção” é vendido como argumento para que se arrebentem os pactos democráticos. Esquece-se de contar ao cidadão que essa senhora precede e sucede cada governo de qualquer partido. Que ela continuará no próximo e no próximo. Porque ela representa uma força paralela ao mencionado arquipélago de legalidade; a força do capital, esse que destrói coisas belas.
Se vivemos nessas ilhas entristecidas de democracia é porque esse capital permitiu, por conveniência. Quando for conveniente a ele, as pulverizará. Cabendo aos habitantes utópicos desses territórios defendê-lo com unhas e dentes. E aqui chegamos a um problema crucial de nosso cenário político: aparentemente o arquipélago de democratas anda mais encolhido que o mosaico de democracia.
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Um exemplo prático: muita gente que defende a permanência da presidente eleita (com razão) e se revolta com a condução coercitiva de um ex-presidente (com razão) não se importaria de atentar contra essa mesma democracia caso os sinais fossem trocados. Caso, em vez de Lula ou Dilma, fosse FHC o alvo, a peça a ser destituída ou enfraquecida. Ou Alckmin. Ou Serra. Nossa democracia é uma bolinha de papel.
E o mesmo vale para outros personagens dessa comédia política. Da ambientalista com amnésia a usurpadores da palavra “socialista” ou “comunista”. Vale para personagens no campo da esquerda, para aventureiros instalados no PSOL ou para membros do PSTU que defendem o armamento das mulheres, com treinamento pelas forças policiais. Todos esses não entenderam nada da democracia, nada – e são muitos.
Reprodução
O rebelde desconhecido: Praça da Paz Celestial, Pequim, 1989
Faz-se necessário, portanto, uma crítica da democracia cínica. Mas sem jogar fora o bebê junto com a água da bacia. Problema adicional: resistências impetuosas costumam oferecer armas e argumentos para o inimigo. Que se vangloriará (com seu cinismo amplificado em alto volume) de ter impedido que “vândalos” ou “terroristas” cheguem ao poder. Lógica às favas: a ditadura como solução para a democracia.
Mais ou menos como fizeram os promotores paulistas ao pedir a prisão de Lula. Arrebenta-se com o direito de um cidadão alegando que esse cidadão violará direitos, ou ateará fogo – com palavras – às instituições. Um equivalente político dos autos de resistência, as execuções feitas por policiais sob a alegação de que os perseguidos (inocentes ou criminosos, não importa) os estavam ameaçando – sem armas.
Vítimas sem hierarquia
As paixões políticas à direita (neste caso, contam-se nos dedos os verdadeiros democratas) e à esquerda não ajudam nada na compreensão desse fenômeno entrópico. Certos ativistas monotemáticos não se importam com o quadro geral, sob a curiosa alegação de que estão mais preocupados com as “suas” vítimas. Sejam eles defensores de povos originários, ou defensores de direitos humanos como um todo.
Falta a visão do conjunto. E esse conjunto é justamente aquele mosaico – ou aquele arquipélago. Para defendermos nossas ilhas é preciso fazer um exercício de abstração: perceber que o enfraquecimento das demais ilhas (ainda que abominemos seus habitantes e seus códigos) enfraquece a todos, oferece terreno para o avanço dos que não têm um mínimo de compromisso democrático.
Sim, este domingo é um dia triste. Porque muita gente com boas e sinceras intenções, mas sem alfabetização política, sairá às ruas com Ronaldo Caiado e com o Estadão, com Bolsonaro e a Fiesp, com corruptos de carteirinha interessados apenas em tomar posse do butim. Esses brasileiros estão redondamente enganados e também estarão entre as vítimas de nossa plutocracia irresponsável, predadora e violenta.
Da sabotagem à utopia
Estamos diante de uma coleção de sabotagens e sabotadores. Defender vítimas de sabotadores significa defender o próprio território, e não passar um cheque em branco no projeto político de algumas dessas vítimas. Significa salvar um ser humano prestes a ser atropelado (por pior que ele seja), significa que não compactuamos com linchamentos, trucidamentos e pelourinhos políticos.
“Somente aqueles que sejam capazes de encarnar a utopia estarão aptos para o combate decisivo, o de resgatar o quanto de humanidade tenhamos perdido” (Ernesto Sabato, “Antes do Fim”, 1998).
Isso vale para o que o escritor argentino chama de humanidade e vale para esse barco remendado que chamamos de democracia – porque é ela (ou ao menos seus espasmos) que nos permite o exercício pleno dessa humanidade.
Publicado originalmente em Outras Palavras