Tenho pensado em Bertolt Brecht e no Gabriel Sanpêra. Brecht, escritor e dramaturgo alemão da primeira metade do século XX, escreveu um dos poemas que mais me comovem quando penso em contextos de mundo nos quais o fascismo se enraizou como mentalidade dentro do corpo civil. Avalio que nosso país tem vivido tempos sombrios, tempos de uma ditadura que nunca acabou absorvida por uma ditadura que acaba de começar. Digo isso porque nossa jovem e tão fraturada democracia não se distanciou de uma política de militarização, o que gerou a continuidade do massacre de povos originários, diaspóricos, das mulheres, das crianças, dos pobres.
O Gabriel Sanpêra também é escritor, mais novo que eu, vinte e poucos anos, talvez nem isso. Elaborou seu livro, “Fora da Cafua” (Editora Urutau, 2018), pelo celular por não ter outros meios de escrita e acreditar que precisava lançar sua poesia no mundo. O Gabriel é um jovem poeta negro, periférico, de Minas Gerais.
Brecht e Gabriel parecem se comunicar nesse momento através do mais profundo anseio político de futuro e liberdade que guardo no peito.
Brecht tem um poema chamado “Aos que Virão Depois de Nós”, o Gabriel parece ter respondido aos apelos escritos pelo alemão através também de um poema divulgado em sua página.
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Gabriel Sanpêra, autor do livro "Fora da Cafua" (Editora Urutau, 2018) (Foto: Paloma Franca Amorim)
Brecht fala de um lado da existência, agora como uma inspiração que não habita um corpo desse século:
Vocês, que vão emergir das ondas
Em que nós perecemos, pensem,
Quando falarem das nossas fraquezas,
Nos tempos sombrios
De que vocês tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através da luta de classes,
Mudando mais seguidamente de países que de sapatos, desesperados!
Quando só havia injustiça e não havia revolta.
Nós sabemos:
O ódio contra a baixeza
Também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
Faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
Que queríamos preparar o caminho para a amizade,
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
Em que o homem seja amigo do homem,
Pensem em nós
Com um pouco de compreensão.
Sanpêra do lado de cá responde:
Erguer a cabeça
Sem desanimar
Para que sejamos os sonhos
de nossos ancestrais
Parece que posso assistir a esse diálogo como me fizesse invisível, com a atenção à espreita, a fim de captar o circuito de microfascículos, o detalhe, a pausa de semínima, responsáveis pelo abraço caloroso entre um poeta alemão de esquerda que morreu lutando incansavelmente contra um processo nazifascista específico, de totalitarismo europeu, e um poeta brasileiro, que sempre viveu na pele o fascismo perpetrado através da violência racista de todo dia, em um país que não reconhece sua linhagem escravocrata, preconceituosa e discriminatória.
Isso que busco no encontro entre os dois autores dizem chamar-se esperança.
Talvez a vida do Sanpêra não seja contada de forma tão gloriosa quanto a de Brecht, por diversas razões que só a dominação cultural poderia explicar, mas há um trunfo que ninguém lhe arranca: Sanpêra está vivo. Respira. Produz. Anda. Como jovem negro, é parte da resistência humana contra o projeto genocida do colonialismo moderno.
Esse projeto que caminhará para a conclusão da barbárie, há décadas instaurada, se elegermos um homem que fala de negros como se falasse de animais, um homem que insinua que crianças de quatro, cinco anos, devem aprender a pegar em armas, um homem que afirma que algumas mulheres servem para serem estupradas outras não, um homem que tem por leitura de cabeceira o livro de Brilhante Ulstra – um dos maiores responsáveis pelas torturas e agressões aos Direitos Humanos no período da Ditadura Militar latino-americana.
As poesias de Brecht e de Sanpêra não estão isoladas de contexto histórico, porque afinal o exercício de ressignificação do mundo se dá a partir da vida e não de uma zona experiencial absolutamente abstrata e indetectável. Os dois autores estão falando com o próprio tempo, tentando refletir aspectos ideológicos, sensíveis, daquilo que lhes surge como narrativa da carne e do osso.
O mundo já esteve doente em outros momentos, temos passado por mais um período de febres e convulsões, e por isso mesmo não podemos perder a lembrança do que nos manteve em luta até agora.
Eu, que também vivo da escrita, sei que o meu ofício nessa terra é a palavra, essa ferramenta da linguagem que nos conduz à escavação das razões de nossa humanidade até virá-la do avesso, de ponta cabeça. Permitimo-nos olhar suas entranhas, seus feixes de luz, a morte ao revés.
Mas para ter a palavra eu preciso ter o agente da palavra, preciso sabê-lo vivente, com casa, comida, trabalho e dignidade. Eu preciso do outro para escrever e, portanto, para fazer-me leitora e humana. Eu preciso do outro. Eu preciso de Gabriel Sanpêra, eu preciso de Brecht. Eu preciso danadamente de Marielle Franco.
Por causa disso eu digo não ao fascismo, ao extermínio de nossas vivências simbólicas e materiais.
Para que não deixemos de ser, como disse Sanpêra, o sonho de nossos ancestrais. Nossas bisavós, avós, mães. Talvez Brecht também tenha sonhado conosco, em um rápido cochilo na escrivaninha onde, além da máquina de escrever, está o cinzeiro a fazer-se cama de repouso do cigarro, sua fumaça, os desenhos no ar. Com o cheiro de alcatrão tomando-lhe as narinas, Brecht faz um barulho de ronco leve compassado. No mesmo ritmo do peito que sobe e desce pela respiração, Brecht move-se maravilhado dentro do sonho de uma América livre, de um Brasil do século XXI, do país um jovem escritor negro lançando seu primeiro livro, território de um povo que se mantém forte, resgatando para si permanentemente a beleza e a justiça que a todo custo tentam lhe usurpar.