No dia 25 de outubro de 1975, o então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, se apresentou ao Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, após ser intimado no dia anterior por agentes do II Exército para prestar depoimento sobre suas supostas ligações com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Vlado só sairia de lá no dia seguinte, morto após sessões de tortura, sob falsa alegação de suicídio. O fato se consolidou como um dos marcos para a derrocada da ditadura civil-militar brasileira, graças às inúmeras forças que combateram à época para a memória de Vladimir Herzog não ser apagada e pela verdade vir à tona. Nesse sentido, o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e o jornal Unidade foram fundamentais para a luta pela memória de Vlado, pela justiça e pela democracia.
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O jornal Unidade do Sindicato dos Jornalistas foi revitalizado e modernizado depois de 1975, quando a chapa encabeçada pelo experiente jornalista Audálio Dantas saiu vitoriosa nas eleições para a direção do Sindicato naquele ano. Porém, a história do jornal é muito mais antiga e começa com sua criação em 1955, batizado de Unidade Jornalística. Com pouco destaque, a publicação enfrentava dificuldades de circulação por falta de profissionais e falhas na periodicidade.
Quando a chapa progressista de Audálio Dantas ganhou as eleições de 1975, o Unidade e o sindicato passaram por transformações que permitiram à organização maior participação no cenário político do país. “A comunicação do Sindicato já era um dos problemas, porque era uma comunicação burocrática, feita por uma revista que aparecia de vez em quando. E, no nosso programa, estava um jornal mensal”, conta Dantas.
José Hamilton Ribeiro, outro grande jornalista que fazia parte da diretoria eleita naquele ano, ressalta a importância e a dimensão das transformações ocorridas com o jornal. “Com o Audálio, aí, sim, passou a ser uma publicação de profissionais, feita por profissionais”, afirma José Hamilton, lembrando os grandes nomes do jornalismo brasileiro que passaram a colaborar com o jornal.
A primeira edição do “novo” Unidade saiu em agosto de 1975, trazendo como manchete uma reportagem sobre a situação ruim do mercado de trabalho do jornalista à época. Nessa edição, Dantas assina o editorial, em que diz que “o jornalista de verdade é aquele que, sob fogo cruzado dos interesses, luta por um direito que deve estar acima de todos os outros: o de informar”. Com esse espírito, renascia o Unidade, reivindicando problemas da categoria e se posicionando no quadro político brasileiro.
Vlado assassinado
O assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI iria transformar a história do jornal, gravando sua importância na luta contra a ditadura militar. José Hamilton ainda se lembra de como recebeu a notícia da morte de Vlado e do horror que tomou conta dele e de todos os seus colegas. “Eu estava em Ribeirão [Preto], na diretoria do Audálio, quando há o episódio Herzog. Eu vi uma notícia no jornal que dizia assim: ‘Comunista se suicida na prisão’, fui ver e era o Vladimir Herzog”, conta o jornalista. “Aí eu liguei para o Audálio, que disse: ‘Zé Hamilton, isso é um horror, um crime hediondo, venha para cá’”.
O momento foi marcado por muita tristeza e tensão, relembra Dantas, que defendeu que a categoria permanecesse unida em torno do sindicato. A farsa do suicídio e a foto do corpo de Vladimir Herzog divulgada pelos militares revoltaram parentes e colegas. A versão absurda apresentada pelo Comando do II Exército de que Vlado teria se enforcado com o próprio cinto, amarrado a uma das barras da grade de sua cela, não foi aceita pela família Herzog e pelo Sindicato dos Jornalistas, que começaram a se organizar para apurar a morte do então diretor da Cultura.
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Logo a notícia da morte de Vlado se espalhou. Manifestações começaram a aparecer por todo o país, e a imprensa internacional deu considerável destaque ao caso. Uma semana depois do ocorrido, o Sindicato dos Jornalistas, junto com a viúva de Vlado, Clarice Herzog, organizou um culto ecumênico na catedral da Sé, celebrado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright. O ato religioso atraiu mais de 8.000 pessoas, que transbordaram para fora, pelas escadarias da igreja e pela Praça da Sé, marcando o primeiro grande protesto contra a ditadura desde 1968. A mobilização, como se veria mais tarde, foi um dos grandes atos do processo de redemocratização do Brasil.
Nº 04, novembro de 1975
Parecia claro a todos os envolvidos com o Unidade que a próxima edição deveria ser dedicada exclusivamente ao caso do jornalista assassinado aos 38 anos de idade pela ditadura. A capa, inteiramente preta, estampava o luto da categoria, e o desenho do artista plástico Hélio de Almeida eternizava Vlado como um ícone, no canto inferior direito da página.
A contracapa trazia uma foto do culto ecumênico na catedral da Sé, colocando em evidência a quantidade de pessoas reunidas no local. Em editorial intitulado “Nosso medo, nossa coragem, nossa fé”, Dantas escrevia sobre o choque que sentiu ao receber a notícia da morte do jornalista. Sobre os medos da mobilização e o papel do Sindicato, encerrava dizendo: “Morreu um jornalista, morreu um homem. Somos fracos, somos poucos, mas ainda não morremos. Nem perdemos nossa fé na Justiça”.
“A edição de n.º 4 do jornal Unidade foi dedicada quase inteiramente ao caso Herzog”, relembra Dantas. “Essa edição foi um marco histórico na imprensa brasileira” e marcou o começo do fim da censura, destaca o então presidente do sindicato.
Outro papel fundamental assumido pelo Sindicato dos Jornalistas foi o de encaminhar à Justiça Militar, em 1976, o manifesto “Em nome da verdade”, no qual 1.004 jornalistas subscritos questionavam a versão oficial do suicídio de Vlado e pediam revisão completa dos fatos. Em 1978, a União foi condenada pela prisão ilegal, tortura e morte de Herzog. Mais tarde, em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos confirmou oficialmente o assassinato e concedeu à família dele uma indenização, que não foi aceita sob a justificativa de que o caso não deveria ser encerrado e que as investigações sobre a morte do jornalista deveriam continuar.
Em 2012, após os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, a versão do suicídio foi totalmente descartada. O atestado de morte de Herzog foi, então, retificado, e passou a constar que a a morte “decorreu de lesões e maus tratos sofridos em dependência do II Exército-SP (DOI-Codi)”.
Reprodução
“Com o Audálio, aí sim, passou a ser uma publicação de profissionais, feita por profissionais”, afirma José Hamilton
“Jornal dos jornalistas”
Depois que a diretoria de 1975 comandada por Audálio Dantas assumiu o Sindicato, o jornal Unidade nunca mais seria o mesmo. Porém, segundo o jornalista , as diretorias que seguiram cometeram alguns erros no comando do jornal. Para José Hamilton, “depois que o Audálio saiu, por uma razão ou outra, as diretorias que vieram depois, contrataram um jornalista para fazer o Unidade. Eu achava aquilo estranho, como um sindicato de jornalistas cotrata jornalistas? Achava aquilo incômodo”.
Em 1992, o jornalista Antonio Carlos Fon vence as eleições para a presidência do Sindicato e chama José Hamilton para a vice-presidência. De um acordo entre os dois, ficou acertado que Hamilton cuidaria do jornal Unidade e retomaria o projeto de onde “o Audálio parou”. “Eu queria trazer de volta o jornal para os tempos do Audálio. Então chamei grandes jornalistas como Mino Carta, Raimundo Pereira, Narciso Kalili, Paulo Caruso e o Unidade voltou a ser o ‘Jornal dos Jornalistas’”, conta José Hamilton.
O projeto de José Hamilton durou até 1996. A partir daí, o Unidade passou por outras transformações após a gestão de Fon e voltou a ser comandado por um jornalista contratado.