Agressões não podem ser tergiversadas, e por isso, dentro de um sistema democrático, são totalmente repudiáveis os episódios que vimos nos últimos dias, em distintas feiras literárias, tendo como alvo jornalistas de vertentes bastante diferentes, como são Glenn Greenwald e Miriam Leitão, mas cujos responsáveis são os mesmos: os setores mais radicalizados dessa direita que idolatra Jair Bolsonaro e Sérgio Moro.
Embora o repúdio tenha que ser incondicional, existem certas questões que não o tornam menos condenável, mas que precisam ser considerados se queremos um diagnóstico e um tratamento corretos contra esse ódio instalado no país, que, se chegou neste ponto que vemos, é porque pode ir muito além.
O problema de quando essa questão atinge figuras do jornalismo mainstream, como Miriam Leitão, Marco Antônio Villa, Reinaldo Azevedo e Rachel Sheherazade, é que se torna inevitável perguntar onde está a autocrítica. Afinal, os quatro citados, que hoje estão entre as vítimas do morobolsonarismo, foram constantes fomentadores do ódio na política durante anos, sempre atiçando o público contra as administrações petistas, e muitas vezes utilizando informações falsas. E não há nem uma palavra neste texto utilizando este argumento para justificar os ataques a eles. Pelo contrário, disse nos dois parágrafos anteriores e repito neste terceiro: nada justifica uma agressão por diferenças políticas, a jornalistas ou a quem quer que seja.
Contudo, tampouco se pode aceitar o cultivo do ódio na política promovido por eles e por outros jornalistas dos meios por onde passaram. Nem atrelando isso aos interesses políticos e econômicos dos seus patrões, ou creditando a uma supostamente inevitável obediência a esses interesses; e menos ainda ao cínico argumento de que “o jornalismo tem que ser crítico”, porque embora este princípio tenha sua razão, é bem possível ser crítico sem ser manipulador.
Tanto é verdade que o argumento da crítica não se aplica neste caso, que esses mesmos jornalistas são a prova disso: passaram anos tergiversando informações para atacar os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, a ponto de se prestarem à tarefa da criação de narrativa que gerou um golpe de Estado em 2016, e que também foi caldo de cultura para a tomada das ruas pelos grupos reacionários que levaram Bolsonaro ao poder; e foi só então, diante desse governo de ultradireita, que tentaram fazer a crítica na medida correta, apontando os equívocos e incompetências deste governo, e se depararam com a ironia de que seus abusos jornalísticos foram permitidos pelo republicanismo ortodoxo dos petistas, mas esse atual jornalismo questionador moderado que utilizam contra o bolsonarismo passou a ser vítima das hordas que eles viram crescer nos últimos anos sem dar importância, talvez achando que eram domesticáveis.
Nesse sentido, a prisão de Lula se torna o ponto máximo dessa cultura de ódio que o jornalismo hegemônico ajudou a instalar no país. Depois de emplacar um golpe de Estado, configurado através de um processo de impeachment no qual não havia crime de responsabilidade, a mídia hegemônica aumentou ao máximo a aposta, jogando todas as fichas no projeto da Lava Jato de enclausurar e proscrever o maior líder petista.
Para isso, conclamou as massas para grandes marchas “contra a corrupção”, onde era muito fácil identificar o ódio a Lula e ao PT como elemento principal, e o ódio à esquerda como um todo como um efeito secundário, mas claramente identificável. Assim como também era visível a extrema direita que saia do armário e colocava o seu bloco na rua. Ou por acaso eles não viram e não ouviram os vários e barulhentos carros de som pedindo intervenção militar? Ou vão se fazer de ingênuos e dizer que não perceberam que essa gente, por mais que fossem “minoria” (como se alegava na época), era mais organizada? Tão organizada que, é preciso dizer, muitos daqueles que outrora defendiam uma direita em versões menos toscas e violentas, acabaram assumindo o discurso da esquerdofobia.
Essa mídia organizada conseguiu mobilizar o ódio instalado na sociedade e canalizá-lo à necessidade de se condenar Lula, mesmo que sem provas, para “dar uma sensação ao país de que se está combatendo a corrução”. Basicamente, transformou-se o fetiche judicial de grande parte da elite brasileira (especialmente a midiática) em uma exigência desses grupos raivosos, que passaram a ser tratados como “a voz das ruas”. Esse rótulo tornou os grupos tão empoderados que agora já não abrem mão dessa e de outras exigências.
Todos os elementos desse ódio político sempre estiveram presentes, desde que Aécio não aceitou a derrota de 2014. A partir dali, o Brasil presenciou cenas horríveis de gente sendo xingada, agredida ou morta por usar uma camiseta vermelha, ou por defender os direitos humanos das mulheres negras e dos moradores das favelas do Rio, ou por dizer que votou no Haddad, ou até mesmo por estar lendo uma revista Carta Capital no avião (este último caso, aliás, foi cometido por membros do MBL, grupo que agora também se faz de vítima, dizendo-se “vítima da intolerância” dos bolsonaristas mais ortodoxos, vejam vocês). Alguns desses episódios de ódio político foram inclusive omitidos por boa parte dessa imprensa que hoje, lamentavelmente, também é vítima.
Agora, essa ultradireita que eles ajudaram a ganhar as ruas, ganhou também o poder. Jornalistas e meios de comunicação que estiveram do lado deles por conveniência eleitoral, começam agora a perceber que é preciso acabar com essa selvageria. O que é uma ótima notícia, mas a dúvida é se estão dispostos a fazer também a autocrítica e a consertar os seus erros.
Não se trata de uma vingança discursiva, ou de condicionar a construção coletiva necessária para enfrentar os violentos, e sim de perceber que esse enfrentamento não tem como dar certo se, como sociedade, não entendermos que há certas coisas que não se podem aceitar.
Wikimedia Commons/CUT
A jornalista Miriam Leitão e o ex-presidente Lula
Não se pode aceitar, por exemplo, que um idoso de 72 anos, seja ele membro do MST ou não, acabe atropelado e morto pelo ódio político de um empresário bolsonarista. Não se pode aceitar os 80 tiros contra um músico e uma pessoa que tentou salvá-lo, e não importa se as balas vieram do Exército ou de que quem quer que seja, quem fez tem que pagar pelo crime. Não se pode aceitar o assassinato de uma vereadora e seu motorista, e tampouco a impunidade desse crime, dos anteriormente citados e de muitos outros não lembrados aqui, mas que também foram atrozes e continuam impunes.
E, finalmente, não se pode aceitar que uma pessoa esteja presa por uma sentença que não consegue apontar qual crime ela cometeu, que contrato supostamente facilitou, e que sequer consegue comprovar o recebimento do benefício desse crime. Elementos que valem tanto para o caso do triplex do Guarujá quanto para o do sítio em Atibaia. Para se chegar a essa conclusão, basta se ater à verdade e às evidências, como também é verdade e evidente (qualquer jornalista que puder checar e ser honesto com sua averiguação comprovará) que o pedido da defesa do ex-presidente não é a simples absolvição de Lula. O que se pretende, vejam só, é a anulação do processo para que ele seja julgado novamente. Sim, a defesa de Lula e o próprio Lula desejam que ele seja colocado à prova, mas em um juízo realmente imparcial – onde, por exemplo, a defesa não seja grampeada pela promotoria e pela Polícia Federal, e que tenha suas provas aceitas, o que não aconteceu no processo manejado por Sérgio Moro.
E ao tocar neste nome, chegamos a outro problema, porque tampouco vai ser possível enfrentar a selvageria se as vítimas não entenderem que Moro também é não só ídolo, mas também líder aceito e aclamado pelos truculentos. O próprio Moro sabe disso, como deixou claro na mensagem messiânica que publicou, no dia da passeata que fizeram a seu favor. Se nem o fato de Miriam Leitão ser mãe do jornalista que escreveu a biografia dele serviu para que ela se livrasse dos ataques – aliás, sua nora era assessora de comunicação do agora ministro da Justiça, e recentemente pediu demissão do cargo – imaginem os que não têm esse vínculo, que tratamento merecerão da horda de fanáticos.
Portanto, para desarmar esse esquema, que coloca em risco a paz de todos, jornalistas ou não (e que, entre os jornalistas, também é um risco para todos, de direita e de esquerda, sejam Miriam Leitão, Glenn Greenwald ou o pequeno trabalhador da informação que é sempre o mais vulnerável) será preciso a sempre exigida autocrítica do PT (que certamente cometeu seus erros também), mas também a autocrítica dos que empoderaram esses grupos violentos que não suportam críticas a Moro e Bolsonaro. Melhor seria se fosse por convicção e não porque eles agora são alvos também desses violentos. Porque se fosse por convicção, seria mais fácil que eles admitissem que esse empoderamento dos violentos que coloca sua integridade em risco é o mesmo que mantém Lula na cadeia (o que está bem claro nas palavras de Eduardo Bolsonaro, dizendo que haveria uma guerra civil no país caso o petista seja solto), é o mesmo que mantém Moro e Jair Bolsonaro no poder, e é o mesmo que impulsa um programa de governo que acaba com os direitos da população brasileira de ter uma renda mínima, condições de trabalho dignas, serviços públicos minimamente decentes e uma aposentadoria no final da vida.
PS.: aliás, chama a atenção uma matéria desta semana do Estadão que diz o seguinte: “sem provas, áudio acusa ex-presidente Lula de ser dono de 1,5 trilhão de euros – o homem mais rico do mundo, segundo a Forbes, tem US$ 131 bilhões”. O texto também diz que o áudio mentiroso usa uma cifra que é quase a do PIB do Brasil. E a cobertura da notícia (mais que a notícia em si) chama a atenção porque se a imprensa tivesse agido com esse critério desde o caso do triplex (que, não nos esqueçamos, surgiu de um boato totalmente sem provas que foi publicado pela revista Época e tratado como verdade dali em diante), talvez pudéssemos ter evitado o ódio desde o seu nascedouro. Quem sabe, essa matéria do Estadão seja parte dessa ansiada correção de rumos. Uma autocrítica velada, bem-vinda por certo, mas incapaz de mudar o fato de que há muito mais o que consertar no país para que seja reinstalada a convivência democrática.