No programa 20 MINUTOS ANÁLISE desta terça-feira (01/02), discuti o risco de uma guerra entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). O governo ucraniano, de direita e pró-Ocidente, tem se posicionado a favor da aliança militar, promovendo também uma escalada de agressões contra a maioria russa do Donbass, ao oeste. A Rússia, então, que considera a filiação da Ucrânia à Otan como um grave risco à segurança nacional, concentrou tropas na fronteira.
As negociações diplomáticas continuam em curso, mas atravessam um impasse. Para entender como chegamos a esse ponto, precisamos voltar à dissolução da União Soviética (URSS), em dezembro de 1991, quando tanto a Rússia quanto a Ucrânia formavam parte do primeiro Estado socialista do mundo, partilhando infraestruturas, incluindo instalações militares, principalmente aeronáutica, equipamento industrial e armamento nuclear – herdados pela Ucrânia, que chegou a possuir o maior arsenal nuclear do mundo.
Logo após o fim da URSS, porém, a Ucrânia passou a viver, do ponto de vista político, o conflito entre dois blocos internos: um deles mais favorável à integração europeia e à aliança com o Ocidente, liderado pelos setores financeiro e do agronegócio da nova burguesia ucraniana, surgida da restauração capitalista; e outro mais inclinado à aproximação com a Rússia de Putin, cuja liderança era ocupada por frações da antiga tecnocracia civil e militar, além de frações burguesas mais tradicionais, protecionistas e vinculadas ao mercado interno.
Essas duas correntes foram se alternando no governo entre 1991 e 2014. Até 2018, a Ucrânia faria parte da Comunidade de Estados Independentes, que agrupa a maioria dos países ex-soviéticos. O país também chegou a assinar o Tratado de Redução Estratégica de Armas (START I), comprometendo-se a entregar todas as suas armas nucleares para a Rússia e se juntar ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Desde 1996, a Ucrânia não possui mais esse tipo de armamento e suas tropas foram reduzidas de 780 a 400 mil soldados.
Essa política de desarmamento foi uma das exigências permanentes da Rússia para a salvaguarda de sua segurança, cuja lógica é impedir que os países vizinhos possam servir de trampolim a potenciais inimigos.
Cerco militar
Outra das exigências históricas da Rússia, desde os primeiros momentos pós-soviéticos, foi o compromisso da Otan se manter em suas fronteiras originais, sem se expandir para o leste europeu e sem promover uma corrida armamentista da Ucrânia e outras nações ex-soviéticas com a Rússia.
James Baker, secretário de Estado durante o governo George Bush (1989-1993), assumiu com Mikhail Gorbatchev, então presidente da União Soviética, em 1989, logo após a queda do Muro de Berlim, que a Otan não avançaria nem uma só polegada em direção ao leste.
Entretanto, alguns dos países antes pertencentes à URSS ingressaram na aliança militar, como é o caso da Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, Romênia e Bulgária.
Esse cerco militar à Rússia foi se agravando com a ascensão e consolidação de Vladimir Putin. Mesmo se mantendo na política de restauração capitalista, o ex-prefeito de São Petersburgo chegou ao Kremlin disposto a romper com o modelo de subordinação ao Ocidente implementado por seu antecessor Boris Yeltsin.
Nos cálculos dos EUA e da Otan, a Rússia voltou a ser um inimigo, ainda mais com a aceleração do desenvolvimento chinês e a progressiva associação entre os dois Estados.
Essa perspectiva estratégica, de isolar e enfraquecer a Rússia de Putin, ganhou novos contornos a partir exatamente da Ucrânia, em 2014. Ainda que a intervenção do Ocidente tenha sido permanente, desde os anos 90, buscando favorecer a corrente liberal, há oito anos essa interferência foi decisiva.
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Jornalista explica as razões do conflito entre Moscou e Kiev, a atuação da Otan, a estratégia dos EUA e a reação de Putin
Crise política na Ucrânia
O governo de Viktor Yanukovych, presidente eleito em 2010, próximo à Rússia, se recusa a assinar, no final de 2013, um acordo de adesão à União Europeia. Os liberais, apoiados por grupos de extrema direita, alguns abertamente neonazistas, lançaram um movimento de protesto contra a decisão presidencial, logo denominado de Euromaiden.
Frente aos protestos, cada vez mais fortes e violentos, Yanukovyvh acaba sendo deposto pelo Parlamento, que convoca eleições antecipadas e sai vencedor o candidato Petro Poroshenko, um empresário bilionário ultradireitista, pró-União Europeia. Antes mesmo das eleições, a Rússia anexou a região portuária da Crimeia, em março, que havia sido cedida à Ucrânia em 1954. Essa anexação foi formalizada através de um referendo popular, contestado pelo Ocidente.
A resposta do bloco derrubado pelo golpe parlamentar contra Yanukovytch também foi contundente: levantes ocorreram em regiões de maioria russa e com maior influência do Partido Comunista Ucraniano, impulsionando o surgimento da República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk, situadas no Donbass, imediatamente atacadas pelas forças militares ucranianas, desatando um cenário de guerra civil, na qual a resistência contra o novo governo ucraniano teve apoio militar russo.
Após três mil mortos, um cessar-fogo foi assinado em setembro de 2014. Desde então, uma série de conversações e acordos teve lugar, até 2021, para colocar um fim ao conflito e convocar referendos que decidam o destino dessas repúblicas rebeldes, depois de adotadas medidas de desarmamento.
Ressurgimento das tensões
Em fevereiro de 2021, porém, o governo ucraniano iniciou uma política de agressões e compra de armamentos contra os separatistas, abastecido por países da Otan. A Rússia respondeu mandando tropas para a fronteira.
Agora em janeiro, novas negociações foram abertas, em Genebra. A proposta russa foi clara: cumprir a palavra de Baker, sustar o avanço da aliança militar, estabelecer compromisso de não-incorporação da Ucrânia à organização, acabar com o fornecimento de armas ao vizinho e cumprir os acordos de Minsk.
A Casa Branca recusou a oferta, apenas aceitando apoiar a retomada dos pactos que poderiam acabar com os conflitos no Donbass. A réplica de Moscou foi aumentar a mobilização na borda ucraniana e aventar a hipótese de criar infraestrutura militar em Cuba e na Venezuela.
Trata-se do episódio militar mais perigoso desde o final da Guerra Fria, talvez mesmo desde a crise dos mísseis de 1962, pois opõem diretamente duas potências nucleares.
Para os EUA, parece ser estratégico enfraquecer e submeter a Rússia de Putin, dentro de sua estratégia de contenção da China e seus aliados, ao mesmo tempo em que busca reforçar sua hegemonia político-militar na Europa – apesar do desconforto alemão com essa escalada e da aberta dissensão de outros países, como a Croácia, que ameaçam se desligar da Otan no caso de um enfrentamento aberto com a Rússia.
Para a Rússia, está em jogo sua segurança, sua liderança sobre os países ex-soviéticos e sua recuperação como potência soberana. Quem piscará primeiro?